Ordinários – Capítulo 1
Quésia
Por que as pessoas tratam as outras como se fossem superiores a elas? Vai todo mundo pra cova, ninguém é melhor do que ninguém. Parecia que as garotas daquele muquifo faziam força pra esquecer esse pequeno detalhe.
Vou tentar ser um pouco mais breve, juro. Até porque eu não gosto de me lembrar. Estou acordada, olhando o teto nesse exato momento. Com preguiça de levantar, como na maioria das manhãs… Enfim… Quero explicar como cheguei até aquele orfanato… Sinceramente, lá era horrível. Eu já estava levando em consideração a ideia de virar pedinte, na época.
Quando a pessoa que devia me criar me largou na espelunca, eu era um bebê e já não tinham muitas vagas por ali. Consegui ficar no dormitório por um tempo, mas depois, me mandaram pra um quartinho todo destruído e escuro, só tinha um tanque dentro. Ele era muito frio, peguei vários resfriados ali e havia muitos ratos. E o meu medo irracional da noite chegava a ser a pior parte. Era praticamente um martírio quando a luz do quarto queimava.
Morrer, de fato, seria menos desconfortável do que ficar no meio das trevas ouvindo os planos malignos dos ratos contra mim e aqueles passinhos perniciosos. Eu ficava de pé na cama, tomando café pra ficar acordada. Meu coração parecia a rainha da bateria. Não era uma rotina muito sofisticada… O único ponto positivo daquilo tudo é que tinha uma janela que dava pra rua. Era uma vista linda. Eu gostava de imaginar que eu poderia sair algum dia…
Ali só tinham meninas. Eu tentava me enturmar com elas, mas era um desastre. Até as rejeitadas me rejeitavam. Porém, pelo que eu via, era melhor continuar desacompanhada. Como se não bastasse, eu era sacaneada. Não sei se por causa da minha esquisitice ou do meu jeito de tentar passar por sisuda… Pode ser porque eu banco a crítica a maior parte do tempo e adore fazer um drama com pessoas mais íntimas. Ou talvez ainda fosse a minha aparência… Pois é, geralmente ninguém gosta de andar com aparentes defuntos… Ao menos sou ruim e assumo.
Pra não deixar de usar a pouca educação que tentaram me dar, me chamo Quésia. E agora eu vou falar um pouco do mimimi que foi e ainda está sendo a minha vida. Marisa Ávila, a professora de Artes, foi a única que me tratou bem. De acordo com ela, eu fui deixada na porta dos fundos, dentro de uma caixa, coberta por um pano. Falou que tinha ficado até tarde dando notas em projetos, também disse ter procurado, mas não encontrado ninguém que poderia ser o responsável por mim. Chovia nessa noite, e quando ela me pegou nos braços, eu acordei e fiquei rindo. Mas, tipo… Ah, tá, supernatural uma criança sozinha e com sono acordar e começar a rir pra alguém que não conhece… Só que eu não vou ficar desmentindo a mulher.
Ela disse que o meu sorriso e o brilho dos meus olhos iluminaram a escuridão daquela noite fria. Até hoje eu acho que ela tem problema de vista, porque quando eu me vejo no espelho, só encontro um porco-espinho que morreu tendo um derrame. Prefiro não falar nada pra não parecer carente de elogios. Goste do estropício, quem gostar e chuva de apatia pro resto…
A dona que mandava em tudo lá, de início não quis aceitar minha chegada. Falava coisas como “Aqui é grande, só que não temos mais espaço!” e “Devolva logo essa coisa!”. Mas depois de me olhar por um tempo, acabou comovida e mudou de ideia. Achou maldade me deixar na rua.
Marisa ficou encarregada de tomar conta de mim, já que ela quem implorou pra eu ficar. Eu passava o tempo desenhando. Pra mim, ela era a única professora que prestava. E a única que me tinha feito gostar de alguma matéria.
Hoje não moro mais lá. Vou pra uma escola nova. Antigamente eu só ficava trancada… Era horrível. Não era bem tratada. As meninas mais velhas não estavam nem aí pra mim, e as da minha idade me troçavam. E também, eu só consegui uma amiga. O nome dela era Judi Barcelos. Era uma garota da minha idade, muito bonita que vinha visitar o orfanato todas as semanas. Ela sempre viveu rodeada de gente, até me conhecer. A primeira vez que me encontrou foi quando ela estava conversando com algumas amigas e eu estava sentada num canto. Então veio até mim.
–O que tá fazendo aí sozinha?
–T-Tá falando comigo? –olhei pra cima. Eu entrei em choque quando vi aquela menina com o cabelo longo, castanho-avermelhado, sorrindo.
–É… Não tem mais ninguém aqui.
–Não mesmo…
– Posso ficar aqui com você?
–P-Pode. Quésia. E você? –eu fiquei feliz e ansiosa na hora. As únicas coisas que não me faziam esquecer que eu realmente existia eram a Marisa, os xingamentos e agressões das outras meninas.
–E eu o quê?
–Como se chama… –fitei o chão.
