Ordinários – Capítulo 21
Richard
Era uma noite fria e como sempre eu me sentia desolado. Fui até aquele velho bar escuro tomar uma cerveja para esquecer um pouco os problemas… Lá as bebidas eram de péssima qualidade, mas aquele lugar maldito me trazia boas recordações. As pessoas que apresentam suas músicas naquele lugar não são muito boas. Talvez eu tenha isso em mente simplesmente por já ter conhecido talento melhor… Sinto saudades daquele desgraçado… Mas ele vai pagar pelo que me fez… Um dia ele ainda vai voltar rastejando aos meus pés.
Quando entrei ali, eu via o mesmo cenário deprimente da época em que era o melhor amigo de Hebrom… Vários cachaceiros sentados em pequenas mesas de madeira, olhando a pessoa que se expunha subindo no palco. Às vezes com uma gaita, às vezes com um violão…
Ao sentar num canto, coloquei o celular nas gravações dele cantando aqui nesse mesmo lugar. Eu ouvi muitas… Até que chegou minha preferida: “Moon on the water” do Beat Crusaders. Era uma música que o amigo chinês lá dele gostava… Apesar de aquele garoto só ouvir abertura daqueles desenhos de olhos grandes, essa até que era boa. Enquanto ouvia, uma lágrima escorreu do meu rosto e foi parar na quinta caneca que tomava… Fui mesmo um otário por depositar tanta expectativa naquele idiota… Parece que meu castigo por isso é sentir falta dele pelo resto da minha vida.
Eu fiz Hebrom subir daqui até um compositor famoso de umas bandas mais conhecidas da região… E ele me agradeceu me dando as costas para virar crentelho. Ele me trocou por Deus… É um dos meus motivos para detestar religiões. Ele ficou fanático, por isso não quis mais saber de mim. Cristiano, no dia em que briguei com ele, disse que Salamander não iria mais me querer por perto por ser cristão… Eu não quis acreditar, porque eu tinha laços muitos fortes com ele.
Mas, no fim, aquele miserável acertou. Foi no hospital… Eu estava todo ferrado por ter defendido aquele bosta do Hebrom, até prometi que nunca deixaria Dagom machucá-lo ou zombar dele outra vez… E ele não pensou duas vezes em me dizer que abandonaria a banda. Naquela noite chuvosa, eu saí dali com minha moto… Estava difícil enxergar. Como se não bastassem as gotas da chuva, eu ainda tive que suportar minhas lágrimas nos olhos, que eu me esforçava para que não descessem, por mais que pesassem… Eu sei que não daria pra notar por meu rosto já estar molhado, mas eu já tinha meu orgulho… Não queria admitir que me importava de imediato.
Foi aí que veio um carro na minha direção. Eu não tive tempo de evitar, mas ele desviou por impulso e bateu numa árvore… Como se aquele dia não fosse catastrófico demais, um cara de cabelo tipo branco morreu por minha causa… Eu não sinto tanta culpa por isso, eu sei que não foi proposital… Eu lamento pela família dele, se é que ele tinha família. Para estar andando de carro numa rua vazia àquela velocidade, parecia não ter. Ou ele tinha enchido a cara, ou estava desesperado e com pressa.
Seja como for, essa foi a pior noite da minha vida. Meu melhor amigo apanhou, tomei uma surra no lugar dele, paramos no hospital, ele rompeu nossa amizade, provoquei um acidente e consequentemente uma morte. Não sinto a menor nostalgia disso.
Mas pelo menos eu evoluí… Eu acho… Agora estou aqui, sentado num banco do bar, ouvindo gente desafinada e bebendo minha cerveja com gosto de alvejante. Ainda me dói lembrar daquele branquelo azedo… Eu sinto falta de ouvi-lo cantar. Cá entre nós, ele é e sempre foi mil vezes melhor que Cristiano… Paganus só está bombando agora por modinha, daqui a pouco cai e ninguém lembra mais.
–Ei, monturo, vai fingir que não nos viu?! –essa voz desafinada… Só poderia ser Dagom, a cacatua cor de rosa. Enxuguei meu rosto discretamente, para que ele não percebesse que chorei.
–O que você está fazendo aqui, Cristiano? –resmunguei tirando um dos meus fones, sem olhar em seus olhos, e dando mais um gole na cerveja.
