Ordinários – Capítulo 29
Hoje na ida à escola, Hebrom disse que queria ser meu “segundo melhor amigo” para sempre e que não me deixaria sentir “fisicamente sozinha”… Eu achei isso um amor. Ele não cansava de contar o quanto tinha agradecido a Deus pela forma como as coisas caminharam até aqui… E eu não cansava de ouvir. Cada dia eu gosto mais da minha nova vida. Cada dia eu gosto mais de não ser qualquer uma…
Na frente do colégio…
–Pois bem… Como a gente se gosta, nós hoje vamos fazer uma entrada triunfal. Segure e a minha mão e nós sair saltitando como um jovem casal de gazelas e vamos contaminar todo mundo com a nossa felicidade, pode ser?
–Hã? Tô fora… Que convite mais estranho.
–Ah, vamos lá, eu vi isso num programa de vida animal, foi bonitinho. Gazelas são fofas! Você gosta um pouco de melação, não negue.
–Como dito: um pouco. Você é extremista pra tudo! E o que você tá me pedindo pra fazer não é melação. O nome disso pode ser “demência” ou talvez até “soltar a franga”, mas “melação”, não.
–Certo, então… Eh… Vamos pra sala que nem um casal comum e sem graça. –o garoto suspirou e fez um bico.
–Não faz essa cara, não é tão ruim assim.
–Eh… Você disse que gosta de mim… Não tem como ser ruim. –Hebrom ajeitou meu cabelo pra uma mecha ficar atrás da orelha e sorriu de lado.
–Seje menos clichê.
–Seje menas ranzinza! –apertou minha bochecha.
–Não brinca de falar errado, depois tá escrevendo essas titicas na redação.
–Desculpe. –riu.
Nós começamos a andar, indo à classe… Até que ele colocou as mãos nos bolsos e começou a falar:
–Quando você acha que vamos nos beijar? Tipo… De verdade? Não, não de verdade… Quer dizer… Na boca? Quando você acha que vamos nos beijar na boca? –fez um semblante pensativo.
–Você pergunta isso na cara dura?! –me espantei e meu rosto queimou. Sim, eu sei que pensei que ele faria isso, mas fazer e falar são coisas diferentes. Eu preferia que ele fizesse sem antes me perguntar. Isso é constrangedor!
–Eh… Falei que contaria tudo pra você e que confio em você… –ele enrubesceu. –Não vou mentir… Quero te beijar. Muito. Eu estou apaixonado por você.
–Salamander, a gente acabou de se conhecer! Controle seus hormônios! Ou você supõe que eu seja como uma daquelas garotas que sai pegando herpes e mononucleose infecciosa por aí sem mais nem menos?
–Você quis dizer “uma daquelas garotas que beijam todo mundo”, certo?
–Sim.
–Ah, não! Claro que não! Nunca! Te entendo, mas… O que eu sinto por você faz mais tempo do que você pensa. É complicado conversar isso com a minha melhor amiga… Bem mais complicado quando ela também é a garota que eu gosto. Não quero ficar na friendzone por isso.
–Se você acha que está com intimidade pra perguntar quando vamos nos beijar, com certeza você não está na friendzone!
–Ah… Isso é um alívio, eh… Mas eu não quero que pense que vou te agarrar! Não faria uma coisa dessas… Também não quero que ache que vou te beijar e depois te abandonar.
Ele evidentemente não faria isso. Ao menos é o que eu parece… Porque… Hebrom tem praticamente a mesma altura que eu. Pouquíssimos centímetros a mais. Era só dar dois passos que já estaria beijando contra a minha vontade… Pelo que parece, ele me respeita.
–Eu não quero falar disso! –interessante como ele me faz recobrar a timidez tão fácil.
–Desculpe se te constrangi… Eu pensei que você não se impressionasse mais com isso.
–Tá querendo dizer o quê?! Que sou nova demais pra conversar sobre isso, que eu já tenho experiência, que a minha idade é um problema ou que eu não tenho maturidade?!
Dizer isso aos berros por esse exato motivo é um pouquinho contraditório. Só um pouquinho… Mas… Não me interessava se era verdade ou deixava de ser. Soou ofensivo.
