Séries de Web
Ordinários

Ordinários – Capítulo 12

–O que aconteceu com bocê? –deitei também e fiquei olhando diretamente pro seu rosto. Usei uma das mãos pra apertar suas duas bochechas.

–Ah, todo mundo esquece que pessoas são pessoas, não coisas. Coisas não mudam, pessoas sim. –ele falou com a voz estranha por eu estar imprensando seu rosto.

Aí eu soltei, pra ele poder continuar contando:

–Eles chamavam isso de talento, mas era horrível pra mim. Eu me sentia mal e estava transmitindo isso às pessoas que ouviam aquelas músicas. Eu estava contaminando os outros ao invés de pedir ajuda a Deus. Mais da metade das músicas do segundo álbum deles fui eu quem escrevi… No primeiro, eu escrevi só algumas.

–Os seus pais não sabiam que você estava assim por andar com eles?

–Meus pais não sabiam muito da minha vida, Qué, só sabiam que eu estava sendo rebelde. Eu saía quando queria e voltava tarde. Não contava nada do meu dia pra eles. Eu só aparecia em casa às vezes, além de ser pra comer e dormir. Minha mãe ficava gritando comigo, meu pai ficava tentando tirar alguma informação de mim e me ajudar, mas eu era muito fechado…

Bas e a autoridade deles?

–Eles até me proibiam, é claro. Mas eu sempre arrumava um jeito de desobedecer, então não adiantava. Eu também chantageava meu irmão, dizendo que queimaria a imagem dele com a menina que na época ainda não era namorada dele caso ele contasse alguma coisa pros pais…

Bocê era mesmo diferente… Olha, só não fica achando que não quero bais andar com você por be contar isso, tá bem? Todo mundo faz besteira.

–Obrigado… Eu tinha medo de você se afastar. Eu fico mais tranquilo de ouvir isso de você. –ele segurou minha mão. –Sobre aquela tristeza profunda… Folker só percebeu que eu estava estranho quando a minha aparência mudou e eu comecei a tomar uns remédios sem prescrição médica… Que não deixam de ser um tipo de droga, sabe?

–Aham…

–Numa tarde, na escola, Andreas…

–Espera, só pra ter certeza… Andreas é o rapaz da nossa sala que é deficiente, né?

–Eh. Jamal Andreas. Ele é muito esperto e percebe as coisas rápido… Ficou me olhando de longe e percebeu que eu estava esquisito… Veio na minha direção e disse que Wendel estava levando ele à igreja. Eu disse “Que legal” sem muito entusiasmo… Foi aí que ele me convidou pra ir até lá com eles.

Bocê foi?

–Sim… E, estranhamente, tocou uma música que eu gostava muito… “Volta” de Leonardo Gonçalves. Já ouviu falar nesse cantor?

–Não…

–Enfim, a letra se encaixava perfeitamente na minha situação… Eu desabei em lágrimas naquela noite de culto. Não porque isso seja sinônimo de presença de Espírito Santo ou algo assim, mas porque eu estava triste. Eu me lembrava de como havia sido feliz quando era criança e de como estava mal agora… E realmente não importou a distância, porque naquele dia Ele me alcançou…

–Ah… Como se diz?… Bocê “aceitou Jesus”?

–Eh. E isso era equivalente a decidir mudar o meu estilo de viver… Eu resolvi abandonar a Paganus… E é claro que eles não aceitaram isso fácil.

–Eu ia perguntar exatamente isso!

–Eles ficaram insistindo pra eu ficar, disseram que eu era importante e tudo mais… Folk disse que eu estava sendo ingrato até, mas não foi muito grosso na hora, porque ele sabia do lance dos remédios. Rich acreditava que ainda dava pra mudar minha cabeça. Mas Cristiano não aceitou tão fácil. Ele ficou furioso de imediato com aquilo, começou a me insultar e partiu pra cima de mim… Ele começou a me espancar na frente de todo mundo ali.

–Você sempre se bete em briga? –cheguei um pouco mais perto dele.

–Não! Sei lá, parece que eu atraio gente pra me arrebentar. –o comentário dele me fez rir, apesar de ser meio trágico.

–Você ficou parado na briga?

–Eh, eu não estava sentindo nada mesmo…

–Eu não sei qual é a dessa sua mania de querer bancar o machão na minha frente! Por que você não admite logo que ficou chorando uma cachoeira?

