Ordinários

Ordinários – Capítulo 25

Em casa, o meu irmão estava na cozinha.

–E aí, Quésia, como foi a escola? –ele disse com a boca cheia de porcarias oriundas de fast food.

–Foi aceitável… Que lixo todo é esse de novo?

–Meu almoço.

–Almoço? Como você pode chamar isso de almoço? Essa meleca não tem valor nutritivo… Isso é milk shake de chocolate?

–É sim, e se você parar de querer bancar a saudável, eu deixo você ficar com ele.

Olhei pra Edgar com certo descaso, peguei o copo e fui pro meu quarto. Me julgue se quiser, não vai mudar o sabor do milk shake. E… É… Talvez eu tenha que melhorar minha saúde também, se quiser ser cristã de verdade. Eles falam alguma coisa sobre saúde, né? Bem, pelo que eu vi na casa de Salamander, parece que sim. Antes de tomar eu tomei um banho e troquei de roupa. Estava um pouco calor.

Peguei meu celular e vi que já tinha mensagem de um certo branquelo de olhos claros. Ele disse que queria falar comigo pelo computador. Acho que o notebook já serve. Quando eu entrei, ele me perguntou se podia me chamar por vídeo. Eu disse que sim… Não sei o que deu na minha cabeça. Fui correndo tentar me arrumar e tipo… Deu certo não. Ele estranhou a minha demora e disse que ia fazer a chamada. Tocou, tocou, tocou e eu não iria atender até que ficasse bonita… Pois é, ia demorar bastante. Eu queria atender, compensá-lo por ter deixado tão no vácuo por causa daquele assunto, mas eu estava super desleixada…

Hebrom me chamou no bate-papo de novo e perguntou a razão de eu estar demorando tanto. Eu disse que não era nada e ele me pediu que eu dissesse a verdade… Então eu disse. Aí ele começou a me bajular, dizendo que eu era linda e não precisava disso tudo. A ladainha até que foi bem convincente. Resolvi atender logo.

–Oi… –ele acenou pra mim pela webcam. –Eu não sei mexer nisso daqui direito… Sorte que Wendy está aqui pra me explicar.

–Wendel vive indo à sua casa, né? Eu lembro de ter ouvido ele falando naquela vez que você me ligou… Me convidando pra estudar…

–É porque ele é meu vizinho! Ele vem aqui pra jogar. Dá um “Oi” para Quésia, Wendy! –ele virou a câmera na direção do geek, que estava de costas usando o vídeo game.

–Não. –o asiático respondeu.

–Vai, por favor! –Salamander insistiu.

–Oi, Quésia. –virou um pouco a cabeça e deu uma rápida olhada de soslaio… Rápida mesmo. –Pronto, chega.

–Ah, pera aí, cara! Diz que ela não é linda!

–Ela não é linda. –Yamada sequer virou pra me analisar direito.

–Não vale! Você nem a viu!

Eu só fiz o que você pediu pra eu fazer! –o japa deu um berro e Hebrom corou.

–Deixa pra lá, ele tá estressado porque não consegue passar da fase dois… –Hebrom sussurrou pra mim.

Fase três! Não consigo passar da fase três! Não tente diminuir o meu potencial! –ele corrigiu.

–Tanto faz, Wendy, isso é só um jogo. Às vezes dá vontade de jogá-lo fora só para ver se você me visita sem ser por causa dele. “Amigo”… “Amigo”… Estou vendo o “amigo”…

–Foi mal… –Wendel pausou e deu um longo suspiro.

–Tudo bem…

–Oi de novo, Quésia. –o asiático não parecia nem um pouco entusiasmado.

–Oi… Se você tá mesmo ocupado, Yamada, não precisa ficar aqui pra falar com a gente… Não é, Hebrom?

–Eh… Eu só queria um pouco da sua atenção mesmo. Não quero te obrigar a fazer uma coisa que não quer.

–Vocês são dois lindos! Quando eu passar dessa fase, falo com vocês. –ele virou e voltou a jogar.

–Ele acabou de dizer que a gente só vai voltar a se falar quando você tiver a idade de Matusalém… –Salamander enfiou metade da cara num dos travesseiro do sofá. Não entendi a piada… –Falando em idade… Qual é mesmo a sua?

Achei que você soubesse… Já sabia meu nome antes de eu me apresentar.

–Catorze. Quase quinze, na verdade.

