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O Caçula

O Caçula – Capítulo 02

Capítulo 02
A Garota

“Apenas em torno de uma mulher que ama se pode formar uma família” – Friedrich Schlegel.

Cena 01 – Terça-feira. Lanchonete do acampamento.
Todos os garotos estão juntos na lanchonete tomando café da manhã. Miguel está sentado sozinho comendo um sanduíche de mortadela e queijo com uma xícara de café. Marcelo chega com seu café se senta ao lado do amigo.
Marcelo: O que achou dessa noite?
Miguel: Horrível, já não basta ter que dormir numa cabana cheia de poeira, o meu colchão parecia feito de madeira de tão duro.
Marcelo: (risos).
Miguel: Não ri Marcelo, é sério! Eu odiei esse lugar.
Marcelo: Você não parecia odiar tanto assim ontem quando a neta do Rafael estava cantando, qual é mesmo o nome dela? Carla?!
Miguel: Clara! É, até que ela canta bem pra uma caipira.
Marcelo: Caipira? Ah Miguel, às vezes você fala como um mauricinho, por que você age assim se de rico você com certeza não tem nada?
Miguel: Não questione meu jeito de ser Marcelo, talvez um dia se eu te conte algumas coisas sobre mim você me entenderá.
Marcelo: O que será que vai ter aqui hoje?
Miguel: Queria que viesse um ônibus pra gente ir embora.
Marcelo: Você vive reclamando da sua casa, da sua vida e da sua família, por que agora que você está livre de toda essa sua “tortura” você não aproveita um pouco?
Miguel: Eu poderia tentar, mas eu tenho aquele aleijado atrás de mim.
Marcelo: Por que você se refere tão mau assim em relação ao João Pedro.
Miguel: Não interessa Marcelo, vamos falar de outra coisa.

Cena 02 – Campo.
Os garotos estão todos relaxando, tomando sol e descansando no parque. Miguel está sentado em frente a uma árvore sozinho ouvindo música. Ele olha pro céu, pros lados. Ele vê alguém vindo em sua direção, é seu irmão João Pedro, e com ele vem alguém inesperado, Clara, a neta de Rafael. Logo que avista a garota, os olhos de Miguel brilham e ele se levanta. Clara e João Pedro se juntam a Miguel.
Clara, empurrando a cadeira de João: Quem é esse?
João Pedro pondo a mão no ombro do irmão: Esse é o Miguel, meu irmão mais velho. Miguel, essa é…
Miguel se afasta: Já sei, é a Clara, neta do senhor Rafael.
Clara aperta a mão de Miguel: Sim, sou eu, encantada.
Miguel: Hum, você tem uma mão forte pra uma menina.
Clara: Eu sei, é o que todos dizem! É preciso ter mãos fortes quando se ajuda seu avô a montar cabanas.
João Pedro: Você ajudou seu avô a montar essas cabanas?
Clara: Claro, mulheres também são arquitetas!
Miguel, intrigado: Espera aí, espera aí, como que vocês se conhecem?
Clara: Ah, é que os professores foram falar com o meu avô sobre como poderia ser para um garoto cadeirante ficar aqui, eles pediram para que eu trouxesse o João para um passeio no campo enquanto eles conversam.
João Pedro: É, e ela me pediu pra apresentá-la a alguns amigos.
Clara, abraçando João Pedro: É, e estamos ficando bem amigos.
Miguel tanta disfarçar, mas não consegue evitar o ciúme, ao ver a menina por quem está encantado abraçar tão forte seu irmão, Miguel olha para João Pedro como seu quisesse disparar balas de metralhadora sobre ele. Miguel respira fundo e segura a emoção.
Miguel, mais tranquilo: Muito bem, então será que eu posso me juntar a vocês?
Clara: É, por que não? Estou disposta a conhecer muitas novas companhias aqui, vamos!
Dito isso, os três seguem para passearem juntos. Miguel começa a conversar, tentando chamar a atenção de Clara que segue empurrando a cadeira de João Pedro. O garoto, sem querer se meter na conversa entre os dois, percebe a estranha maneira que seu irmão olha para a menina.

Cena 03 – Cabana dos meninos.
Miguel entra na cabana vazia. Ele ouve música no seu celular. Com fome, Miguel abre sua mochila e pega uma garrafa de refrigerante de guaraná pequena. Ele abre a garrafa, mas o refrigerante começa a espumar e derrama sobre a camisa do garoto.
Miguel: Ah, caramba, que droga!
Miguel fecha a garrafinha e a guarda na mochila.
Miguel: Ah, acho que é melhor eu trocar essa camisa.
O garoto abre a mochila, pega uma camisa, desce do beliche e vai até o banheiro. No banheiro, Miguel tira a camisa molhada, sem camisa, é possível ver muitas marcas no corpo do garoto, algumas de queimaduras, outras de ferimentos, cortes, hematomas. Miguel veste a outra camisa, sai do banheiro e guarda a camisa molhada na mochila.

