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Ordinários

Ordinários – Capítulo 2

Alguns meses depois eu estava arrumando as malas. Era Novembro. Não tinha muita coisa pra levar do orfanato, então foi uma coisa fácil de fazer. Quando eu saí, Edgar já estava buzinando lá fora. Entrei no carro sem precisar me despedir de ninguém. Eu pensei que tudo seria melhor dali pra frente. Finalmente livre!

–Olha, Quésia, eu vou ditar algumas regrinhas pra você. –Edgar começou.

–Vai falando…

–Primeira: Não fale com estranhos.

–E você é o quê mesmo? –ele me olhou como se eu fosse uma daquelas comediantes baratas.

–Chega de gracinhas, ok? Isso aqui não sai de graça, não. Se não for pra parar com essa zoeira até chegarmos em casa por gostar de mim, faça pelo menos pelo dinheiro que eu gastei e pelo que ainda vou gastar.

–Que seja. –eu peguei um pacote de biscoito na minha mochila.

–Menina, que ousadia é essa?! A segunda regra é: Não coma nem beba nada dentro do carro.

–Você é o pior pai do mundo.

–Eu já disse, espera até a gente chegar em casa, aí vai poder fazer a zoeira que quiser e também comer tudo o que quiser, até sair pelo seu nariz.

–Quer que eu passe fome até chegar lá? Eu não precisaria comer nada se você tivesse vindo me buscar depois do café da manhã. –abri o pacote.

–Você vai acabar derrubando, garota…

–Vou nada, para de neura. –ele deu uma freada e caiu metade em mim e metade no chão… Que coisa linda.

Olha o que você fez!

–Que droga, né?! Vou ficar sem comer… Eu não sou cega, tio. E foi você quem fez isso.

–Não tenho nada a ver com a quantidade de incompetentes que há na rua!

–Quando você é um deles, tem a ver, sim…

–Como é que é?! Não te tirei daquele orfanato pra isso! Você é muito resmungona, parece uma velha! Não é por nada que te abandonaram. –tá, até uma coisa que nem eu ficaria triste ouvindo isso… Depois de um tempo parando pra pensar ele se arrependeu. –Eu… Eu não quis dizer isso…

Eu fiquei quieta por alguns segundos… Fiz com que ele perdesse a paciência comigo no primeiro dia.

–Você… Você quer que eu vá embora?

–Não. Vamos pra nossa casa. Não foi nada grave… Depois eu cato.

Eu preferi ficar quieta depois da bronca. Até que o carro fez um barulho estranho.

–O que foi? –perguntei.

–Ah, não!… Misericórdia… Hoje não! Que droga! –ele saiu do carro praguejando aos berros.

–O que houve? –saí também.

A porcaria do pneu furou! Logo agora! –Edgar já foi pegando o estepe.

–Sou seu amuleto da sorte.

Não! Você não fez nada errado. Para de falar essas coisas, parece até que quer que eu te devolva. Só espera eu dar um jeito nisso…

–Tá… –então eu fiquei ali, só observando. Até que eu cansei. – Edgar…

–Qual o problema?

–Eu não entendi o que você quis dizer com “Eu sou bom demais pras mulheres”.

–Prefiro não falar sobre isso…

–Quer dizer que você não consegue ficar muito tempo em um relacionamento?

–É, exatamente. Obrigado por respeitar meu espaço.

–Pra isso que serve a família. –coloquei o rosto em cima dos braços que estavam apoiados na janela e sorri.

E foi assim que eu fui parar aqui. Casa nova, quarto decente, olhando pro teto, pensando na vida, primeiro dia de aula, me fazendo perguntas antes de levantar…

Eu já conheço o Edgar há uns quatro meses, e até agora eu não sei qual seu objetivo em me adotar… Ele só vai perder ainda mais dinheiro, bem do jeito que disse. Realmente parece que o cara é um sem vida social… Mas mesmo assim, ele poderia ter arranjado companhia melhor que eu e isso fica cada vez mais evidente à medida que ficamos mais tempo perto um do outro. Discutimos tanto que parecemos até familiares de sangue.

Agora, depois de três meses nessa casa (fazendo vários nada e destruindo meu cérebro com televisão), Cortês veio me acordar pela manhã, mas o que ele não sabia era que eu não havia conseguido dormir nessa noite e tudo por eu estar preocupada com escola nova. O monturo do cotidiano vai voltar…

–Levanta! –Edgar falou encostando na parede do meu quarto. Não ligou pro fato de eu estar morrendo de sono.

Não respondi de maneira nenhuma.

–Sai logo dessa cama! –puxou meu cobertor.

Choraminguei e puxei de volta. Edgar não estava com paciência nesse dia. Abriu as cortinas da janela, fazendo com que o brilho do sol fosse direto ao meu rosto. Mesmo eu estando acostumada a com luz acesa, o calor me fez sentar, incomodada.

–Desnecessária essa sua existência.

–Obrigado! Agora vai se arrumar, peste.

–Eu não consegui dormir…

–Parabéns. Não vou te deixar faltar, isso é culpa tua. Não dormiu porque não quis. Eu começo a pagar a melhor escola da região e te levo até ela pra você ainda se achar no direito de dizer “Ain, uin, eu não quero ir, tô com soninho”? Por favor, né, garota? –ele praticamente se contorcia de desgosto.

–Eu não falo desse jeito… –murmurei, levantando com um dos meus bichos de pelúcia na mão e indo até a sala.

–O banheiro não fica aí.

–Ah, dá um tempo… –eu iria sentar no sofá, até que o outro interrompe a minha caminhada.

–Pega o jornal lá fora pra mim? Mas vai rápido, você tá meio que atrasada.

