O grande caderno azul – IV
IV
A febre que me assolou não era do dedo, mas sim da garganta inflamada. Conclui a leitura da “Comédia Cômica” – esperava mais de Anatole France, tem boas cenas descritas, mas não se compara ao genial Balzac – gosto de “Les Petites Miseres de la vie conjugale” – Divertindo-me com ele ao descrever a intimidade conjugal. Tudo observa minuciosamente e a escrever de maneira bem suscita.
Na oficina – Uma cliente, a filha de Seu Azul veio falar comigo a respeito de duas grades para janela, ficou de segunda feira trazer o dinheiro da entrada – Deus até aqui está me ajudando, quero apenas saúde e disposição para o trabalho. A garganta, a fraqueza no corpo, uma indisposição generalizada, sempre febril – são coisas que sempre me preocupam.. Essa caneta encabulosa, falha de mais. Acredito que Gordinho não vai trazer o dinheiro. Ontem para amainar a minha tristeza comecei a pensar algo impensável. De repente chega na porta da casa, uns carros. As pessoas descem e se aglomeram na mureta do terraço e uma delas pergunta:
– Aqui que mora Raimundo Nonato Rodrigues?
Eu timorato e cabreiro respondo:
– O que vocês querem com ele? São policias? É debito?
– Não senhor. Nenhuma das coisas. Somos jornalistas correspondentes e viemos parabeniza-lo pelo Premio que ganhou na França com o melhor livro estrangeiro.
– Vocês devem estar brincando comigo?
– Então , o senhor é ele – E um batalhão de flashes espocaram diante o meu rosto espantado, fiquei ofuscado e quase sem graça, pensei em imitar a clássica foto de Einstein com a língua para fora – O senhor não sabia? Está em todos os sites de noticias e revistas francesas e eles estão querendo uma foto sua para ilustrar outras reportagens. E nós somos os primeiros.
– Hoje não é primeiro de Abril?
– Senhor Rodrigues, o senhor não publicou um romance na França? “Le Cahier Rouge du Pére Joseph”?
– Sim, já faz uns dois anos.
– Pois é, nesse período o seu romance vendeu bastante e a Academia Francesa o escolheu como o melhor livro estrangeiro do ano. O senhor agora é um best seller.
– Mas a editora nunca me comunicou coisa alguma e nem ganhei nada.
– Não se preocupe. Só com a premiação a Academia lhe dará um premio de cinquenta mil euros e a editora Edilivre enviará para o senhor um cheque com todos os seus direitos autorais acumulados durante todos esses anos quase no valor de cem mil euros. E fora os novos contatos como editoras italianas, espanholas, inglesas, americanas e pasme brasileiras.
– Não, por favor não acredito. Isso é uma pegadinha ou talvez um sonho..
Seria bom de mais. E acordei do meu devaneio para minha triste realidade, para o meu insignificante mindinho. E agora estou aqui, cheio de esperança de que algo de bom aconteça para alegrar a minha deprimida alma. Vou ler Balzac.
– Nove e vinte e seis – Disse-me a pequena Alexandrina, irmã de Seu Walter ambos nascidos no outro lado da baia de São Marcos, num lugarejo chamado Cujupe. Antigamente, ele fornecia-me os jornais que eu levava para o meu pequeno filho amado, mas hoje ele mesmo já os compras. Ouvia ainda o guerreiro infatigável Seu Lucas, catador de ferro-velho e louco amante das pedras do diabo. Estacionou o pesado e carregado carro de mão em frente e veio contar um pouco de sua historia. Os braços cheios de varizes, que comprovam a sua força no trabalho braçal, a pele crestada sem piedade pelos longos períodos expostos ao inclemente sol, comprovam sem duvida a sua árdua luta com tenacidade para sustentar o seu vicio sem recorrer a subterfúgios ilícitos. Leio a introdução de “A Fisiologia do Casamento”.
Quase onze horas, o céu nublado e as esperanças fluindo rapidamente.O que me apraz é a literatura – tenho apenas três reais e nada mais.Lá em casa a situação é de calamidade total. Seu Apolônio ou Nhá Pu com uma escada de madeira na costa.
– Ei, seu moço – Saúda-me uma das filhas de Seu Chico do Leite.
Me torturo ao pensar na situação d’Affaire Deline” que m’esquivo constantemente de resolve-lo, esgueirando-me como um criminoso fugindo de seu crime, das minhas responsabilidades, esperando não sei o quê? Vou para casa açoitar-me. O Homem da Moto não apareceu, o que já era previsível, talvez na segunda a filha de Seu Azul traga o dinheiro e assim sair dessa situação. Minha cunhada suspeita que estou com diabete, porque bebo muita água. Vamos a Balzac.
No meio da tarde – A Princesa Menor chegou cheia de alegria. Banhei-me e sinto uma onda forte de frio.Os meus olhos estão vermelhos, corpo dolorido, o dedo latejando e para complicar a minha garganta irritada de vez enquanto tusso. Jorge, o atual companheiro de minha sobrinha Daniele conversa do lado de fora da mureta do terraço, quer ir embora, mas antes pede um xícara de café e bebe em pé no mesmo lugar. Cada movimento que faço dói uma parte do meu ser. Digo para a Princesa Menor qual presente ela quer ganhara, pois lhe prometi dar-lhe uma mamadeira, mas retrucou com sua voz pueril e incompreensível:
-“ Eu quelo uma cozinha de pincêsa”.
Lembro-me da genialidade de Balzac ao escrever o dialogo do Barão Nuncigen, alemão – assim como a gagueira do avarento Père Grandet quando fingia-se de surdo e gago para trapacear os parceiros nas suas complicadas negociações com vinho.As vezes dar-me saudade de Petersburgo, através dos passos estugados do atormentado e irascível Raskolnikov em seus andrajoso pela Siénnaia Prospekt – também das prostitutas que ele narra com perfeição. Não gosto dos “Estudos Filosóficos”, mas admirei Luis Lambert, já Serafitas leio em doses homeopáticas.Os estudos analíticos “Fisiologia do casamento” e “Pequenas Misérias da Vida Conjugal” – leio os dois ao mesmo tempo. Minha cunhada com seu vestido longo de casa vaia até a porta e volta em direção a copa-cozinha. Antenor enganalado vai para a reunião no Salão. Professor não saiu desde ontem. As agruras começaram.