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Ordinários

Ordinários – Capítulo 24

Quésia

Quando terminou o intervalo, nós tivemos aula de Ciências. Fomos levados até o laboratório. Quase no final da aula, o professor começou a falar sobre corpo humano. Enquanto falava, ele parou perto de Hebrom e disse:

–Ora, se não é o menino que se alienou no fim do ano passado! Bom dia pra você! Não sabia que estava nessa sala.

–Bom dia, professor. –o garoto respondeu num tremendo constrangimento.

–Já que você está aqui… –o homem voltou à frente do local. –Chega mais!

Salamander ficou olhando os próprios pés. Impressão minha ou o ele estava sendo zombado?

–Ô, propenso a câncer de pele, vem pra cá! Estou te chamando. Vai servir de exemplo pra turma, já que o nosso esqueleto não está mais aqui.

Pois é, ele estava sendo zombado. O professor começou a apontar alguns ossos do corpo do rapaz e nomear. Logo depois, disse que o ser humano se desenvolveu através de muitos anos e começou a fazer referências à conhecidíssima “teoria do evolucionismo”. E pelo o que eu entendi, ela contrariava completamente o que Hebrom acredita.

Muito interessante essa infantilidade do professor… Ficar jogando indireta… Isso daí foi o cúmulo. Representou muito mal. Minha professora de Ciências do orfanato parecia não acreditar em Deus também, mas ela não ficava desrespeitando nenhum aluno, ela era muito legal.

Eu tinha que me levantar pra falar alguma coisa, não importava se eu tinha vergonha. Afinal, era do meu único e melhor amigo que ele estava caçoando.

–Isso daqui não era uma aula sobre o funcionamento do corpo humano? –Folk se levantou primeiro do que eu. Foi um choque ver que ele estava por ali, já que geralmente mata aula…

–Sim, mas eu estou fazendo o favor de explicar como surgiu o…

–Detenha-se ao que eu te perguntei.

A interrupção de Folk deixou o professor com cara de “E desde quando eu sou tuas negas?”. A tentativa de bad boy continuou argumentando:

–Eu já conheço o livro que a gente está usando. Não é novidade pra ninguém o fato de eu ser repetente. Até onde eu sei, não tem nada sobre evolucionismo nele. E você também estava tentando dizer que todos nós somos viemos de um mesmo antecessor que os primatas… Certo? Mas eu diria que algumas pessoas da sala poderiam te processar por chamá-las de parentes de macacos. Tá ligado que isso é racismo, né? –os estudantes começaram a rir do comentário (idiota e) final dele.

–Pois bem, senhor Folker. Pelo menos dessa vez eu fiquei feliz por você interromper minha aula pra soltar uma de suas diarreias orais. Vejo que alguma coisa você aprendeu. –o professor falou, colocando Hebrom um passo à frente. –Volte pro seu lugar.

Preciso falar com a diretora… Aquela humilhação parecia ter deixado Salamander triste de novo. Incrível, quando tá tudo certinho demais sempre entra uma pedrinha no sapato pra estragar. É péssimo quando você faz um amontoado de esforços pra deixar alguém bem e outra pessoa consegue destruir tudo só com um peteleco.

Gente ruim assim faz a vida parecer uma cobradora de impostos… Quando conseguimos momentos felizes, ela nos exigiria com juros. Algumas pessoas foram tão importunadas que chegaram ao ponto de não conseguir sorrir nem tentando lembram as coisas boas do passado, porque as coisas ruins sobrepõem. Um tenta causar a infelicidade do outro, mas não percebemos que colocar alguém pra baixo não nos eleva… Continuamos a mesma porcaria.

Alguns minutos depois, fomos liberados pelo professor. Hebrom se despediu de Jamal e foi andando comigo e com Wendel. Nenhum deles parecia preocupado com a chacota que o professor fez com o garoto. Será que Salamander não quer que ninguém diga nada à diretora? Preciso perguntar isso pra ele… Fiz quando chegamos ao ponto de ônibus:

–Hebrom…

–Sim?

–Hm… Sinto cheiro de DR. Vou beber água, depois eu volto. –Yamada saiu dali sentindo um suposto clima pesado.

–Aquilo na aula de Ciências… Por que deixou acontecer? –continuei.

–E o que você queria que eu fizesse? Aquele professor já conhece meu ponto de vista em relação ao evolucionismo. Não acredito, mas respeito quem acredita.

–Não é bem isso… É que você deixou o cara zoar você o tempo todo.

–Qual o problema?

–Como assim “Qual o problema”?!

