Jardim Brasil [ep. 11]: A flor que exala dor
BEGÔNIA – RODRIGO GOMES
“A flor que exala dor”
A lua já tinha tomado conta do céu quando Begônia estava prestes a sair do palco, após ter deixado o público eufórico com sua bela cantoria. A multidão aplaudia calorosamente, satisfeita com o espetáculo que acabaram de presenciar.
Enquanto se despede das pessoas, mandando-lhes beijos, dois homens se destacam perante os olhos da moça, pois estes são os únicos no galpão que estão conversando paralelamente – um cochicha no ouvido do outro, e não desgrudam os olhos da artista. Ela estranha, mas continua a se despedir tranquilamente.
– Sou muito grata pelo carinho, gente! Infelizmente só pude cantar uma única música mesmo, pois isso é um show de talentos e tem mais pessoas para se apresentarem. – Ela fala esbaforida no microfone, com seu cabelo castanho encaracolado bastante agitado por conta do vento. – E quero convidar todos a comparecerem no Boca de Mulher porque vou estar lá este ano, e conto muitíssimo com a presença de vocês. Obrigada e até logo!
As pessoas ovacionam Begônia, que fica radiante ao estampar um grande sorriso no rosto. Seu belo vestido curto de tom azul-escuro contrasta perfeitamente com sua pele dourada, deixando-a ainda mais exuberante.
Assim que botara os pés fora do palco, o celular dela começa a tocar, ela coloca no chão o violão que trazia consigo, e tenta fazer um coque no cabelo enquanto atende a ligação.
– Caíque? O que você ainda está fazendo acordado, mocinho? Pode ir já para cama seu moleque danado. Amanhã tu tem aula cedo. – Ela fala não tão sério. – Não, eu não irei demorar. Pode dizer ao seu pai que já tô indo pra casa, e que eu sei muito bem que foi ele quem mandou você ligar.
Após desligar o aparelho, ela apanha seu violão, pega um panfleto que estava jogado ali, e lê este ao caminhar:
Boca de Mulher
O tema deste ano é um pouco diferente dos anteriores, mas será tão relevante quanto os outros: MULHER GUERREIRA, onde as cantoras deverão soltar a voz para expressarem sobre a força feminina.
Você não pode deixar de comprar seu ingresso e prestigiar essas acreanas que irão agitar Rio Branco inteiro com suas vozes encantadoras!
Um sorriso brota dos lábios dela mais uma vez, porém, agora seus belos dentes estão visíveis. Distraída, ela acaba esbarrando em Jéssica.
– Amiga! Você não perde nenhum evento de música que acontece em Rio Branco mesmo, hein! – Jéssica fala contente ao ver Begônia.
– Você é outra que não perde uma farra sequer. – Retruca Begônia, cheia de felicidade.
– Mas eu sou apenas ouvinte, você é quem solta a voz. Uma pena que eu tenha chegado só agora. Você já se apresentou, né? – Ela pega nas mãos da amiga.
– Sim, mas tenho um novo evento pela frente: o Boca de Mulher. Você vai? – Ela balança as mãos de Jéssica, que estão entrelaçadas às suas.
– Com toda a certeza deste universo! Estarei lá. Menina, parece que eu já tô até vendo você se tornando uma grande cantora, sabe? Potencial é o que tu mais tem.
– Esse é o meu maior sonho, Jessy. E se Deus quiser, conseguirei realizá-lo.
– É assim que se fala! Agora deixa eu entrar logo, antes que esse show acabe. – Ela fala beijando Begônia na bochecha. – Bebê, desejo toda sorte do mundo pra ti. E qualquer dia eu passo lá pra te fazer uma visitinha.
– Vai logo curtir teu show, sua louca. E cobrarei a visita. Faz tempo que você não aparece lá em casa.
Elas se despedem com um abraço caloroso, e enquanto Jéssica entra no galpão, Begônia – que está de saída – segue seu caminho por uma estrada de terra mal iluminada e repleta de árvores.
Depois de certo tempo andando, faltando pouco para que a estrada acabasse, a cantora se assusta ao escutar um galho sendo quebrado atrás de si. Virando de supetão, ela se depara com duas pessoas não identificáveis por conta da escuridão.