–Ah! Claro! Judi… Barcelos. É um prazer te conhecer! –ela estendeu a mão.
–Idem… –tentei me controlar, estava quase tendo um ataque.
Eu não queria ter sido mal educada com ela, mas acho que seria pior se eu pulasse em cima dela chorando de emoção. Judi sentou perto de mim. Eu não havia notado, mas ela estava segurando um papel e ficou encarando-o, toda encantada.
–Que isso? –perguntei.
–Um poster… Da minha banda preferia. –ela não parava de sorrir. –Meu pai finalmente comprou pra mim!
–Posso ver?
–É claro! –o botou no meu colo e se aproximou ainda mais para me mostrar.
Fiquei surpresa com a maneira de como ela não tinha medo ou nojo de ficar perto de mim. Eu não estava acostumada com isso. Barcelos estava completamente animada enquanto me apresentava os componentes daquela banda. Eu não prestei nenhum pingo de atenção, só gostava de vê-la rindo. Eu não entendo nada desse negócio de rock mesmo.
Nós viramos melhores amigas e as garotas que andavam com Judi se afastaram. Com certeza eu fazia mal à sua reputação, mas ela não parecia sentir diferença. Começamos a andar muito juntas e nos apegamos.
Pouco tempo depois, ela acabou parando de frequentar o orfanato sem dizer o motivo. Continuo sentindo sua falta. Perdi a minha primeira e única amiga. E, como eu não tinha dinheiro, nem nada que desse interesse a ninguém, continuei sozinha. Tirando as vezes que algumas das meninas vinham pra tirar sarro de mim, só que dessa vez com mais frequência e muito pior. Elas se juntavam e me batiam. Quando eu tentava me defender, levava a culpa. Uma vez ou outra a Marisa ficava perto de mim, e sem saber, acabava me livrando.
Sempre escondia meus machucados. Preferi não dizer nada. Isso pra não deixar nenhuma das superiores preocupadas. Eu fui mesmo cretina pensando assim. Botei na cabeça que eu não deveria ficar atrapalhando com uma coisa aparentemente sem importância.
Nesse mesmo ano, Marisa desistiu de dar aula e também saiu por ter recebido uma melhor proposta de emprego. Não preciso dizer que as minhas condições naquele lugar chegaram ao fundo do poço. Eu colecionava hematomas. Comecei a ficar longe de todo mundo, da maneira que eu pudesse. Até uma das moças que tomava conta do orfanato quase arrombar a porta do meu quarto, gritando “Tem um homem querendo te conhecer!”
Era um taxista de trinta e um anos na sala de espera: cabelo castanho extremamente claro e piercings nas orelhas. Fazia força demais pra ser gentil. Não gosto disso, só mostra que a pessoa é mais irritante no dia-a-dia… Mas é melhor ele do que o orfanato. Eu não implorei pra ele me levar, como eu deveria ter feito. Eu estava plenamente comportada, já que a tia que entrou “delicadamente” no meu quarto estava ali do lado prestando atenção na nossa conversa, fazendo cara de brava pra mim. O homem me fez algumas perguntas:
–Quantos anos você tem?
–Catorze.
–Bem… Eu soube que você gosta de desenhar, é verdade?
–Pois é… Se você deixar, eu pego meu bloco de desenho…
–Não precisa, eu já peguei. –a mulher deu meu bloco na mão dele.
–Onde você conseguiu isso?!
–No seu quarto, aonde mais? –ela fez jeito de indignada.
–Se importa de eu ver?
–Não… –foi até incomum ver que tinha alguém ali que se preocupava com a minha opinião.
–Caramba, você desenha muito! E parece ser uma menina agradável… Eu não sei mais o que te perguntar… Eu nunca adotei ninguém antes.
–Então eu vou fazer as perguntas agora. –falei.
–Quésia! –a tiazinha lá se intrometeu.
–Ué, vai que ele é um psicopata?! Eu tenho o direito de saber alguma coisa, ele vai ser meu parente, não vai?
–Eu não me importo de responder… Não, eu não sou um psicopata. Eu só sou uma pessoa muito solitária.
–Você não tem família?
–Ter eu até tenho, mas mora bem longe.
–Por que não arruma uma namorada?
–Eu sou bom demais pras mulheres.
–Ah, tá, tô sabendo… Como se chama?
–Edgar Cortês.
–Sobrenome legal. Uma última coisa… Se você me levar, eu vou ter que estudar?
–Claro! Você quer que eu seja preso, menina?
–Isso depende.
Ele me olhou com uma cara séria por alguns instantes depois começou a rir.
–Ela é engraçadinha, né? Vou levar. –Edgar falou como se eu fosse um produto. Já estou até vendo que isso não vai ser uma família das mais amáveis.
Muito bom, adorei o texto e a Quézia.
Fico feliz que esteja gostando! Espero que acompanhe.
“Ela é engraçadinha, né? Vou levar.” kkkkkkkkkkkk
Eu imagino o Edgar um carinha gordo.
Muito bom o priemiro capítulo, ansioso pelo próximo!
Hahaha! Tá certo… Muitíssimo obrigada pelo comentário!