–Não lembra que dia é hoje, bundão? –ele questionou e respondeu logo que percebeu que eu o deixaria no vácuo. –Aniversário da banda.
–Um brinde à pior merda que já entrou para o mundo da música! –levantei minha caneca, fazendo com que derramasse um pouco no balcão. O barman bem me olhou torto, mas eu caguei pra isso. Sarcasmo era minha prioridade no momento.
Antigamente eu me importaria mais… Era capaz até de Hebrom me fazer limpar. Ele sempre foi muito bonzinho…
–Merda essa que você ajudou a fundar e hoje é uma das mais ouvidas da cidade.
–Essa cidade também é uma merda, não me surpreende que combinem. –eu estava começando a irritá-lo com essa indiferença.
–Mas e aí, tá com saudade dos bons tempos com seu namoradinho e veio aqui lembrar dele? Porque parece que você continua não dando a mínima pra banda… Isso desde que ele apareceu.
–Pergunte quando isso for da sua conta.
–Uia! Cuidado com ela, tá estressada.
–Você não veio sozinho, veio? –olhei para trás e vi o pessoal da Paganus acenando. Acho que não precisava nem cumprimentar, aqueles cabelos coloridos, os piercings exagerados e as tatuagens chamam a atenção de qualquer um. –Ah, claro, o bonde das vadias submissas veio com você… –para ser honesto, eu não tinha nada contra eles, falei aquilo mais por eles serem quase que servos de Cristiano (vulgo “Dagom”).
–Uma pena a sua não estar aqui, né? Você parece bem deprimido. –comentou. –Mas acho que nenhuma depressão justifica a demência mental de alguém que vem para um bar de música colocar fones de ouvido.
–A partir do momento que eu não estou causando dano a ninguém, isso é da minha conta, não da sua.
–Calma, totó!… Filosofou, hein? Mas então, o que é que você tá escutando aí? Nosso novo álbum? –Cristiano enfiou aquelas mãos de brutamontes no meu bolso e pegou meu celular.
–Devolve, seu retardado! –levantei e tentei puxá-lo de sua mão.
–Vai lá, pode admitir! Não precisa se envergonhar de gostar do nosso som, nós sabemos que somos bons! –ele mostrou aquela língua grande (sempre, sempre grande demais). –Ah, não! –disse, porque não precisava desbloquear para ver o que era. –Sério isso?! Miséria, cara, você tá apaixonado mesmo!
–Vá se ferrar, sua opinião não me faz falta! –ele me empurrava, para que eu não conseguisse pegar de volta.
–Mas parece que o Vampiro faz! Tá sentindo falta de levar umas mordidas dele, seu viadinho? –ele continuava mais forte que eu.
–Para de chamá-lo desse apelido idiota! –dei um empurrão nele enquanto me lembrava da promessa que fiz para defender Salamander em relação a esse babaca.
–Tá disposto a defender seu macho, é? Que lindo. –caçoou. –Vem cá, sem zoeira agora, vocês já se beijaram?
–Que tipo de pergunta é essa? –meu rosto ficou vermelho… Não, eu não sou apaixonado pelo Hebrom, mas a pergunta foi constrangedora. Pelo menos eu acho que não sou… Aquele garoto me confunde.
–Só uma pergunta qualquer. Já se beijaram? Eu não duvido que tenha rolado. Você bêbado, ele dormindo na sua casa… Talvez você nem lembre! Não acho anormal, duas baitolas que viviam grudadas e ficando sozinhas em tudo quanto é canto… Bem capaz de vocês terem dado uns amassos. Vocês poderiam ter pelo menos se assumido, né?
Meu rosto ficou ainda mais vermelho. Eu estava com vergonha, mas acima disso, estava com raiva. Ele veio com as piadinhas homofóbicas de novo pra cima de mim, eu sei quando esse lixo fala em tom pejorativo. Eu simplesmente me recusei a deixar isso barato, meu punho foi direto na sua cara e ele colocou a mão no queixo. No bar, não deram muita atenção a isso no instante exato.