– Quem tá aí? – Begônia está evidentemente assustada.
– O teu pior pesadelo. – Uma das vozes diz.
– Ou o teu maior sonho. – A outra voz contraria.
– Socorro! – Ela grita escandalosamente ao sair correndo.
Os homens – donos das vozes – correm atrás de Begônia, e ao alcançarem esta, tampam a sua boca impedindo-a de gritar. Ambos começam a arrastar a moça, que está bastante agitada. Eles a levam para um lugar mais iluminado e distante da estrada. Ali há várias árvores, as quais impedem quem quer que seja de ver aquela cena.
Enquanto um dos homens tira a calça, o outro segura Begônia com força para que ela não fuja. As lágrimas saltam dos olhos dela como se fossem dois rios. Ao ver o indivíduo aproximando-se de ti completamente nu, a moça tenta identificá-lo, mas é impossível, pois o mesmo está com uma camisa amarrada na cabeça, o que permite ver apenas seus olhos. Olhando para o alto, a cantora tenta identificar o outro rapaz, porém, ele também está tampando o rosto com uma vestimenta.
– Não se preocupe! Eu já deixei ele bem escorregadio pra não rasgar você. – O homem nu fala, parecendo se divertir com tudo aquilo. – Agora eu vou penetrar em ti. Fica quietinha, tá?
Begônia começa a se debater no chão enquanto o indivíduo tira sua calcinha. Por conta disso, acaba batendo fortemente seu crânio na raiz da árvore. Ele fica por cima dela, imobilizando-a. Nesse meio tempo, o outro rapaz se levanta e começa a despir-se. A moça já está sem forças até mesmo para gritar, sua demasiadamente, a cabeça dói por conta da batida, e a visão dela vai desfocando até suas vistas ficarem completamente escuras.
– Relaxa princesa! – Essas foram as últimas palavras que Begônia escutou antes de perder sua consciência totalmente.
O céu estava levemente mais claro quando a vítima abriu os olhos. Sua mente demora alguns minutos para processar tudo que ocorrera. Senta-se no chão com dificuldade, e fica perplexa ao ver suas pernas roxas com vários hematomas.
– Eu sou um lixo. – Ela inicia um choro sentido. – Como eu pude deixar isso acontecer? É tudo culpa minha. Se eu tivesse escutado o Rubens antes, nada disso teria acontecido. Com que cara voltarei para casa?
É possível sentir a frustração estampada no choro e rosto de Begônia. Ela queria ter tido forças para espantar a dupla que a violentou, e por isso se culpa por não ter conseguido realizar tal ato. Também lamenta por não ter escutado seu marido, que não aprova muito o hobby de cantora dela.
Apoiando-se em uma árvore, a moça consegue se levantar. Ela então vai de encontro à estrada, caminhando feito uma morta-viva. A mulher anda em passos lentos até finalmente conseguir chegar em casa.
Assim que colocara os pés em sua residência, Begônia se abaixa e volta a chorar. Ela abraça suas próprias pernas, se encolhendo encostada na porta. Por conta do barulho, não demora muito para que alguém apareça.
– Aonde é que a senhora estava? Meu pai saiu aí de carro igual um louco. – Caíque fala sem perceber que a mãe está aos prantos. – Até tentamos registrar seu desaparecimento na polícia, mas eles nos aconselharam a aguardar vinte e quatro horas. Mãe, você não vai falar nada?
– E o que é que você quer que eu diga? – Ela levanta a cabeça em direção a ele.
– Você está chorando? – Ele se assusta. – O que aconteceu, mãe?
O jovem se aproxima para abraçá-la, mas Begônia se esquiva:
– Não toque em mim! – Ela esbraveja, o empurrando para longe. – Saia de perto! Eu estou suja, imunda.
– Você usou drogas, é isso? Por que está falando dessa forma? O que aconteceu? Fala comigo. O que são essas marcas roxas em suas pernas? – Os olhos dele se enchem de lágrimas ao ver a mãe naquele estado.