–Não disse isso, Qué… Você está brigando comigo? –me olhou tristemente.
–Não estou brigando com você!
–Mas você está gritando…
–Não quer dizer que isso seja uma briga! Você apenas me deixou nervosa!
–Pode parar de gritar, por favor?… –parecia até que ele iria chorar.
–Tá… –coloquei a palma da mão na testa. –Não vai me pedir pra…
–Não faça nada por pressão. Eu quero que você sinta a vontade que eu tenho. Aquela que você não aguenta ficar sequer um passo de distância e quer sentir nossas respirações misturando…
–Aham, aham, tá bem, chega! Não precisa de detalhes.
–Quésia… Desculpe… Só uma última pergunta… Seria muito desrespeito se fosse francês?
–Francês? Hã? O quê? Você não é canadense?
–Não falei de mim… O beijo de… Espera… Você não entendeu?! E-Esqueça isso! –ele cobriu o rosto avermelhado com uma das mãos. –Meu Deus, me desculpe! Quase tirei a inocência dela… Eu sou um monstro… –sussurrou de maneira quase imperceptível… Pois bem… Eu disse “quase”. Meu ouvido é bom pra coisas que não são da minha conta.
–Esqueço sim, com todo prazer! Você poderia ser um pouquinho menos direto, cara…
–Não consigo. Quando eu amo uma pessoa, não tenho vergonha de dizer. É justamente o oposto. Amanhã pode ser tarde de mais pra contar…
–Ah, sei… Você é um garoto estranho… Tenta ser menos curto e grosso, fazendo o favor…
–Vou tentar. Não toco mais no assunto…
–E… Desculpa por eu ser tão chata e fresca por causa disso… –mirei o chão. –Não tenho nem um pouco de pressa com essa história…
–Você não é chata! Nem fresca! Fico feliz por não ser tão extrovertida assim, porque tudo vai poder ir ao tempo devido. Eu te amo… Bem do jeito que você é.
–Valeu…
Sinceramente, eu não faço nem ideia de como nos gostamos sendo tão diferentes. Se bem que ficar com ele estranhamente está influenciando minha maneira de me comportar. Normalmente é mais fácil influenciar para o lado ruim… Mas parece que minha história está sendo a rara exceção que Deus está trabalhando (não tentem isso em casa). Aquela história de os opostos se atraírem, pra mim, é a maior abobrinha já plantada. Pessoas com opiniões diferentes acabam brigando. Uma das duas deve dar o braço a torcer… Felizmente fui eu… Porque eu não gostaria de ver um vazio no garoto que me mostrou Aquele que pode me preencher.
–Quésia… Você já teve algum garoto que gostasse assim antes de mim? –estávamos entrando na sala.
–Quem me dera! –me voltei pra ele, que se sobressaltou. –N-Não foi bem isso que eu quis dizer… Ahm… Deixa… E você? Alguma garota?
–Não… Acho que já disse isso. Eu não era muito ligado nisso.
–Jura? Parece até que você manja…
–Não sei aonde… Acho que não sou atraente pras meninas daqui.
–Eu não devo ser daqui…
–Há! Não fala assim, eu vou me achar incrível!
–Mas aí… Vamos ser adultos pelo menos uma vez na vida… Sobre aquela outra pergunta… Você escova os dentes, né?
–Hahahaha! Pra falar a verdade, o tratamento odontológico do Canadá é meio caro… –olhei pra ele igualmente sobressaltada.
–Isso é pra valer…?
–Sim.
–Eu devo gostar mesmo de você pra não me importar.
–Ou talvez você não tenha se importado porque lembrou que estamos no Brasil e que eu uso aparelho.
–Pois é… Talvez isso tenha influenciado um pouco também. –ele fez uma careta e foi sentando na carteira ao lado.
Algum tempo depois, ainda na sala de aula, quando eu estava tentando explicar a matéria de Português para Hebrom (que aparentemente não estava conseguindo se concentrar)…
–Você quer sair comigo hoje? –ele não parava de me encarar feliz.