Cena 04 – Lanchonete. Mais tarde.
É horário de almoço. Os alunos estão na lanchonete almoçando, todos espalhados. Na caixa de som, toca música alta para animar e descontrair os garotos. Em uma mesa, estão sentados juntos Miguel, Clara e João Pedro.
Clara: Então, quem é o mais velho?
Miguel: Eu. Tenho 15 anos, o João Pedro tem 12.
Clara: Vocês estudam juntos?
João Pedro: Não, eu estou no 8º ano do Ensino Fundamental, o Miguel já tá no 2º ano do Ensino Médio.
Miguel: E você, quantos anos tem?
Clara: Meu querido, saiba que isso é uma coisa que nunca se pergunta para uma mulher, a idade!
Miguel fica meio constrangido.
João Pedro: Você tem irmãos, Clara?
Clara: Não, não tenho! Sou filha única, moro sozinha com a minha mãe.
João Pedro: E o seu pai?
Clara: Meus pais se separaram há alguns anos, eles brigavam muito.
Miguel: Eu lamento muito.
Clara: Tudo bem. Vocês vivem com seus dois pais?
João Pedro: Sim, a nossa mãe Laura e o nosso pai Gilberto, eles são muito legais, me dão toda a atenção do mundo!
Miguel, resmungando em voz baixa: Só a você, né?!
João Pedro: O que disse?
Miguel: Nada!
Clara: Bem, eu às vezes sinto falta do meu pai, quase nunca o vejo. Eu tenho vários amigos na escola, mas às vezes eu queria ter um irmão ou uma irmã.
João Pedro: Eu também era assim, com amigos na escola, mas solitário em casa, até que o Miguel chegou.
Clara, intrigada: O quê? Não entendi, como assim ele chegou se ele é o mais velho?
João Pedro: Ah, é que…
Miguel, interrompendo: É que no início a gente era muito pouco unido, mas de uma hora pra outra viramos unha e carne!
João Pedro: Miguel, não era bem isso que eu ia…
Miguel, sussurrando no ouvido de João Pedro: Cala a boca pirralho, nem pensa em falar isso.
Clara: Bem, eu queria ter um irmão, chego a ter inveja de vocês.
Miguel, abraçando João Pedro: Realmente, vale a pena ter um irmão.
João Pedro fica intrigado olhando para o irmão, fazia tempo que Miguel não chegava a encostar ou dirigir a palavra a ele, isso já não acontecia desde o dia em que ele ficou preso à cadeira de rodas, e agora de repente Miguel o abraça. Miguel também tenta disfarçar o quanto isso parece estranho pra ele, sempre se manteve distante do irmão caçula, como se a paralisia dele fosse contagiosa, e agora, começara a se reaproximar dele por causa de uma menina que nunca havia visto na vida. Clara consegue notar que os dois estão estranhos, mas não opina.
Clara: E, me desculpa a indelicadeza João, eu vou entender se você não quiser falar disso, mas como você ficou assim… Nessa cadeira?
João Pedro: Ah, é que um dia…
Miguel, interrompendo novamente: Ele nasceu assim!
Clara consegue notar que os dois garotos estão escondendo alguma coisa.

Cena 05 – Cabana dos meninos. Fim de tarde.
Miguel está deitado em sua cama, lendo um livro, algo que realmente detesta fazer, mas como não tem escolha já que seu celular está carregando. A porta abre e Miguel já sabe quem entra pelo barulho de rodas no chão de madeira, é João Pedro que vai até o beliche deles.
João Pedro: Miguel!
Miguel: O que você quer?
João Pedro: Posso te perguntar uma coisa?
Miguel: Pergunta, vai.
João Pedro: Por que você me abraçou daquele jeito hoje na hora do almoço?
Miguel: Do que que você tá falando?
João Pedro: Você sabe, quando a Clara disse que tinha inveja da gente porque tínhamos um ao outro e você me abraçou e disse que valia a pena, como se nós ainda fôssemos unidos, por que fez aquilo?
Miguel: Qual é o problema? Eu não vou te passar nenhuma doença se é o que você está pensando.
João Pedro: Não, não é isso, eu só não entendi porque você tocou em mim, quer dizer, desde aquele dia em que tudo aquilo aconteceu você nunca mais se aproximou de mim, aliás, por que não me deixou falar o que aconteceu pra Clara?
Miguel: Olha João, para de ficar fazendo tempestade em copo d’água, eu só coloquei o meu braço em volta das suas costas, eu não ia tentar te sufocar.
João Pedro: Às vezes eu não entendo você, só queria saber porque você me evita tanto depois que eu fiquei paralítico, eu era quem devia ter raiva de você, mas eu não tenho.
Miguel desce do beliche. Ele chega bem perto do irmão, e parece que vai partir pra cima dele com um monte de gritos e insultos como costuma fazer quando seus pais lhe dão ordens, mas invés disso, ele só se ajoelha.
Miguel, segurando a mão de seu irmão: Muitas coisas aconteceram depois daquele dia João, não foi só pra você que a vida ficou difícil depois dele.
João Pedro: Do que você tá falando?
Miguel: Talvez um dia eu te conte, mas agora não tem por que.

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