Ordinários – Capítulo 7
Fiquei emburrada até chegar em casa. Finalmente o meu irmão perguntou:
–Por que tá com essa cara?
–Com que cara você ficaria se fosse uma menina e o único garoto de quem achou que fosse gostar depois de um tempo preferisse o garoto que te chamou pra sair?!
–Ér… Não entendi.
Fui pro meu quarto batendo o pé e fiquei acordada até tarde com o celular na mão, esperando uma certa pessoa me ligar e dar explicações… Só que foi um desperdício de esperanças. Estava arrependida de um monte de coisas, inclusive não ter aproveitado pra ser atropelada no primeiro dia de aula quando tive contato com a rua logo depois de acordar. Após horas encarando meu celular, eu dormi. Pois é, eu sou bem desocupada.
Ouvi alguém me chamando, mas a voz não era do Edgar.
–Quésia… Desculpe te acordar… –Hebrom estava ajoelhado ao lado da minha cama. –Mas… Você não está meio velha pra dormir com a luz acesa?…
–Hã? –foi estranho ele não ter dito nada sobre o monte de bichos de pelúcia que eu tiro do armário e jogo no chão pra dormir à noite… e nem sobre fato de eu estar chupando o dedo. – Quem deixou você entrar? Não sabe bater? E o que você tá fazendo aqui? É perseguição, essa bagaceira?
–Seu irmão me deixou entrar. Na verdade, eu bati na porta, sim, mas você continuou dormindo. E… E hoje me deu vontade de ir contigo até o colégio… –ele corou. Vê-lo com vergonha me deixa com vergonha. Mil tretas. –Não sei se dá pra chamar isso de perseguição… Deve ter algum outro nome em português.
–Você não tinha que levar sua irmã pra escola dela?
–Zacur foi por mim. Como ontem… Ele não costuma fazer isso porque sempre acaba brigando com ela. Mas foi meio que uma emergência pra mim, ele sabe que gosto muito de você. –Hebrom coçou a cabeça e riu. –Minha irmã tem um igualzinho a esse! O dela se chama Sr. Feffer. Qual o nome do seu? –ele pegou meu guaxinim de pelúcia.
–Não tem nome…
–Como não? Todo mundo precisa de um nome.
–Então escolhe você.
–Certo! Esse vai ser… Mr. Pendleton.
–Mr. Pendleton?… Tá, né… Criativo. –meio que eu ri.
–É um personagem de Pollyanna.
–Ah! Verdade! Gosto desse livro. Edgar tinha jogado em algum canto da casa e eu acabei lendo. –sorri. –Enfim… Sobre sua irmã… Quando eu vou conhecê-la?
–Não sei… –disse sacudindo o guaxinim. – Ela também quer te conhecer, eh.
–Falou de mim pra ela?…
–Eh… Desculpe.
–Sem problemas. –esqueci de parecer brava com ele.
–Você deve me achar um peteta.
–Quer dizer “pateta”? –a minha correção deixou a cara dele completamente enrubescida.
–Isso… Eh… Desculpe por ter… Ter ficado com ciúmes.
–Ciúmes? –pelo o que estava parecendo, tudo que ele fazia levava uma interpretação errada minha.
–Eh… De você e do Folk… Não queria que você deixasse de ser minha amiga pra ficar com ele.
Amiga… Não sabia que ele já me considerava tanto assim, pra variar.
–Então era isso?!
–O que pensou que fosse?
–Nada… –me senti mais besta que o normal.
Meu irmão arrombou a porta nesse mesmo minuto:
–Acabou o tempo pra conversinha! Quésia, vai se arrumar pra escola. Vai todo mundo ficar atrasado. Tenho que trabalhar e sou eu quem te sustenta. –ele estava com pressa.
–Vou te esperar lá embaixo. –Salamander falou e saiu.
–Por que deixou ele entrar aqui?