Begônia não responde Caíque, apenas chora, exalando bastante dor. Porém, alguém tenta abrir a porta, interrompendo seu momento delicado. Ela então se arrasta mais para o lado, abrindo caminho pra quem quer que fosse. Rubens entra todo preocupado, mas logo se tranquiliza ao ver sua esposa sentada no chão.
– Meu Deus do céu, Begônia! Tá pensando que você é aquela adolescente de anos atrás? Você tem trinta e dois anos nas costas, já passou da idade de ficar deixando a família preocupada com seus caprichos. – Rubens está evidentemente muito nervoso. – Tenho certeza que deve ter prolongado sua apresentação naquele showzinho beneficente.
A mulher não olha para o marido, está com o rosto enfiado entre as pernas.
– Ela não está nada bem, pai. Já perguntei o que aconteceu, mas ela não quer dizer. Apenas sabe chorar e chorar. – Caíque diz com os olhos avermelhados.
– Desconfiei desde o princípio. – Ele pega Begônia com força pelo braço, fazendo a esposa se levantar. – Ela deve ter bebido todas, por isso está nesse estado.
– Me solta, Rubens! Você não sabe o que está dizendo. Me larga! – Begônia agita o braço tentando fazer com que o homem a solte, mas é em vão.
Rubens leva a mulher a contragosto para o banheiro e a força tomar um banho gelado com roupa e tudo. Caíque apenas observa calado aquela cena toda. Begônia reluta, mas seu marido não a deixa sair debaixo do chuveiro.
– Não foram poucas as vezes que eu te alertei sobre você ficar cantando por aí. Quantas vezes lhe disse que esse hobby de merda não te levaria a lugar nenhum? Eu nunca escondi de você o fato de não gostar desse teu sonho bobo de ser cantora, mas também nunca te impedi porque tu não é mais criança, é capaz de fazer suas próprias escolhas. – Rubens expõe o quanto está enraivado com aquilo tudo. – Você tem noção do quanto eu rodei Rio Branco inteiro tentando te encontrar? Preocupado contigo. Pra quê? Chegar em casa e me deparar com você bêbada?
– Eu não estou bêbada, eu fui… eu… eu te traí! – Begônia sofre ao mentir. – Eu te traí, te traí, Rubens.
Rubens fica gélido, aos poucos vai se afastando de Begônia, surpreso com a revelação dela.
– Você o quê? – Ele parece não acreditar. – E ainda tem coragem de me dizer isso assim? Como se fosse algo simples.
– Nada disso teria acontecido se você me tratasse com mais carinho, com mais amor. – Ela se senta no chão, enquanto a água do chuveiro continua a cair em sua cabeça. – Você é machista, Rubens! Muito machista. E eu não suporto mais isso.
– Você deveria agradecer a Deus por ter alguém que lhe sustente, que te veste, que se preocupa contigo, e nunca sequer levantou um dedo pra ti. Eu não tenho mais estômago pra te escutar! Tô com nojo de você. – Rubens confessa ao sair do banheiro.
Caíque e Begônia se entreolham emocionados. O rapaz pensa em aproximar-se dela, mas recua.
– A senhora precisa de um tempo pra pensar nessa mentira que acabou de contar. Sim, sei que nada disso é verdade. Está querendo esconder alguma coisa, pois já vivi na pele algo parecido. Eu até ficaria aqui pra tentar te confortar com algumas palavras, pra entender o que realmente aconteceu, mas sei que quando a tempestade passar, tu irá me castigar por não ter ido dormir na hora certa. – Caíque olha entristecido para a mãe.
Após beijá-la na testa, ele sai do cômodo, deixando-a sozinha. Begônia continua sentada, a água do chuveiro ainda cai, a dor pelo que aconteceu permanece a mesma, mas ela é forte e conseguirá passar por cima disso, ou é o que mais quer que aconteça. A moça fecha os olhos por alguns instantes.
– Estou tão envergonhada, meu Deus! Tão envergonhada. – Ela soluça de tanto chorar.
Sentada, ela tira sua própria roupa, ficando totalmente nua. Begônia se levanta para pegar a esponja e o sabonete. E debaixo do chuveiro, esfrega sua pele como se fosse rasgá-la.