Dei um longo suspiro e fui andando com a maior má vontade que pude mostrar.

Na calçada, havia duas criancinhas brincando de peteca. Eu fiquei observando depois de pegar o jornal. Eu gosto muito de crianças. Era um cenário bonitinho… Além de raro. Provavelmente o pai delas havia confiscado o celular ou qualquer coisa assim. Mas, sei lá, ver aquilo ali deu uma nostalgia. A minha infância não foi das melhores, mas eu posso falar que foi o período… Como posso explicar?… Menos pior da minha vida.

As meninas do internato não eram tão malignas nessa época, só me excluíam. Bem, dava pra eu me divertir sozinha, mesmo sem brinquedos. Só que agora, com catorze anos (quase quinze), não dá pra deixar de ser pressionada pelo resto do mundo. Fiquei pensando em como a minha vida tinha dado um salto enorme… Mal dá pra entender o que aconteceu se for comparar o meu passado com meu presente. Tudo mudou…

Resolvi dar uma olhada ao redor, pra ver se alguma coisa superava a beleza daquela cena. Vi um menino, acho que da minha idade, extremamente pálido, de olhos verdes, cabelo preto e liso, com uma câmera pendurada no pescoço. Estava no ponto de ônibus que há em frente à minha casa, do outro lado da calçada. Ele estava me encarando. Ok, superou a beleza da cena, sim, ele ganhou a brincadeira. Podem voltar pra casa, criancinhas da peteca.

Tá, o garoto não era exatamente bonito. Era fofo. Bem arrumadinho e tal, mas o vento era inimigo do cabelo dele, por isso tentava arrumar sempre. Quando percebeu que eu estava olhando de volta, virou a cara, fitou o chão por alguns segundos e depois sorriu pra mim… Esse garoto usava um aparelho da cor dos olhos.

Olhei pra trás, achando que não era comigo. Ele riu e deu uma acenada com o rosto corado. Eu fiquei com cara de… Sei lá, não tem como definir. Só sei que deu tilt na minha noção de tempo e espaço. Não achei que ele estava dando em cima de mim, eu só me surpreendi por ele ser simpático sem querer nada, aparentemente. Tipo… Isso ainda existe? Novidade.

Ficamos trocando olhares até uma menina de cabelo castanho bem escuro e ondulado (que eu não consegui ver o rosto pra saber se era bonita) sair puxando ele pelo braço… Ela estava segurando uma garotinha bem menor (de cabelo igualmente ondulado, só que em um tom mais claro) com a outra mão. Tinha que surgir algo pra estragar a minha paixonite de segundos. Ela o levou até o ônibus que tinha parado por ali. Ele ainda voltou para me dar um tchauzinho, só que a garota de cabelo castanho escuro puxou o menino pela camisa.

Ah… Podem ser as irmãs dele, não?… Tudo bem que nem são parecidos, mas… Não sei. Seria uma pena se eu ficasse pensando nisso sem nunca mais encontrar o garoto na vida.

–Vi tudo, hein?! –Edgar apareceu das sombras e eu quase tive um ataque cardíaco.

–Odeio quando você faz isso!

–Eu sei, por isso mesmo que eu faço. Quando sai o próximo episódio de “Me apaixonei por um fantasma”? Menina chavosa… Aquela quenga lá roubou seu boy magia? Fica triste não. Você tem boas chances contra ela. Homens não gostam de assumir filhos. Hm… –começou a me cutucar. –Quésia vai desencalhar. Parece uma daquelas novelas que acaba tudo bem, tudo bom.

–Ih, cala a boca, solteirão de trinta e um.

–Ain, meus sentimentos! Você sabe que eu sou bom demais pras mulheres daqui…

–Aham… Claro… Todo dia. –voltei a olhar o ponto de ônibus.

–Ei, relaxa, a garotinha não é filha dele, não. É irmã. Ele a leva pra escola.

–Eu não perguntei nada disso…

–Problema teu, eu já falei, me engula. Sabia que ele estuda na sua escola?

–Oi?

–Sim, o guri quase teve um troço de tanta felicidade por saber que você vai estudar com ele. Além disso, ele também entrega os jornais de bicicleta quando o outro garoto não pode… E eu já peguei ele te olhando quando você fica pensando na morte da bezerra lá na janela.

–Ah, tá. Como que eu não percebi?

–Sabe… Você é a Quésia.

–É mesmo, é? Olha só a “descobrida” que você “fazeu”!

–Tá querendo ir pra escola agora, não tá? –a criatura começou a rir… Parecia uma capivara tendo AVC. Apesar de eu não saber como é uma capivara tendo AVC… Mas era isso que Cortês rindo parecia. –Vocês combinam! Os dois parecem cadáveres! Ele branco daquele jeito e você com essa expressão de tábua. Se tiverem um filho, vai ser um zumbi perfeito!

–Mereço isso não… Vou voltar pra cama.

–Que cama o quê, menina?! Você tá atrasada pra escola! –ele empurrou até o banheiro.

Quando estava quase terminando de me arrumar, saí ajeitando o cabelo.

–Não temos tempo pra isso! –Edgar me levou para o carro.

–Espera. Você acha que eu iria pra escola descabelada? Já basta eu ser feia.

–Para com isso, Quésia! Você é perfeita!… Tá, é zoeira, mas não dá pra você piorar! Vamos embora! –ele me jogou no carro.

–Mas e os meus… –ele jogou vários livros soltos e uma mochila bem na minha barriga. –Ai! Infeliz! Quer me matar?!

–Tanto quanto você esperava que a resposta fosse sim. –Cortês deu a arrancada no carro.

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