–Ele pediu. Eu também não ia deixar o garoto plantado na porta depois que acordou muito mais cedo só pra te visitar antes da aula. Obviamente ele vai com a gente no carro. Se arruma e se comporta.
Tomei banho, vesti qualquer coisa e escovei os dentes. Não tinha a menor vontade de sair de casa nesse dia. Os dois já estavam no carro. Eu iria abrir a porta da frente, mas aí Edgar tinha que criar uma razão pra discutirmos.
–Senta no banco de trás. –começou falando estridente.
–Não! Por quê?! –tudo o que eu menos queria era ficar perto do Hebrom e que ele percebesse que tô toda esculhambada.
–Você é muito nova! –meu irmão argumentou e Salamander logo virou a cara. Ficou olhando pra rua pra continuar no canto dele sem se intrometer. Garoto esperto.
–E daí? Eu sempre fui na frente e nunca deu problema! Que eu saiba, é a partir dos dez anos! Eu tenho catorze!
–Tu não quer levar uns tapas na frente do teu amiguinho, quer?
–Você não tem coragem, e mesmo se tivesse, não vai fazer diferença nenhuma! Vou continuar querendo ir na frente!
–Pois bem, meu amor! Querer não é poder! Agora sossega o facho e vai pro teu lugar!
–Eu já disse que não!
–Chega! Tá atrasando demais! Vou ser demitido por sua causa! –Edgar saiu do carro e me empurrou pro banco traseiro. Acabei esbarrando no Salamander.
–Foi mal… –me afastei. –É que certas pessoas começam, por algum motivo estranho, a ser mais irritantes que de costume quando estão perto de outras certas pessoas! –indireta enviada com sucesso.
–A culpa não é das certas pessoas, já que elas só querem que suas irmãs mais novas se comportem direito pelo menos quando estão na frente de outras certas pessoas! –ele foi pra escola correndo. Cortês costuma fazer isso quando está cuspindo fogo.
Meu irmão ainda estava com ódio quando chegamos. Então ele não disse “Tenha um bom dia.” ou coisa do tipo. O máximo que eu consegui fazê-lo falar foi “Vê se volta pra casa um pouco menos burra.”.
–Você poderia ser um pouco mais compreensiva com seu irmão… Só acho. –Hebrom andava do meu lado.
–Eu sei… Mas Edgar me tira do sério! Ele só age desse jeito quando você tá perto. Quando você não tá é um pouco menos pior. Isso me perturba! Ele é um falso!
–Não exagera… –ele abriu o armário.
–E aí, gente? –Ágata surpreendentemente apareceu junto com Wendel e seu melhor amigo, o vídeo game.
–Como foi o castigo? –sorri pra ela.
–Não foi. Eu pulei pela janela enquanto não olhavam. Mas aí, tudo certo com vocês?…
–Ei, Quésia Cortês! –alguém chamou, eu não me preocupei em olhar.
–Qué… Tem uma coisa te chamando. –Ágata me cutucou com uma expressão meio que “Eca”. O Salamander viu quem era e suspirou de olhos fechados.
–Não é comigo… Deve ser outra. –respondi encarando meu armário fechado.
–Outra nesse colégio com esse nome? Infelizmente eu acho que não. –lamentou Raitz.
–Você me escutou?! –Folk. Puxou meu braço, me fazendo olhar pra aquela cara de lixo que ele tem.
Ágata não fez nada a respeito, por não querer ficar na detenção de novo. Já Salamander aparentava estar segurando as pontas pra não colecionar os dentes dele. Mas só aparentava mesmo, ele é fofinho demais pra isso… Eu acho.
–Ah… Então é você. Não me arrependo de não ter atendido. –eu estava cansada e com tédio, pois é, de novo.
–Deixa o seu charme de segunda pra depois. Você me deve explicações.
–Não devo, não.
–Prevejo barraco. –não parecia, mas Yamada prestava atenção em tudo e até se intrometia também.