–Mas eu não fiquei… Quésia… Olha… Eu sou doente, sim.

–O quê?

–Doente de amor por você… –ele me olhou sério, eu entrei em pânico internamente por um momento, mas depois ele começou a rir. –Não, zoeira, não é isso, eu tenho insensibilidade à dor. Você pode morder meu braço até ele sangrar, mas eu não vou sentir nada. Se não fosse por isso, eu teria praticado automutilação naquela época. Dor não poderia ser uma tentativa de solução, porque eu não sentia dor.

–Ah, peste, ainda bem, né?! Você estaria todo cheio de cicatrizes agora. –assim como eu… –Mesmo assim, bocê foi meio sonso de ficar ali apanhando. Fala sério! Ninguém foi separar?

–Dagom, que detestava ser chamado de Cristiano por causa do significado tinha uns vinte anos na época. Era o mais velho da banda. Até tentaram segurá-lo, mas ele era bem mais forte. Folker foi me defender… Ele acabou todo machucado e de olho roxo. Mas eu só percebi isso depois que acordei no hospital.

Eu fiquei de boca aberta.

–Você fica uma gracinha desse jeito! –ele começou a rir e me abraçou…

Aparentemente ele não é tão afetado pelo passado. Ou, se era, estava tentando ser forte na minha frente, porque antes eu notei a tristeza no seu rosto.

–No hospital, eu acordei, vi que tinha torcido meu tornozelo quando caí e fiquei lá sozinho por um tempo. Eu fiquei refletindo e conversando com Deus, coisa que eu não fazia havia tempo… Depois de meia hora, Richard apareceu… E eu contei pra ele que não queria fazer mais parte da banda e isso era definitivo. Mesmo depois do que aconteceu, ele implorou pra eu ficar e disse que poderia expulsar Cristiano com o consentimento dos outros integrantes, porque era ele que bancava tudo…

–E aí?

-Eu disse que não precisava, porque havia me convertido e tomado uma decisão. Falei que definitivamente não faria mais parte da banda, porque isso estava afetando minha vida espiritual e consequentemente a minha vida como um todo… Ele ficou com muita raiva de mim, até pegou no meu colarinho, mas não chegou a me bater. Rich ficou muito chateado comigo, falou que eu estava desconsiderando tudo o que ele fez por mim… Mas não era bem isso.

–Pois é, eu sei que não. Às vezes as pessoas precisam ficar um tempo sozinhas. Você até poderia se bisturar com eles, caso você não se envolvesse. Se estivesse ali para influenciar e não ser influenciado, sabe?

–Eu concordo contigo, darling. Você é bem esperta… Folk disse que eu não sou e nem nunca fui alguém sem ele e que eu iria me arrepender daquele dia… Desde então ele me humilha e demonstra que minha vida seria melhor com a sua ajuda… No dia seguinte dessa discussão, ele pegou minha muleta no colégio e saiu correndo só pra rir da minha cara. Ele passou a espalhar boatos sobre mim na escola e todas as pessoas acreditam neles, porque ele sempre teve mais crédito do que eu por lá…

–Que tipo de boato?

–Que era gay e tinha “dado em cima” dele, por exemplo. Quando a pessoa que ouvia o boato não demonstrava ser homofóbico, era só ele inventar outra coisa. Tipo, ele também inventou que era metido e maltratava as pessoas, por isso parou de andar comigo e tentar ser simpático… Que eu era um cristão chato, alienado e preconceituoso, além de ser hipócrita por gostar dele… Também saiu contando que eu tinha uma doença esquisita… Enfim, na maioria dos boatos, eu era um otário que merecia ser ignorado e ficar sozinho.

–Então quer dizer que ele te baltrata daquele jeito e inventa mentiras sobre bocê só porque sente falta da sua abizade? Isso tudo pra bostrar que ele é importante pra bocê?!… Cara, esse garoto te ama e não sabe se expressar! Existe até possibilidade de ele sim ser homossexual e não assumir.

–Talvez ele esteja sentindo minha falta, mas acho que me tratar mal não seja a melhor maneira de demonstrar que gosta de mim… –ele fez uma carinha triste. –Eu queria ser amigo dele sem que ele tentasse me fazer frequentar àquelas festas estranhas e aos bares que vai.

–Acho difícil ele parar depois de tanto tempo tendo esse costube.