–Eu não sei se Edgar vai deixar…
–Tenta perguntar pra ele e me dá uma resposta, pode ser? Eu quero te levar a um lugar…
Enquanto ele me chamava pra um encontro, Judi apareceu ali nos interrompendo toda sem graça. Eu não entendi muito bem o que ela estava fazendo ali, mas logo mostrou que queria falar comigo:
–Quésia… Você tem um minuto?
–Tenho vários minutos, mas agora eu estou ocupada. –fiz questão de deixar clara a minha preferência por estar com Hebrom. Porém, ele olhou pra mim como se implorasse pra eu falar com ela. –Ah… O que você quer?
–Eu queria te convidar pra ir à minha casa, pra gente resolver aquela questão numa festa do pijama… Greta disse que você ouviu uma coisa fora do contexto e que pode estar interpretando errado, por isso não está mais falando com a gente.
–Não precisa resolver, eu não ligo. O que eu penso de vocês não é problema seu… Além disso, eu já tenho um programa pra hoje.
–Sério? Qual?
Ame o próximo, ame o próximo, “Não é da sua conta, linda”, ame o próximo… Socorro, isso é difícil. Preciso treinar e orar mais…
–Vou sair com… –Hebrom se intrometeu bem naquela hora.
–Ela ia se encontrar comigo, mas eu posso sair com ela à tarde e você pode buscá-la à noite. Não há problema! Certo, Qué?
–Sim… Eu acho. –respondi de maneira suspeita.
–Legal! Ah… Hm… O meu endereço é esse aqui, ó… Cunhadinho, –olha que falsa! Ame o próximo… Não posso dar na cara dela… –me empresta uma caneta?
–Sim, aqui… –estendeu o objeto pra ela.
–Valeu… Me empresta uma folha também?
–Sim! –arrancou uma do caderno que estávamos usando para estudar.
–Aqui, Quésia. Eu moro no quinto andar, tá? Porta número 58. Vou fazer uma festa do pijama pra nós três. Eu te busco às 18 horas. Tchauzinho! E valeu por aceitar, Qué. –saiu. Amém. Eu estava agonizando.
–Por que raio de motivo você fez isso, Hebrom?
–Ainda vamos sair, então você não precisa ficar assim… Eu quero que você faça as pazes com sua amiga. Percebi que vocês andam afastadas.
–Ela não é minha amiga, Salamander. –eu sei que ele estava tentando ser legal… Mas isso foi uma medida meio desinformada… Não faço mais questão dela…
Hebrom pareceu triste pela minha resposta e ficou quieto… Depois de alguns segundos, ele preferiu mudar de assunto:
–Eu pego você às duas horas e meia, tudo bem? Aí a gente volta às quatro… Não vai demorar muito, é só uma visita.
–Não pode ser às cinco?
–Acho melhor não! –ele fez uma cara de bobo, ficando contente por eu querer passar mais tempo com ele. –Eu sei que você demora a se arrumar, então eu não queria te entregar tão perto de você ir pra casa de Judi.
–Quatro e meia então…
–Está bem! –riu.
Judith
Eu estava saindo da sala com Gre para o intervalo quando avistei Zac… Já faz um tempo que estou tentando falar com ele, mas não consigo, não tenho coragem…
Um dia na cantina, nós duas estávamos falando sobre como tudo começou entre ele e eu… Quésia ouviu parte da conversa e não entendeu… Preferi esperar um tempo pra ver se ela esfriava a cabeça. Já que ela sai muito com Hebrom, eu imaginei que ele fosse dar algum recadinho pra ela não continuar com raiva de mim.
Como ele se faz de sonso e é metido a bonzinho, eu resolvi me aproveitar dessa atuação barata pra poder me retratar com Qué… Felizmente eu também não gosto mais do irmão dele… E acredito que Zacur precise saber disso o mais rápido possível. Eu quero dar a notícia como se fosse um arrancar de band-aid, sabe? Dói na hora, mas depois passa. Afinal, hoje completamos dois anos de namoro. Nosso relacionamento já deu o que tinha que dar.
–Amor! –chamei quando ele estava virando as costas para ir ao refeitório… Ele nem me espera na porta da sala mais… Só sente minha falta quando viajo. Será que ele não percebe que eu preciso de atenção?