–Claro que deve! Por que furou comigo ontem?! Eu fiquei te esperando a noite inteira.
Eu respirei fundo e comecei a falar:
–Acha que vou fazer tudo o que você quiser só porque as antas da escola te acham bonito? Eu não pedi pra você me esperar. Eu não disse que iria à festa. Eu também não admiro garotos mimados que bancam os bad-boys e na verdade são uns frouxos. Tá de bom tamanho, ou ainda devo essas explicações? Você parece ser tão bocó que não consegue entender.
–Head shot… Botou moral. –o geek finalmente deu pause no jogo pra olhar a treta.
–Caraca… Depois dessa eu ia pra casa dormir. –Raitz queria botar lenha na fogueira. Deu pra notar que queria que eu batesse no Folk por ela.
–Foi mal… Parei de ouvir na parte de “te acham bonito”. –ele riu de um jeito irônico, querendo bancar o gostosão (coisa que ele evidentemente não é).
–Não tem vergonha na cara, não? –questionei.
–Não, só beleza mesmo, princesinha. –a coisa botou a língua pra fora.
–Depois diz que não sabe a razão de repetir o ano letivo três vezes seguidas. Além de burro, é egocêntrico… Eu não aguentaria ficar presa numa sala com ele. A sorte que eu saí do castigo, senão só tua mãe pra te achar bonito depois do estrago. –deu pra ver uma veia na testa da Ágata enquanto ela falava.
–Tá, tá, ninguém se importa. A conversa não chegou até você, gatinha. Mas o negócio é o seguinte, Quésia: sou eu quem chuta as garotas. Não o contrário. Eu te dei a maior bola e você não ficou nem aí. O que tem de errado com você?! Já percebi que se faz de difícil, mas tá passando dos limites, garota! Tô começando a ficar sem paciência. –Folk apertava ainda mais meu braço.
–Não estou nem um pouco desesperada a ponto de querer sair com você. –fiz me soltar.
–Ai, meu kokoro… Double kill! –Wendel botou a mão no peito esquerdo.
–Fica longe de mim, eu já tenho idiotas suficientes na minha vida. –dei as costas e fui pra sala de aula. Team Hebrom nessa bosta.
–Por mim, não tinha necessidade disso… Desculpe. –Hebrom disse a Folk e foi pra sala comigo. No caminho, eu vi aquela mesma criatura de cabelo roxo. Ela assistia tudo de longe. Isso me fez concluir que nos próximos quinze segundos todo mundo da escola já ia saber o que tinha acontecido… E provavelmente de uma forma completamente distorcida.
Dois tempos seguidos de Matemática, porque já estar sendo um dia péssimo não é o bastante. Me deu mais sono do que no primeiro dia de aula. Quando a tortura acabou, tivemos aula de Geografia, aí Folk apareceu na classe. Salamander não desviou a atenção da explicação por isso. Sinceramente eu não sei como aquele garoto consegue se controlar. Eu só não bato no lazarento do casaco de couro porque é evidente que ele é mais forte e eu devo pareceu um boneco de posto quando brigo.
Aula de História… A hora do intervalo chegou e eu saí da sala com uma sensação de liberdade. Não tinham completado nem três dias no colégio e eu tinha cansado de estudar (sim, eu sei que isso é péssimo pro meu futuro, mas pretendo melhorar… Tá aí uma boa promessa pra fazer no ano novo). Entrei no refeitório, mas não achei lugar pra me sentar. Tudo lotado.
–Quésia! –Hebrom ficou de pé no banco e balançou os braços, sorrindo. –Vem pra cá! –eu fui andando rápido, pra ver se aquele maluco parava de chamar atenção do Universo.
–Sai de cima daí. –falei sentando entre ele e Yamada. Procurei não tropeçar em nada.