–Você queria que eu revidasse? Isso também vai contra o que eu acredito, sabe? Deixa ele falar mal, deixa ele desgostar… Porque isso não vai mudar a minha fé. Todo mundo precisa viver por algo que vale a pena morrer… Se você não tem esse “algo”, você não está vivendo direito. E cada um acredita no que quer acreditar. Eu respeito a crença dos outros, mesmo que elas não respeitem a minha. Vendo de outro modo, é uma honra ser zombarem de mim por causa do que eu amo e o que tento ser agora… Melhor do que ser julgado pelo que eu já fui. –ele deu um sorriso pequeno.

–Sei… Você é afável demais… Isso é estranho.

–Eu não sei o que isso significa. –ele riu.

–Gentil.

–Ah, sim! Obrigado… Só que eu não me considero isso. Do que adianta pensar desse jeito e não fazer, certo?

–Olhando como segunda pessoa, eu acho que você faz sim… E você não pode ficar se criticando dessa maneira. Se você pode aceitar os defeitos dos outros, também poderia aceitar os seus… Mas sempre tentando melhorar.

–Eu gosto do seu jeito de pensar, Qué… Você também é muito arfa… afa… afra… Ah, você é gentil. –riu por não saber pronunciar.

Amor?! –Zacur deu um berro. Ele estava acabando de chegar, segurando a mão de Dileã.

Não entendi o motivo dele gritar aquilo, até ver que uma certa menina de cabelo verde vinha correndo e quase se jogou em cima dele.

–Sentiu a minha falta, namorado? –Judith perguntou.

O quê?! Eu quase morri sem você aqui! Te proíbo de viajar, se continuar assim.

Namorados… Sinceramente, por essa eu não esperava. Teria sido uma cena romântica eles dois juntos caso Dileã não estivesse perto dos dois, fazendo cara de nojo… Essa menininha é demais.

–Por que você não me disse que eles estavam juntos? –perguntei sussurrando a Hebrom.

–Pensei que você já soubesse… Espera… Você gostava do meu irmão?

–Não! Caramba, você só pensa que gosto dos outros! Que saco!

–Ah… Desculpa. Menos mal. É que eu já estava com um pouco de ciúmes de você sendo amiga da namorada dele na verdade…

–Você não quer que eu tenha amigos além de você, não é?

–Muito pelo contrário…

–Ai, garoto, não dá pra te entender…

–Você pode ser amiga de quem quiser… Mas eu não quero que se esqueça de mim.

–Achei que a gente já tivesse conversado sobre isso.

–Desculpe outra vez. –ele suspirou. Nesse sentido, Salamander é bem mais medroso do que eu.

O ônibus chegou quase vazio e nós subimos. Foi meio tosco ver Zacur dando tchau pra Judi até perdê-la de vista. Era como se cada metro fosse uma facada nele… Depois sou eu que faço drama…

–Sinto que estou esquecendo… –Hebrom comentou, sentando ao meu lado no ônibus.

–Esquecendo o quê?

–Ah! Wendy! Espere por favor! –ele saiu correndo, todo desesperado.

A sorte dele foi que o motorista já o conhecia… E se dava bem com ele. Yamada estava correndo atrás do transporte e entrou nele bufando.

–Correr… Atrás… De ônibus… É… O cúmulo… Da… Pobreza… –o asiático botou as mãos no joelho. Mal conseguia respirar. Depois disso, se atirou em um banco qualquer e pegou seu vídeo game.

–Nem me lembrava mais dele… –falei com Salamander, que ia vindo até o fundo do ônibus pra retornar ao seu lugar.

–Coitado, Qué! –sentou-se de novo.

–Mas… Por que de manhã ele não foi com a gente?

–É que o pai dele o traz, mas trabalha de tarde… O lado bom é que ele vem com a gente!… Na maioria das vezes…

O mais interessante é que nós não temos assunto… E mesmo assim Hebrom não desiste de ficar perto de mim. Estava tudo bem quieto, até que ele disse alguma coisa:

–Olha… Não é porque eu sinto ciúmes que eu não confie em você, tá bem? É que… Ah, eu não sei explicar direito… Quer dizer, eu sei… Só que dá medo de você ficar com medo de eu contar.

–Hm… Sei. –balancei a cabeça assentindo. Eu nem sabia exatamente com o que eu havia concordado.

–Você entendeu mesmo?! –ele ficou vermelho.

–Não.

–Ah… É que… Tipo… Eu gosto de você.

–Sim… Você já me disse isso algumas vezes.

