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O Caçula

O Caçula – Capítulo 01

Capítulo 01
O Acampamento

“Toda a doutrina social que visa destruir a família é má, e para mais inaplicável. Quando se decompõe uma sociedade, o que se acha como resíduo final não é o indivíduo, mas sim a família”. – Victor Hugo.

Cena 01 – Segunda feira. Casa dos Alves.
A mochila está quase que totalmente cheia, Miguel continua a enfiar suas coisas nela enquanto pensa se há alguma maneira de se livrar da viagem antes de ir. Laura, a mãe do garoto, entra no quarto nervosa.
Laura, escorada na parede: Garoto, vai demorar muito aí ou tá perto?
Miguel, irritado: Ah, já é a milésima vez que pergunta a mesma coisa, será que não foi claro que eu já tô quase terminando?
Laura: Você só fala, fala, fala, mas não faz nada, nesse ritmo vocês vão acabar perdendo o ônibus.
Miguel: E por que você acha que eu estou enrolando tanto?
Laura: Quer parar de bancar o engraçadinho?
Miguel: Quantas vezes vai ser preciso eu repetir que eu não quero ir pra essa droga de acampamento?
Laura: Garoto, para de reclamar antes que eu perca a minha paciência.
Miguel, irônico: Coisa que quase nunca acontece, não é?
Laura: Chega! Anda logo, seu irmão que era quem deveria demorar mais já está pronto há horas.
Miguel: Porque vocês o ajudaram, ele pode praticamente não ter 2 pernas, mas tem 6 braços e 4 pernas contando com você e o Gilberto, por que um não vem me ajudar enquanto o outro ajuda o João Pedro?
Laura: Não começa com essas provocações, sabe muito bem porque ajudamos o seu irmão, ele precisa de amparo e você não, e você sabe muito bem porque.
Miguel: Fala como se eu tivesse culpa dele ser aleijado.
Laura: Mas você tem culpa, foi você quem causou tudo aquilo.
Miguel: Precisa ficar me lembrando disso a cada dia? Já não basta tudo que eu venho passando desde que aquilo aconteceu?
Laura: Se tivesse sido mais cuidadoso nada daquilo teria acontecido.
Miguel: Se vocês não fossem dois pais irresponsáveis aquilo não teria acontecido, eu devia ter deixado ele morrer pra ver se assim vocês aprendiam a agir como pais de verdade.
Laura dá uma bofetada forte em Miguel que o derruba no chão.
Laura: Da próxima vez que você repetir isso, vai morar na rua, você entendeu?
Miguel, com a mão no rosto, quase chorando: Na rua a minha vida seria melhor do que nesse inferno aqui.
Laura: Cala a boca e arruma logo essa mochila!
Laura sai do quarto. Miguel chora de raiva.

Cena 02 – Escola.
Os alunos estão todos entrando no ônibus. Como de costume, algumas das turmas vão participar de um acampamento numa área de floresta preservada fora da cidade durante uma semana, num local onde tentam se desligar do mundo moderno, sem televisão, sem celular, sem sinal de internet, sem computadores, nada! A maioria, assim como Miguel, vai para o acampamento por obrigação dos pais. Miguel senta em uma cadeira no fundão ao lado de um de seus amigos, Marcelo.
Marcelo: O que você acha que vai ser esse acampamento?
Miguel: Vai ser uma completa droga, tenho certeza.
Marcelo: Você tá levando alguma coisa? Um celular, um videogame portátil…
Miguel: Claro né, a maior parte do tempo naquele fim de mundo vai ser um saco!
Marcelo: Olha lá, eu ouvi dizerem que se nos pegarem lá com isso, eles confiscam e só devolvem no dia da gente voltar.
Miguel: Eles que façam isso comigo e eu boto aquela droga de lugar abaixo.
Miguel e Marcelo observam pela janela o esforço dos professores e do motorista do ônibus para ajudar um dos alunos, João Pedro, um cadeirante, a subir.
Miguel: Quanto esforço, parece até que esse garoto é um morto-vivo.
Marcelo: Miguel, ele é cadeirante, ele precisa de ajuda para subir no ônibus.
Miguel: Cadeirante, esse aleijado é um incapaz.
Marcelo: Miguel, como você pode falar desse jeito? Ele é se irmão!
Miguel: Meu irmão coisa nenhuma, ele é um conhecido, eu não tenho família!
Marcelo: Tem sim.
Miguel: Tenho nada, aqueles lá que me criam não passam de um bando de idiotas, eles não são meus pais e esse aleijado não é meu irmão.
Miguel coloca os fones de ouvido e escora a cabeça na janela, olhando para o céu. Queria poder abrir aquela janela e sair voando por ela, até o céu, onde ninguém pudesse alcançá-lo, perturbá-lo, queria ser independente, fugir de tudo, da escola, de casa, da família, de tudo!
O motorista liga o ônibus, e todos seguem.