Ágata, Zacur, um garoto e uma garota que eu ainda não tinha conhecido também estavam sentados ali. Eu me esforcei, mas não lembrei o nome deles daquele anuário…
–Desculpe. –ele voltou pro lugar. –Qué, essa é Naomi… Carter. –ele apontou pra ruiva de cabelo curto e cacheado que sorria pra mim. –E aquele é Jamal Andreas, meu outro amigo. –apontou para o nerd de cadeira de rodas, que usava uns óculos tipo fundo de garrafa. Era ele o garoto com asma que tossiu na minha apresentação do primeiro dia de aula. O nome dele eu deveria saber, já que é da minha sala… Mas não.
–Oi… –eu nunca tinha ficado perto de tanta gente conhecida ao mesmo tempo. Gente conhecida que não estava me batendo ou falando mal de mim.
–Essa é mesmo a Quésia? É verdade que você rejeitou o Folk? –Naomi se esticou do outro lado da mesa pra ouvir a minha resposta.
–Naomi! –Zacur ameaçou jogar um sapato nela. Aposto que ele tinha acabado de dizer pra não tocar no assunto.
–Deixa ela falar. –Ágata se opôs.
–O que foi? Eu fui direta, e não disse nada pelas costas dela, diferente da Kyara Pardo Muanza D’Urville Melbourne. –fez a ruiva.
–Acabou de dizer isso pelas costas da Kya. Perdeu a moral. –Wendel disse… e estava jogando, pra surpresa de ninguém.
–Quanto tempo demorou pra gravar o nome dela? –o irmão do Hebrom falou fazendo cara de impressionado.
–Ela era minha melhor amiga, Zac. –Naomi disse num suspiro.
–Ah, eh… Tinha esquecido… Lamento.
–Não é por nada que ela diz pra chamarem de pelo nome artístico… “Pandora”. Sei nem o que tem a ver… –Carter se revirava no banco.
–Quem é Kyara?… –perguntei. Eles provavelmente estavam falando de mim antes de chegar, mas eu permaneci mais interessada no que essa tal garota tinha espalhado sobre o que aconteceu. Eu já tinha quase certeza de quem era.
–Sabe a garota de cabelo roxo? Vamos lá, não há nenhuma outra garota na escola com cabelo roxo. –Jamal finalmente falou alguma coisa.
–Só a prima k-popper esquisita dela. –Naomi tentou corrigir.
–Não, daltônica. Você tem demência? O cabelo dela é lilás. E é um lilás bem desbotado. –Yamada, doce como sempre.
–Kyara é uma amiguinha da Ariadne? –perguntei.
–Essa mesma. –ele confirmou.
Já esperava…
–A “Pandora” gosta do Hebrom. –eu tive a leve impressão de que, nessa hora, a Raitz quis me irritar.
–Sério?… Ela é bonita… Poderia sair com ela. –falei sem me importar muito.
–Gosta nada, ela só quer que ele faça letras de música pra ficar rica e famosa em cima disso. Não passa de uma interesseira escrota que vive pra falar mal dos outros. –Zac. –Folk tentou desenrolar meu irmão pra ela uma vez, mas não deu certo.
–Até porque eu nunca gostei dela. –Hebrom acrescentou e isso me deu um certo alívio… Mas o garoto não parecia estar feliz.
–Ah, é. O anãozinho do… Como é o nome daquele menininho de cabelo castanho? Ah, sim! O anãozinho do Ícaro é que gosta. Coitado… Tá, mas voltando ao assunto, porque a Quésia largou o garoto mais lindo da escola? –Naomi ficou ainda mais curiosa.
–Eu não larguei ninguém. –respondi.
–Então vocês ainda estão juntos?
–Nós nunca estivemos juntos. Porque eu tenho que “estar” com alguém? Vocês não têm mais o que fazer, não?
–Ela está certa. Vocês precisam parar de ficar falando dos relacionamentos dos outros e perceber que estão na escola pra estudar! –Hebrom disse olhando pra mesa.