–Seu soco melhorou, bichinha. –mesmo depois da porrada, ele continuava sorrindo para me provocar. –Mas se a intenção era me quebrar, não deu certo. Quem vai quebrar alguma coisa aqui sou eu… –ele arremessou meu celular no chão, fazendo com que espatifasse no chão… Isso foi a gota d’água…
Comecei a bater diversas vezes nele… Seu nariz começou a sangrar, mas por algum motivo ele não revidava, só procurava se resguardar, mas ainda com aquele sorriso sínico no rosto. Estranhamente, o pessoal da Paganus só ficou olhando… Deve ter sido tudo armado, porque aqueles capachos viriam correndo defender Dagom. O rapaz que estava lá na frente até parou de cantar e o barman pulou o balcão para me separar dele, mas não deu muito certo, um garçom precisou vir me segurar… E parecia que o que Cristiano queria foi conquistado: Fui expulso.
–Eu nem terminei de beber! –reclamei.
Eu te dou uma garrafa, mas caia fora daqui. –o garçom sussurrou me soltando. –O chefe não quer baderna no bar!
E assim eu fui parar no beco que dava ao passar pela porta dos fundos daquele local maravilhoso. Era muito mal iluminado e eu surtei chutando algumas latas de lixo. Eu dei alguns goles na garrafa que estava em minha mão, depois lancei-a contra a parede e ela se estilhaçou em vários cacos. Eu não conseguia parar de chorar, eu estava morrendo de raiva… Eu odeio Cristiano… E eu quero meu amigo de volta…
Eu estava começando a ficar um pouco bêbado e resolvi tomar uma decisão nesse momento de “coragem”… Resolvi ir até a casa de Hebrom… Eu não sei bem o que vou dizer… Eu só quero vê-lo. Fui andando pela calçada. Por sorte, não era tão distante dali.
Pulei a cerca branca do seu jardim de trás… Ao longe, vi um carinha na cadeira de balanço que ficava perto da porta do quarto. Sim, o quarto dava direto pro jardim de trás, parecia até uma pousada. Eu tinha certeza que era Zacur. Não era exatamente quem eu esperava ver de primeira, mas tudo bem, estou chegando perto.
–Você não deveria estar acordado, está muito tarde.
–Você não deveria estar invadindo minha casa, é crime. –ele arqueou as sobrancelhas, porque sabe que eu não tenho nem um resquício de moral para corrigir os outros. –E muito menos tomar tanta bebida alcoólica.
–Mas que diabos…?! Como você sabe?
–Dá pra sentir seu bafo daqui…. Se veio pra perturbar meu irmão, chegou atrasado. Ele está dormindo…
–E-Eu posso vê-lo?
–Claro… Pode entrar… Desde que não quebre ou roube nada.
–Você pensa muito mal de mim…
–Você faz por merecer.
–Verdade… –fui me aproximando da casa. –Vem cá, sério, por que você tá acordado?
–Não consigo dormir… Discuti com Hebrom… Agora tô aqui pedindo perdão a Deus…
–Deus… Tsc… De qualquer forma, já que você brigou com Hebrom, não deveria pedir desculpas ao Hebrom?
–Sim… Mas eu não quero acordá-lo… Eu disse coisas horríveis pra ele… E, como sempre, ele continuou agindo daquele jeitinho tapado. Eu sinto vergonha de ter sido mal com ele.
–É difícil mesmo ficar chateado por muito tempo com essa criatura… Você tem sorte de poder brigar com ele e fazer as pazes logo depois.
–Você também pode fazer isso, Folk. –ele parou de balançar-se na cadeira.
–Sim, mas eu não tenho grau de parentesco com ele, acho difícil ele esquecer tão rápido o jeito que eu o tratei. –fui entrando no quarto e vi Hebrom deitado de lado dormindo profundamente… Ele continua dormindo feito uma pedra.
–Do jeito que ele é, aposto que ele já esqueceu faz tempo. Você que não entende a cabeça dele. Aliás, é difícil mesmo de entender… Mas demorar a perdoar nunca foi defeito dele. Hebrom te ama, o problema é que você perturba tanto que ele se estressa. Você é um mito mesmo… Fazer Hebrom Salamander perder a paciência… Que proeza. –Zacur riu. –Por que você não tenta conversar civilizadamente com ele na escola do mesmo jeito que está fazendo comigo?
–Eu não consigo. –fui chegando mais perto da cama de Brom.
–Como não consegue? Seu orgulho não deixa?