–É difícil, mas não é impossível… Tanto que Folk se afastou do pessoal da banda. Ele parou de ajudar a Paganus por terem defendido Dagom e apoiado que ele continuasse, já que eu não iria voltar… Mas nem por isso a banda deixou de fazer sucesso, então eles não precisavam mais do dinheiro de Richard.

–Você já pensou na possibilidade dele ter rebetido o ano só pra te perturbar por mais tempo?

–Claro que já, até porque ele mesmo disse isso pra mim…

–O que eu não consegui entender até agora foi só o fato de você ter ficado com bedo de eu ter repulsa de você. Por que eu teria? Bocê cometeu erros, grande coisa! Quem é que não cobete? Você acha que tenho o direito de te julgar por bocê ter errado diferente de mim?

–Eu não tinha pensado dessa forma… Obrigado por ainda querer ser minha amiga. –apertou minha mão.

–Brom…

–O que foi, darling?

–Tenho que ir embora? Nem lembro de ter abisado Edgar de que eu estaria aqui antes de sair de casa. Ele be ouviu no telefone, mas não sei se lembrou.

–Eu queria que você dormisse aqui. –fez biquinho. –Mas tudo bem se quiser ir. Troca de roupa então… Eu te levo até sua casa. –nós levantamos da cama, fiz o que ele disse (só que dessa vez no banheiro… e de porta trancada) e me trouxe.

Eu não conversei com ele no caminho de novo… Eu estava meio sem jeito, nós tínhamos agido muito intimamente… Pareceu que as coisas entre nós iriam mesmo mudar. Não por eu ter me impressionado com o passado dele ou coisa assim, mas porque eu sinto que gosto dele cada vez mais.

Hebrom

–Então, né… –Quésia disse enquanto descíamos da bicicleta.

–Eu quero outro abraço. –sorri acanhado. Ela olhou bem pra mim e segurou a alça da mochila que estava no chão com mais força. –Até amanhã. –eu a apertei com com muita força e eu pude sentir seu corpo todo. Eu percebi que ela estava bastante tímida, tanto que demorou alguns segundos pra retribuir o abraço.

–A-Até.

–Hey, você quer ir à igreja comigo essa semana? –soltei-a e fiz o convite.

Ela não parece chegada a esse tipo de coisa, mas não custa tentar, certo? Bem, eu acho que ela também teve problemas na vida… Todo mundo tem. Se foi através de lá que eu consegui me sentir melhor, por que não sugerir isso? Deus ficará feliz caso Qué se aproxime dEle… Eu gostaria muito mesmo que ela sorrisse mais… Ela é tão bonita… Todo mundo sairia ganhando.

–Ah… Igreja? –fez cara de quem gosta pouco.

–Sim, no Sábado. Você… iria?

–Ah, não bejo porquê não…

–”Beijo”? Eu quero!

–Para de ser bobo! –Quésia me empurrou de leve. Será que deu pra notar que gosto dela? –Então… Be manda o endereço.

–Sim! Bem, se você melhorar do resfriado eu… –ela não deixou que eu terminasse a frase.

–Eu bou belhorar!

Subi na bicicleta e sorri calmamente:

–Creio que sim!

–Ah… Obrigada por ter be contado… Mesmo a gente nem se conhecendo há tanto tempo, obrigada por confiar em mim. Por você, eu abrendo a guardar segredo.

–Obrigado por ficar comigo mesmo eu sendo um…

–Ótimo garoto? Não brecisa agradecer! –me interrompeu. Eu não gostaria que ela pensasse mal de si mesma, então acho melhor eu parar também… –Enfim… Tchau. –Quésia beijou meu rosto, bateu as costas na porta e eu ri também envergonhado…

Estava difícil aceitar que isso aconteceu! Ao invés de ela ir pra longe de mim, ela se aproximou ainda mais! Hoje eu só tenho a agradecer! Deus tem sido bom demais pra mim. Aliás, Ele sempre é! Eu sei que coisas ruins aconteceram no passado, mas parece que tudo tem ficado melhor desde que Quésia chegou. Ela parece um verdadeiro anjo… Eu realmente não entendo o que ela enxerga em mim pra querer continuar sendo minha amiga, ainda mais agora que sabe que sou problemático.

–Você é que é ótima… Tchau, darling. Melhoras. –virei a cabeça um pouco para a direita, porque quis olhá-la por outro ângulo. Das sete bilhões de pessoas que existem no mundo, eu estava com a melhor delas bem na minha frente.

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