Sabe, eu realmente comecei a fazer trabalho voluntário pra fazê-lo me notar, mas não significa que virar colega de Quésia fez parte desse jogo… A Greta às vezes não sabe se colocar.
–Oi, minha lindinha! –me deu um abraço rápido. –Como vão as coisas?
–Bem… É exatamente disso que quero falar com você.
–O que foi? Ah, não, não me diz que você quer ter uma DR logo agora… A gente está no intervalo, Judi, e mais: no corredor. A gente pode falar disso outra hora, não? –segurou minha mão, queria me levar pra comer com ele no refeitório.
–Não. Eu quero terminar.
–O quê? –agiu como se não tivesse escutado direito.
–Eu não aguento mais namorar você. Estou com outro…
–Você me traiu de novo?
–Para de gritar, seja discreto! Há gente no corredor… Você não me trata como antes desde a vez que eu cometi aquele erro… Eu não quis beijar Cristiano, ele que me forçou da outra vez! Mas você também parece incapaz de me perdoar . Você diz que quer recomeçar, mas nunca recomeça. –sussurrei.
–Você está de palhaçada com a minha cara, Judith? Não brinca com isso! E outra, ele não acharia que você está dando mole se você não fosse pra todo show deles e fizesse questão de pagar pra ver de perto.
–Quem dera eu não achasse necessário ir embora desse jeito… Fiquei com Cristiano. A diferença é que dessa vez é por vontade própria. Ele me dá a atenção que eu mereço.
–Quer falar agora que eu não te dou atenção? Carência… Isso foi desculpa pela última vez, Barcelos… Eu até entendo que você faça novos amigos e queira se divertir na minha ausência, mas é só nesse tipo de diversão que você pensa? Cara, eu sempre larguei tudo pra ir te ver! Por que você diz que não te dou atenção?
–Você nem me liga mais!
–Pra que eu vou te ligar se você mora no meu quarteirão? Eu posso ir te ver andando! E eu sempre faço isso!
–Agora já é tarde pra desculpas, eu já nem gosto mais de você…
–Judi, não faz isso comigo…
–Já fiz. Eu não aguento mais correr atrás de você. Se você me deixa correndo atrás, é porque não me quer do seu lado! Você só fica querendo saber dessas suas coisas de igreja o tempo todo…
–Você também tem seus assuntos pra tratar na igreja, mas eu sempre respeito que você não possa ficar comigo o tempo todo!
–Eu não coloco meus pés numa igreja cristã já faz um ano! Você se preocupa tanto comigo que nem sabia disso! Como você diria, estamos num jugo desigual. E, como eu sei que você detesta isso, eu estou te fazendo o favor de ir embora. É um bem mútuo, até porque você está tão ocupado com suas coisas que não cuida mais de mim. Parece que as coisas realmente esfriaram depois de um tempo. Não é mais a mesma coisa… Sabe a viagem?
–O que tem?…
–Foi pra ver um show da banda dele… Foi lá que a gente se falou melhor e ficou junto… Estamos namorando.
–Eu ainda não aceito que você me traiu com o cara que ferrou a vida o sonho do meu irmão, começa a namorá-lo enquanto ainda está num relacionamento comigo… E ainda tem coragem de dizer que a banda dele é a sua preferida.
–Não interessa, você não é mais nada meu e eu não te devo satisfação.
–Por favor, não vá embora… Eu não suporto a ideia de te perder… Por favor, não vá… Eu preciso de você perto de mim. –ele começou a chorar.
–“Por favor” digo eu! Não se humilhe desse jeito. Você teve sua oportunidade.
–Eu posso melhorar, Judi, eu prometo que vou melhorar.
–Eu não duvido disso… Pena que não vou estar aqui pra ver.
–Judith… –Zac disse meu nome soluçando enquanto chorava copiosamente…
Eu odiava vê-lo daquele jeito. Além de namorado, ele foi meu amigo… Eu não podia tolerar ver aquela cena que me doía tanto e não tomar uma atitude… Por isso eu dei as costas e fui embora.