–Não é isso… Sabe daquela vez que eu disse que não era pra você pensar no que estava pensando? Então… Eu quero que você pense isso agora.

–Do que você está falando?

–Eu… Eu não sei explicar!

–É, isso eu entendi.

–Sim… Ah, ao menos você entendeu alguma coisa. –ele riu. –Eu te amo!

–Eu… também…

–Sério?! Então…

–Fala…

–Melhores amigos pra sempre?

–Ah… Claro…

Não entendi nada mesmo. Se eu tivesse gráfico de sentimentos, ele seria patético, com certeza. Pois é, a vida tem dessas coisas… Depois disso, ele pegou o celular e perguntou se eu queria ouvir música com ele. Aceitei. Hebrom meio que afastava o aparelho de mim, como se não quisesse que eu visse o que tinha ali… Suspeito.

A música que ele colocou falava sobre Deus e ajudar as pessoas… Não esperaria uma coisa diferente vinda dele, mas, cá entre nós que adolescentes “normais” não costumam ouvir esse tipo de coisa… Não que a melodia seja ruim… Ah, sei lá. Eu me voltei pro Salamander e ele estava olhando a janela e fazendo mímica da letra da música.

Finalmente ele estava mais animadinho. Eu não quero mesmo ser a razão da tristeza dele… Ele parece tão feliz com Deus… Quando ele percebeu que eu o fitava, virou e começou a dublar. Era engraçado ele gesticulando daquele jeito.

–Corta! –Zacur falou e quando eu fui olhar para ele, vi que o garoto estava com a câmera do Hebrom nas mãos.

–Poxa, Zac, eu já pedi pra você não mexer nas minhas coisas… –o de olhos verdes levantou e foi pegar a câmera de volta.

–Não fui eu. O flango ali que estava vasculhando a tua mochila!

–Tem umas coisas bem legais aqui dentro. –o rapaz bem alto disse na cara de pau, ainda pegando os pertences do garoto. Dileã estava perto dele, olhando. Parecia se dar muito bem com o japa, diferente da maneira que lida com seu irmão (apesar de terem personalidades um pouquinho parecidas).

–Wendy! –Hebrom foi em direção a eles.

E eu fiquei ali… Com o celular… Sozinha… A música tocando… Mas ela não combinava com a situação. Deveria ser uma trilha sonora de suspense, porque eu queria descobrir o que tinha naquele aparelho… Uma vez me disseram que se você quer descobrir os segredos mais obscuros de uma pessoa, se você tiver posse do celular dela, oitenta e sete por cento do trabalho já está concluído.

Ele disse que confia em mim… Por que será que ele não me deixa ver então?… Ah, não, eu não posso fazer isso… Ele vai se aborrecer. Eu acredito que ele vá me dizer o que tem ali quando estiver à vontade comigo. Sim. E não deve ser nada demais… É. Não posso mexer. Nem o botão de bloqueio eu devo apertar.

Bem na hora que meus devaneios acabaram (tô muito reflexiva hoje), Hebrom voltou e disse:

–Obrigado por não ter ficado usando meu celular sem me pedir… Certas pessoas têm educação, sabe? Diferente de alguns otakus, geeks e gamers que vasculham as mochilas alheias.

–Isso foi uma indireta pra mim, senhor Hebrom Salamander? –Yamada levantou, como se fosse fazer um barraco.

–Não, senhor Wendel Yamada Matsumura, isso foi uma direta mesmo! –o garoto disse rindo.

Às vezes aqueles garotos até me faziam esquecer que tinham outras pessoas no ônibus além da gente. Os amigos de Hebrom são bem extrovertidos… Extrovertidos até demais.

Enfim, chegou o nosso ponto e nós descemos. Quando eu ia atravessar a rua, Hebrom me segurou pelo braço e me chamou:

–Quésia…

–Pois não?

–Não esquece de fazer o trabalho de Artes, por favor… –tá certo, não deu pra evitar de fazer uma cara meio que de repulsa depois dessa.

Eu sei que ele não fez por mal, eu sei. Além do mais, ele não tem a obrigação de gostar de mim do jeito que eu gosto dele só porque é meu amigo. Cada um fica com quem quiser e as outras pessoas deveriam respeitar isso, mesmo que não concordem… Mas… Na moral… “Trabalho de Artes”? Misericórdia… Queria achar uma forma de ficar com ele.

Quando eu estava no meio da rua, ele apareceu atrás de mim, me virou, disse “Tchau.” sorrindo e saiu correndo. Bem… Menos pior, né? Eu acho… Mas continuou decepcionante.

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