–Parece que alguém não tá aprovando muito desse assunto. –Raitz comentou cantarolando.
–Ágata, não começa. –Zacur falou entre risos.
O Salamander saiu do refeitório explodindo quase que literalmente, porque seu rosto ficou até avermelhado. Pra mim, isso começou a virar rotina, cada dia uma frescura diferente. Mas é comum, muita gente ama de inventar problema onde não existe.
Tentei ir atrás do garoto, mas do meio das sombras apareceu uma perna usando um tamanco rosa choque com purpurina e me derrubou.
–Qual é a do desejo continuo de me fazer cair, Ariadne? –já era de se esperar que fosse ela. Só que eu admito que aparecer naquele exato momento foi um imprevisto.
–Só estou te colocando no seu lugar. –eu não tinha muito o que responder ou fazer além de ficar ali embaixo com a minha autoestima.
Todo mundo estava olhando e meu coração quase saía pela boca. Eu sempre fui humilhada, mas geralmente não era em público. Quase ninguém viu quando eu caí no gramado, por isso não fiquei tão nervosa quanto agora.
Tentei me levantar, mas a criatura me chutou de volta.
–Ah, vai rodar a bolsinha, Galvão. –Raitz apareceu, deu um empurrão nela e logo depois puxou seu cabelo.
–Solta, miss barraco! –deu um passo pra trás.
–Então você se preocupa com o cabelo? Bom saber. –Ágata enfiou a mão no prato de um garoto bem baixinho de cabelo castanho, provavelmente o admirador da Kyara, e jogou um punhado de espaguete na cabeça da Ariadne.
–O que você fez, sua porca?!
–Achei que ruivo ficaria bom em você. Que tal uma Maquiavel nova também? –esfregou mais um pouco no rosto dela.
A patricinha parou de fazer cara de “Não acredito que você fez isso” e tentou jogar um copo com suco que era de laranja, que tinha gosto de melancia e parecia uva na blusa de Raitz. Por sorte, ela conseguiu desviar e o líquido não identificado foi parar no vestido de uma das duas únicas amigas da Ariadne. Aquela outra loira, Bianca, começou a dizer tudo quanto é nome, mencionando que aquela roupa era de grife e sei lá mais o quê.
Aí um menino gordo com cabelo acinzentado e olhos azuis que estava ao lado dela também entrou na conversa civilizada:
–Você tá preocupada com a sua roupa?! Olha só o desperdício dessa comida! Eu juro pra vocês que… –alguém interrompeu o discurso inspirador dele jogando um prato com pudim… Uma gelatina… Enfim, um treco gosmento na cara dele. A comida daquela escola é… peculiar.
Até que um ousado no fundo do refeitório gritou “Guerra de comida!”. Nessa hora começou a baderna e eu aproveitei para ir pra debaixo de uma das mesas. Wendel estava debaixo da mesma mesa onde eu me escondi.
–Ah, e aí, Qué-chan?
–Você sempre fica em lugares assim? E outra, por que tá se escondendo? Achei que se interessasse por esse tipo de coisa.
–Eu gosto de ver e ouvir brigas, não de participar delas. Só respondo se me chamarem.
–Hm… Me ajuda a sair daqui?
–Você não deve sair daqui… A menos que queira morrer, é claro.
–Sem querer ofender, mas não foi conselho que eu pedi.
–Beleza. Se quer cometer suicídio, eu não tenho nada a ver com isso. –ele me deu uma bandeja. –Procura não ser atingida, isso se você se importar com a roupa. A saída mais próxima é aquela dali. –apontou uma porta pequena, restrita aos funcionários do colégio.
–Você parece conhecer bem demais esse lugar…
–É que eu curto alguns jogos de estratégia…
–Ah… Entendo… –na verdade não, eu não entendia… Mas socializar é importante, né?