– Eu tenho que tirar essa sujeira de mim. Não quero ficar com isso grudado em meu corpo.
Begônia acordara assustada quando Caíque estava colocando um cobertor em cima de ti, ao vê-la dormindo no sofá. Ela se recupera do susto lentamente, está com os olhos doendo por não ter dormido o necessário para considerar-se descansada.
– Você já tá indo para a escola? – A voz da moça ainda está rouca.
– Na verdade, ainda nem me arrumei. Estou indo tomar um banho. Quer comer alguma coisa? – Caíque é atencioso. – Ou talvez conversar sobre o que ocorreu ontem.
– Você foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida, sabia? Não me arrependo de ter tido um desentendimento com meu pai por estar grávida de ti. Quanto ao episódio de ontem, esqueça aquilo.
– Isso é tão triste, né mãe? Meu avô mora na mesma rua que a gente, mas nem olha na nossa cara. Ao menos a vovó aparece aqui de vez em quando para saber como estamos.
– O seu avô é sangue ruim mesmo, sempre foi assim. Mas não vamos falar sobre isso agora. Você precisa ir tomar seu banho. Vai, vai, vai!
– Pelo visto a senhora já voltou ao normal. – Ele sorri ao ir para o banheiro.
A moça continua deitada no sofá, fica imóvel por alguns instantes – olhando para o teto –, em sua mente passa um filme de quando era adolescente. Ela tinha quinze anos quando tudo aconteceu: seu pai lhe expulsou de casa ao descobrir que estava grávida. Begônia parecia estar revivendo a tristeza que sentiu naquele dia, a última vez que teve contato com seu pai.
Lembrava naquele momento de todas as palavras que foram ditas por Celeste – sua mãe – e Firmino – seu pai. Aquela quietude do ambiente possibilitou que ela relembrasse não somente o dia em que saiu de casa, mas também os bons acontecimentos que vivenciara ao lado de seus genitores.
O tempo passa por Begônia sem que ela perceba, suas recordações são interrompidas somente com o retorno de Caíque:
– Agora sim estou pronto, mãe. Tô indo pra escola. – Ele fala, já com a mochila nas costas.
– Vá, e preste bastante atenção na aula! Não se esqueça que este ano tu vai prestar vestibular.
– Tá bom, mãe. Tá bom. Beijos. – Caíque fala ao sair, fechando a porta devagar.
O silêncio começa a causar efeito na mulher mais uma vez, mas agora o que tinha em mente era o que ocorrera na noite passada. E os mesmos sentimentos que teve ao ser violentada, voltam a tomar conta de seu corpo. Begônia sua frio, mas se força a não chorar: ela precisa e quer ser forte.
Decidida em fazer qualquer coisa para ocupar a cabeça, ela se levanta e apanha seu celular. A moça encara a tela do aparelho e digita “grupo de apoio a vítimas de estupro no Acre”, toma coragem e pressiona a tecla “pesquisar”. Ao acessar o primeiro site, o qual está intitulado como ‘Associação Entre Amigos’, encontra uma página com diversos depoimentos de mulheres que passaram pela mesma situação que a sua.
Após ler alguns relatos, a cantora constata que um grupo de vítimas teve coragem de procurar a polícia e contar sobre a crueldade que sucedera em suas vidas. Mas houve outras que preferiram fingir que nada lhes aconteceram, e tentaram seguir em frente, mesmo sendo atormentadas frequentemente pelas lembranças.
Algo em seu interior dizia que ela fazia parte do segundo grupo, pois temia a reação dos outros para com sua fatalidade, não queria que ninguém tivesse conhecimento daquilo, envergonhava-se só de imaginar relatando isso aos policiais, principalmente do sexo masculino – os quais poderiam julgá-la.
Na parte inferior do site, no rodapé, Begônia encontra o endereço do tal grupo de apoio. Ela pergunta a si mesma se teria coragem de contar aos integrantes daquela associação – os quais passaram pela mesma infelicidade – sobre ter sido violentada. Enquanto se questiona, a mulher seleciona o endereçamento, copia na área de transferência e logo em seguida cola no bloco de notas de seu celular.