–Não é bem isso, não sei expressar meus sentimentos quando se trata dele. Pra ser sincero, eu nem sei o que sinto por ele… –mexi levemente na sua franja.
–Relaxa, você não está apaixonado por ele. –o garoto disse no tom mais tranquilo do mundo.
–O quê? –até me assustei e me afastei de Salamander.
–Você não gosta dele desse jeito, você só está com ciúmes. Estranhamente, parece que você está com ciúmes de uma coisa que nem acredita.
–Deus?
–Exatamente.
–Eu não sei ao certo se acredito…
–Mas que está com ciúmes por Hebrom ter parado de andar com você pra ficar com Ele, isso é óbvio. É normal você ficar se sentindo assim em relação a um amigo quando se sente ameaçado ou trocado. O professor de Biologia do meu ano até comentou sobre isso. Eu já fiquei com ciúmes da Ágata, por exemplo.
–Mas é diferente, ela é uma garota. –franzi a testa, achando aquele argumento meio absurdo.
–Sim, mas ela é bem masculinizada e eu nunca a vi além de minha melhor amiga. Ela é como um garoto pra mim. Cá entre nós, eu não me surpreenderia caso ela virasse pra mim e se assumisse lésbica. Ela não fica com garoto nenhum.
–Acho que não é o jeito que ela age nem a forma que se veste… Tampouco o fato de o soco dela ser forte demais… Ela me parece mais uma garota. E até que é bonita mesmo.
–Viu? Você parece estar apaixonado pela mulher-macho, não pelo meu irmão.
–Tsc, Zacur, você é babaca, hein?… Mas pelo menos parece ter alguma base pra me dizer isso… Eu sempre fiquei muito com Hebrom… –comecei a olhar as coisas espalhadas pelo quarto… Encontrei uma foto nossa emoldurada. Ele realmente ainda guarda aquilo? –Ele ter saído assim da minha vida me fez perceber o quanto ele fazia parte dela… Eu vivo querendo que ele enxergue que não é nada sem mim, mas acho que eu é que não sou nada sem ele… –peguei o porta-retrato com um sorriso no rosto. Eu até podia ir para várias festas, mas isso nunca mudou quem eu realmente sou: um tremendo idiota solitário que só recebe atenção do pai através de atitudes negativas.
–Eu nunca te vi sendo tão sentimental… Ele deve estar te fazendo falta mesmo. Você deveria acordá-lo e fazer as pazes…
–S-Sem chance! –minhas mãos começaram a tremer, essa ideia me deixava nervoso. Eu não queria ter que me abrir, muito menos olhando nos olhos dele. Se eu não soubesse que ele apaga mesmo quando dorme, eu nem estaria conversando dentro do quarto, com medo de ser ouvido.
–Talvez se você não tivesse brigado com ele e aceitado sua conversão, provavelmente ele não estaria tão afastado… Aliás, acredito até que continuaria com você… E não precisaria sair por aí mendigando amizades.
–Se eu pudesse, voltaria no tempo… –meus olhos estavam começando a encher.
–Acho melhor se conformar do que lamentar. Isso tudo não passa de consequência por você não ter coragem de dizer na cara dele o quanto sente sua falta.
–Deve ser isso… Mas… Me diga uma coisa… Mesmo ficando sozinho quase que na maior parte do tempo… Mesmo sendo o excluído entre aqueles amigos nerds que ele tem… Ele está contente?
–Como nunca esteve antes.
–Pelo menos isso me deixa um pouco aliviado… –segurei a foto com mais força. Eu lembrava o quanto ele estava sofrendo enquanto estava comigo… Talvez eu faça mesmo mal a ele… Subitamente, eu comecei a chorar. Eu não queria ser prejudicial a ele. E se eu tentasse pedir a esse Deus que mudou a vida dele pra voltarmos a ser amigos… Será que daria certo?
–Sim, ele melhorou bastante.
–Zacur… –eu solucei… Era uma cena patética. Eu não sabia como Hebrom conseguia fazer com que eu me humilhasse daquela forma mesmo dormindo.
–O que foi, cara? Você quer lavar o rosto?
–Não…
–Então o quê?
–Por favor, não conte a ele que eu estive aqui… Muito menos comente sobre essa conversa. –coloquei a foto no lugar vagarosamente.
–Ah… Tá bem…