Saí correndo usando aquela bandeja velha de plástico como escudo. Edgar me deixaria dormindo no portão da escola se eu ousasse entrar no seu carro com a roupa suja. Só me acertaram com uns nuggets que pareciam pedra, doeu um pouco, mas não sujei a roupa.
O problema é que, quando passei por aquela porta, encontrei o que eu menos queria. Fiquei atrás de uma estante e olhei a cena.
–Eu só estou pedindo para adoçar mais um pouco este maldito café! Você acha que o meu trabalho é fácil e eu tenho todo tempo do mundo?! Eu tenho muito que fazer! Diferente da sua pessoa! –a professora de Português se esperneava na frente de uma cozinheira.
–Já vou resolver isso, querida… –ela resmungou e foi até o balcão. Botou algumas colheres de açúcar e cuspiu na xícara. –Aqui. Toma. –a funcionária abriu um sorriso falso.
–Obrigada. –a mulher ranzinza deu um gole no café e saiu. Tapei minha boca pra ninguém ouvir a risada.
–Tia, tá tendo uma guerra de comida lá fora! –era a do cabelo roxo, Kyara, quem tinha entrado ali pra dedurar.
–Hã?! Deixa eu ver isso! –a mulher saiu da cozinha.
Fui à porta dos fundos, que estava aberta, e passei por ela. Até diria que o Yamada queria que eu me ferrasse, mas depois dali e fui parar direto no pátio. Eu encontrei Hebrom num canto de braço cruzado e fazendo bico.
–Quésia! –ele sorriu, mas na mesma hora voltou a amarrar a cara. –O que você quer?
–Por que você saiu daquele jeito de novo?
–Por que você não vai se preocupar com Folk?
–Ah… Já entendi…
–Então pode ir!
Eu estava prestes a dar o fora dali, mas uma súbita vontade de esfregar minha razão na cara dele me fez mudar de ideia e perder a vergonha de dizer. Por um momento, meu orgulho ficou maior que minha timidez e eu saí falando:
–Não! Me obrigue! Você está agindo que nem um retardado só por causa daquele… Daquele encosto! Não sou eu que fico procurando ele! Além do mais, nem faz uma semana que te conheço! Q-Quem é você pra me dizer com quem andar?!
Eu jurava que iria desmaiar. Raramente consigo falar o que penso… Por isso, tentei aproveitar o instante de coragem:
–Hebrom, você era a única pessoa que eu não esperava fazer esse tipo de coisa. Diz que não queria que eu te substituísse, mas… Olha só pra mim! Por quem eu vou te substituir? Meu irmão não tá nem aí pra mim e a única amiga que eu consegui nesse lixo de escola não me diz nada sobre o que sente e me mataria se eu tentasse perguntar!
–Ágata não é tão violenta quanto parece…
–Não é esse o caso! Você é o único que me procura! Sinceramente, as chances de você me substituir são bem maiores.
–Eu… Não devia ter ficado daquele jeito… Mas foi por eu me importar com você! Eu sei que não estou certo, mas… Quésia, eu nunca colocaria outro alguém no seu lugar… Eu gosto muito de você… Desculpe. –uma lágrima desceu do olho direito dele.
–Verdade? –minha voz estava tão trêmula quanto meu corpo.
–Claro… Eh… Você é certamente o meu ponto fraco. –Salamander enxugou o rosto e sorriu. –Você não vai se livrar de mim tão fácil.
–Nem se precisar voltar pro seu país?
–Nunca. É uma promessa. –ele estendeu o mindinho. –Eu sei que consigo cumprir.
–Que bom… –tentei imitá-lo.
–Desculpe de novo. –entrelaçou os nossos dedos e pareceu ficar feliz aos poucos de novo. –Vamos voltar pra sala. Já passou da hora… –aproveitou pra segurar a minha mão.
Eu ainda não estava acreditando naquilo. Ele realmente não era nada do que eu tinha visto… Era infinitamente melhor. Se eu me apaixonei? Hahaha!… Merda…