–Quatorze?! Meio nova… Não parece… –o rosto dele ficou vermelho e seus olhos, arregalados. Mas depois fez careta e brincou. –Não dá nem para casar comigo ainda…

–Haha! Sorte minha.

–Eu sou tão horrível assim?

–Não é bem esse o ponto… E a gente já falou disso. Não gosto dessa história. Mas e você? Quantos anos tem?

–Dezesseis.

–Só?! Não sei o motivo do drama que você fez. Eu já estava me preparando pra te mandar de volta pra um museu. É meio baixo pra sua idade, não? –o fiz rir.

–Eh… E você é meio precoce… Mas eu alto o suficiente pra você!

–Ha! Gay! –Wendel colocou a mão perto da boca.

Hebrom ficou com a carinha meio amarrada. Eu já disse que ele fica uma gracinha quando faz biquinho? Pois é, me sinto uma idiota dizendo isso, mas é real.

–Então… Como é que tá o trabalho de Artes? –perguntou.

–Ainda nem comecei a pintar… E também, nem sei de onde tirar tinta.

–Ah, eu perguntei pra professora se a pintura com tinta era obrigatória. Ela disse que pode ser qualquer coisa, desde que o desenho fique colorido.

–Hm…

–Quésia, quem você vai desenhar? –questionou meigamente.

–Jesus… –disse olhando para o lado.

–O que houve?

–Não, eu vou desenhar Jesus…

–Quê?! Ah! Que legal! –ele tentou disfarçar sua animação. –Posso ver?

–Claro que pode… –tirei aquele rolo de dentro da minha mochila e abri, tentando fazer com que o Salamander enxergasse.

Eu estava usando minhas recordações dos traços de Hebrom para desenhá-lo… Porque, se eu O conheci, foi por causa desse garoto. Eu queria deixar todas as cores mais opacas e só avivar o sangue e os olhos.

–Está muita realista! Wow! Não sabia que você desenhava tanto!

–Agradeço… E você? Vai desenhar o quê?

–Uma vez eu vi um quadro da rainha Ester… Vou tentar copiar, só que com alguns ajustes. Como eu também não sei como ela era exatamente, assim como nós dois não sabemos exatamente como era Jesus, ela disse que eu poderia fazer algo que esteja relacionado a ela. Tipo, uma garota bonita.

–Rainha Ester? Garota bonita?

Não, não sou ciumenta a ponto de ter raiva de um desenho… Bem… Talvez um pouco.

–É de uma história… Eu vou tentar resumir: Ester vivia com seu tio porque era órfã. Um dia, o rei Assuero mandou matar sua esposa, Vasti, por ter se recusado a assistir um dos banquetes do rei… Aí ele resolveu fazer um concurso para encontrar uma rainha mais bonita do que a antiga. O tio de Ester, Mardoqueu, disse pra ela participar do concurso. De certo ela venceu, porque era muito bonita. Mas tinha um problema, ela era judia e… Então… O que é isso que você tá tomando? –ele notou o barulho que eu estava fazendo… Droga.

–Ah… Milk shake de chocolate.

–Sabia que esse tipo de coisa que você gosta vicia?

–Eu não sou viciada em cafeína.

–Então para de tomar essa coisa, chocólatra.

–Não sou chocólatra. Eu posso parar quando eu quiser, Hebrom. Só que eu nunca vou querer…

–Sei… A verdade é que você não consegue.

–Eu não vou cair no seu joguinho, Salamander.

–Não é joguinho, é só a verdade… Qué, você dorme direito?

–Geralmente não… Por quê?

–Bingo. –ele deu uma olhada super irônica em mim. Se preocupa mais com minha saúde do que eu… Nunca vi. Vai cuidar da tua vida, meu filho. –Enfim, voltemos.

–É, é, concordo. Vamos voltar à história. O que tem a ver o fato dela ser judia?

–É que há um homem que é próximo do rei e procura tomar o reino.

–O que tem a ver?

–Esse homem odeia o tio de Ester por ele não se prostrar perante ele.

–O que tem a ver?

–Ele quer matar todos os judeus…

–O que tem a… Eita… E depois?!

–E depois eu não vou contar o final.

–Por que não?! Tá, eu paro de tomar o milk shake, mas conta! Eu detesto história sem final. Diz logo!

–Não é isso! Eu quero que você descubra sozinha!

–Tá e onde é que eu vou achar a versão verdadeira dessa história?

–Você gosta de ler?

–Lógico!

–Então eu compro uma Bíblia pra você.