Cena 03 – Acampamento.
Depois de mais de 1h30min de viagem, finalmente a turma chega até o acampamento. Os professores e o motorista descem primeiro o aluno João Pedro e em seguida desce o restante do ônibus. Mais ou menos 40 alunos estão espalhados no campo quando o diretor Humberto os reúne.
Humberto, gritando: Muito bem alunos, todos, reúnam-se, parem de ficar se dispersando, agora vamos conhecer o lugar.
Chega um senhor, é Rafael, o dono do acampamento, ele vem acompanhado de uma mulher jovem e bonita e mais uma menina.
Humberto: Alunos, cumprimentem o senhor Rafael, dono do acampamento.
Todos os alunos, desanimados: Boa tarde senhor Rafael.
Rafael, animado: Obrigado. Muito bem alunos, sejam muito bem-vindos ao meu acampamento. Como o diretor Humberto já disse, eu me chamo Rafael e estas são minha filha Melissa e minha neta Clara, elas vão ajudar vocês a conhecerem o nosso acampamento.
Melissa: Muito bem crianças, eu imagino que vocês estejam cansados da viagem, então hoje vocês estarão livres para descansar, as meninas venham comigo e com a minha filha, os meninos vão com meu pai que vamos lhes mostrar as suas cabanas.
Assim dito, os meninos seguem Rafael e as meninas seguem Melissa. Miguel, de longe, observa a neta de Rafael, a menina é simplesmente linda.

Cena 04 – Cabana dos meninos.
Rafael e os meninos chegam até a cabana.
Rafael abre a porta da cabana: Muito bem garotos, essa aqui é a cabana em que vocês vão ficar, podem entrar, escolher um beliche, arrumar suas coisas, se quiserem podem tomar banho e aqui perto temos mais uma cabana onde vocês podem ir para lanchar, comer alguma coisa. Fiquem à vontade.
Todos os meninos entram. Miguel pega um dos últimos beliches, o nº 8, a cama de cima. Empurrando-se com sua cadeira, João Pedro passa por entre os garotos agitados.

Cena 05 – Lanchonete.
Todos misturados, os meninos e as meninas estão lanchando sanduíches, doces, pipoca, sucos, etc. João Pedro vem chegando com sua cadeira de rodas com uma pequena bandeja no colo. Ele se aproxima de Miguel, que logo que vê o irmão, faz desaparecer seu sorriso.
João Pedro, animado: Puxa Miguel, que bom te ver, não tava te achando, cheguei a pensar que você tinha fugido e ficado na cidade e me deixado vir sozinho pra essa viagem.
Miguel, bravo: É, eu pensei em fazer isso, sonhar é de graça, né?
João Pedro: Me diz aí, o que você tá achando desse lugar?
Miguel: Não tô achando nada, ok? Nada! Isso aqui é o fim do mundo, sem televisão, já tentei abrir meu Whatsapp, nada, aqui não tem sinal de internet nem de celular.
João Pedro: Ué, mas como você quer se conectar a natureza com todas essas modernidades nas mãos?
Miguel: Ah, fala sério João, para de agir como um caipira!
João Pedro: Tá bom. Ei, eu peguei a mesma beliche que você.
Miguel: Como é que é?
João Pedro: Isso, eu vou dormir bem debaixo de você.
Miguel: Ah, fala sério garoto, por que você tem sempre que ficar pegando no meu pé como se fosse minha segunda sombra? Já não basta o quanto eu vou perder minha diversão nesse lugar tendo que ficar de olho em você?
João Pedro fica cabisbaixo, tanta ignorância da parte de Miguel não é coisa nova pra ele, mas às vezes é difícil aguentar tanta grosseria, ainda mais vindo seu próprio irmão.
Rafael chega carregando uma caixa de som e a liga na tomada.
Rafael, chamando a atenção de todos: Muito bem meus jovens, como hoje vai ser um dia pra vocês descansarem e se entreterem, eu vou agora presentear vocês com uma bela apresentação, com vocês, minha neta Clara que vai fazer um pequeno show para animá-los.
Clara entra toda bem vestida, bem penteada e com um microfone na mão.
Miguel, sussurrando mal-humorado: Beleza, e agora pra piorar, um show sertanejo.
A música começa a tocar estilo karaokê, mas não é sertanejo como Miguel imaginou, é a música “Teenage Dream” da cantora californiana Katy Perry. Clara começa a cantar e todos os alunos enlouquecem, a menina tem uma voz linda. Miguel fica observando Clara, mesmo com um coração de pedra e com seu jeito frio de ser, ele não consegue disfarçar que está encantado com a beleza da garota.
Clara, cantando e dançando animada: You make me feel like I’m living a teenage dream, the way you turn me on, I can’t sleep, let’s run away and don’t ever look back, don’t ever look back!

Cena 06 – Cabana dos meninos. Noite.
Miguel ainda está acordado. Ele olha para o teto da cabana, começa a pensar em Clara.
Miguel, falando com si mesmo em voz baixa: Por que eu não paro de pensar nessa menina?
O garoto se levanta e vai até o banheiro. Ele ascende a luz e se olha no espelho.
Miguel: Devo estar maluco!
Miguel apaga a luz e volta para o quarto. Antes de subir no beliche, e se ajoelha perto de João Pedro, que está bem na cama abaixo à sua.
Miguel, passando a mão no cabelo do irmão: Ah meu maninho, se você soubesse os sacrifícios que eu faço por você.
Miguel beija a testa de João Pedro, em seguida sobe no beliche, se deita, se cobre e se vira para dormir.

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