Bíblia? Essa história é da Bíblia? Eu admito que, mesmo com a minha grande aceitação depois de chorar como um bebezinho naquela igreja, eu ainda tinha um certo pé atrás. Mas depois eu me senti meio estúpida de ter desgostado apenas por ele ter usado a palavra “Bíblia”. Nunca li e já estou dizendo que não é boa… Deve ser por causa da primeira impressão que eu tive de Deus. Se eu não gostei de Deus logo, acho que também não gostaria da chamada Palavra dEle… Se bem que eu acabei curtindo depois… Além disso, aquele livrinho que Salamander me deu até que era interessante… Acho que quero ler, sim.

–Comprar?

–Isso. Vai ser seu presente de aniversário.

–Meu aniversário ainda tá meio longe, pra ser sincera.

–Então… Vai ser o presente de aniversário do ano passado!

–Tá certo. –rimos juntos.

–Hey… Seu irmão está mesmo aceitando que você ande comigo?

–Ah… Ele parece estar cagando.

–”Cagando”? O que é isso?

–Ah… Esquece essa palavra. É feia. Digamos que ele não está se importando. Ele nem comentou nada quando cheguei… Acho que ele está um pouco mais quieto do que o normal até. Será que ele está bem?

–Por que não pergunta?

–Eu não, ele é uma porcaria pra se conversar.

–Por que você não tenta dessa vez? Vai que Deus amolece o coração dele.

–Há… Duvido muito.

Meu comentário parecia ter deixado Salamander um pouco desconfortável. Resolvi terminar a chamada antes que eu dissesse alguma coisa pior.

–Eu… já vou. –falei.

–Ah, já?! Mas está muito cedo, Qué…

–Tenho que terminar o trabalho.

–Certo, não quero te atrapalhar… Boa tarde! Fica com Deus. –ele deu um beijo estalado na webcam. Esse garoto é meio maluco… Mas maluco de um modo bom. Pelo menos é o que eu considero… agora.

Fiquei pensando e o assunto de mais cedo veio à tona… Eu não quero me converter só pra agradar Hebrom… E tampouco só pra ser uma pessoa boa. Você não precisa de religião pra ser uma boa pessoa, mas às vezes ela é um incentivo. Não sei como eu passei tanto tempo sem acreditar em nada… Vai ver era porque eu estava demasiadamente ocupada com o caos que era minha vida no orfanato. Eu nunca fui de parar pra pensar nas coisas, como faço agora… Espero que isso seja uma evolução.

Desci as escadas e vi que Cortês assistia o noticiário. Fui tentar assistir também. Só dava desastre o tempo todo. Quando tinha uma notícia de que alguém fez alguma coisa boa, era como se a pessoa fosse um alienígena. Fazer o bem virou uma coisa rara… E todo mundo acha isso normal. O que há de errado com eles?

A única certeza que me deu, é que eu não quero fazer parte desse tal “todo mundo”. Eu não quero fazer a diferença no planeta, eu não quero que as pessoas recordem de mim por eu ter pensado em coisas revolucionárias… Se eu conseguir socorrer alguém já está bom. Pelo menos faço a diferença no planta daquela pessoa. Marisa vivia me dizendo que quem salva uma vida, salva o mundo. E o mundo em que vivemos está clamando desesperadamente por salvação… Isso é inegável.

–Só passa coisa ruim nessa TV… Não sei o motivo de você continuar assistindo.

–É a realidade, oras. –respondeu.

–Não gosto da realidade.

–Certo, mas vai ter que aceitá-la… Ou talvez crie um mundo imaginário, como a maioria das pessoas faz. Imagine que existe vida após a morte… Há tanta gente acreditando nisso. Vivendo como se fosse eterno… Mas, particularmente, eu só não te digo pra viver como se fosse o último dia da tua vida porque eu sei que você ia sair fazendo um monte de cagada por aí, me fazendo passar vergonha.

–Hm… Entendi… –dei uma pausa e depois chamei-o. –Edgar…

–Diz aí, nanica.

–Você acredita em Deus?

–Acredito sim… Por quê?

–Ah, sei lá… Achei que a resposta fosse “não”.

–O quê? Só porque eu não sou um anjinho de pessoa? Eu me esforço, sabia? Mas eu não me digo cristão… Sei que eu tô muito longe de ser isso. Sei lá, né?… Além disso, eu não conheço todas as religiões completamente. Não sei se alguma delas presta ou se tem alguma em que eu me encaixo… –quando ele disse isso, eu o fitei. – Ah, tá, já sei. Você vai falar “Se você pensa assim, por que detesta tanto a religião do meu namoradinho?”.

–Eu não ia dizer isso… Mas até que é uma boa questão..

–Quer saber? A religião de Hebrom fala sobre uma coisa que Deus dá, e eu gosto muito. Se chama “livre arbítrio”, que é a liberdade de escolha… E eu escolhi ficar bem distante do povo daquela igreja maldita.

–Não sei se rio ou se choro depois de ouvir isso.

–Ah, por favor, para de defender! Ouvi dizer que aquele povo nem lava a louça no Sábado!

–Não tem problema, eu não lavo a louça em dia nenhum.

–Verdade. Mas não vem ao caso. –vem sim. –A minha pessoa não tá tentando te influenciar em nada, ok? Não importa sua crença… Desde que você tenha uma boa índole, eu vou me orgulhar de te chamar de irmã…

–Verdade?

–Não. Mas foi bonito o que eu disse, não foi?

–Você é um mané.

–Um mané que você vai ter que aturar até virar maior de idade, tchutchuquinha. Que fique claro que debaixo do meu teto não é permitido crente bitolado. Edgar rules! –Cortês deu uma piscadela e fez aquele gesto com as mãos como se elas fossem armas.

Show de bola essa coisa de ter um pensamento super lindo e não colocar ele em prática… Me lembra aqueles discursos de Miss Universo pedindo a paz mundial. Fui pro meu quarto e olhei pra cima, através da janela:

–Escuta, eu não sou nem doida de Te ameaçar… Mas eu só queria dizer que espero que Você tenha uma boa compensação pros humanos decentes que estão sofrendo aqui. Pelo que eu li sobre Você, Deus, é onipresente e tudo mais. Eu sei que você tá ouvindo! Se é que Você é real, né?… Acho que sim… Mas enfim, dá pra perceber que eu estou tentando acreditar na Sua existência… Tô até aqui, aparentemente falando com uma nuvem… Parecendo uma louca… Ai, eu acho que isso não é pra mim…

Seja como for, aposto que se eu pedir um sinal Você vai me deixar no vácuo, porque eu não faço o que Você quer, acertei?… Ou talvez não… Ah, dane-se isso, vou pedir do mesmo jeito! Se Você for bom do jeito que dizem, por favor… Ahm… Não me deixa morrer sem saber que Você é real… Como eu já disse, se Você for mesmo, é claro… Porque não tem cabimento pedir alguma coisa pra alguém que não existe e… Ah! Você entendeu. Acho melhor eu parar com isso. –fechei a janela.

Agora eu não sei o que fazer pra descobrir se ele me atendeu… Bem que podia aparecer escrita no céu “Visualizada.” pra facilitar a minha vida… Por que tudo tem que ser tão complicado? Ainda mais esse assunto que eu só parei pra refletir agora. Eu fiquei alternando em fazer coisas que todo mundo faz naquele dia… Tentei me manter ocupada com seja lá o que for… Eu não queria mais pensar nesse assunto por hoje.

Depois que terminei minha oração (ou tentativa de oração), fui até lá em baixo falar com Edgar por ter lembrado de uma coisa…

Biquíni? Comprar um biquíni? Como assim?! –começou a rir escandalosamente após o meu pedido, se contorcendo no sofá.

–Se não quer me ajudar, esquece, eu vou de roupa normal à praia mesmo…

–Não, não, tipo, eu compro hoje mesmo, de boa. Só que você vai fazer aquele branquelinho passar mal, hein? Coitado, você tá jogando sujo com o garoto, menina seduzente.

–Pode ser um maiô, não precisa ser necessariamente um biquíni. Só quero uma roupa de banho. –a zoeira dele estava me incomodando, por isso evitei até de dar pilha.

–Não, sem chance! –ele pegou as chaves do carro. –Agora que você falou, eu vou comprar um biquíni mesmo.

–Eu vou me arrumar e já volto.

–Você não vai, linda. Você tem trabalho pra fazer.

–Você estava ouvindo minha conversa?!

–Talvez. E, não se preocupa, eu sei o seu número de roupa… Além disso, eu tenho bom gosto. –ele arregalou os olhos e deu um sorriso psicopata enquanto levantava para ir até a porta.

Sinto que estou ferrada… Convencer Edgar a comprar algo do meu interesse nunca foi tão fácil assim. Ou ele vai zoar a minha cara ou minha cara será zoada por ele. Certeza.

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