– Que bom que você já está acordada. – Rubens fala atrás de Begônia, fazendo-a levar um tremendo susto. – E pelo horário, o Caíque já foi para a escola. O que vai facilitar a nossa conversa.
– Rubens, se for sobre o que aconteceu ontem… Eu quero te pedir desculpas. – Ela fala ficando de pé. – Deixe-me explicar tudo.
– Você não precisa explicar nada, Begônia. Eu já sei de tudo. – Rubens fala com um olhar sombrio.
– Não entendi. O que você quer dizer com isso? – Begônia estranha.
Rubens dá uma gargalhada macabra antes de responder a esposa:
– Você é mesmo tão trouxa assim ou se faz? – Ele continua rindo. – Fui eu, Begônia. Fui eu quem pagou para aqueles caras foderem você no meio do mato.
A moça está estupefata, mais branca que um pedaço de papel:
– O quê? Mas por… Por quê?
– Não se faça de vítima. Você gostou que eu sei. É tão fogosa na cama, sabe fazer sexo como ninguém. Adora uma putaria! – Ele fala se aproximando dela. – Sem dizer que só pode ser por isso que você vive fazendo esses showzinhos pela cidade: pra deixar os machos excitados. Ou seja, só facilitei o que você tanto queria: ser fodida por um deles. No caso, te dei um bônus, já que foi uma dupla penetração. Acho que agora não tem mais motivo nenhum pra tu continuar cantando por aí, né?
– Então é isso? – Begônia treme de raiva. – Você foi capaz de pagar pra fazerem uma crueldade daquelas comigo? Eu fui estuprada, seu desgraçado. E tudo por culpa sua? Rubens, quem tem nojo de você sou eu. A música pra mim é muito mais do que “deixar os machos excitados”, eu realmente gosto de cantar, é a minha paixão. E não vai ser isso que me impedirá de continuar seguindo atrás do meu grande sonho, ainda serei reconhecida nacionalmente pelo meu talento.
– Pois eu já estou farto disso! Você vai ter que escolher entre esse seu sonhozinho bobo e a sua casa, o que também inclui o seu filho. – Rubens está irredutível.
– Você não manda no Caíque, Rubens. Ele tem dezessete anos, é capaz de escolher sozinho com quem quer ficar. Mas de uma coisa eu tenho certeza: nesta casa eu não fico nem mais um segundo. Vou já pegar as minhas roupas e sair daqui. – Begônia dá um passo em direção ao quarto, porém, Rubens barra a sua passagem.
– Você quer mesmo ir embora? Então pegue a única coisa que foi comprada com o seu dinheiro: o seu violão. Quanto ao Caíque, não se preocupe, pois assim como ele acreditou que saí procurando você em Rio Branco inteiro ontem, também acreditará quando disser que você fugiu com seu “amante”. – Rubens se senta no sofá, fazendo pouco caso da situação.
– Eu me casei com um monstro, e somente agora consigo enxergar. – Begônia se esforça pra não derramar uma só lágrima.
A mulher hesita por alguns instantes, mas acaba apanhando seu celular e o violão. Em poucos segundos já está fora de casa, completamente sem rumo.
***
Várias crianças correm alegres para lá e para cá, os passarinhos cantam felizes, as folhas das árvores caem naturalmente, o sol brilha ardentemente, e em meio a tudo isso é possível ver Begônia sentada no banco do parque. Com seu violão em mãos, ela está tentando compor uma música para cantar no evento Boca de Mulher:
“Sua história não é fácil de contar…
Quanta coisa teve que enfrentar…
Bela moça sozinha na vida…
Seria ela uma fera ferida?” – Ela sorri ao conseguir compor alguns versos. – Acho que estou indo pelo caminho certo. Talvez as melhores letras de músicas sejam mesmo feitas nos momentos mais difíceis.
A cantora está tão entretida com a sua composição, que nem percebera alguém se aproximando atrás de si. A pessoa abraça Begônia pelas costas, e esta se solta rapidamente dando um murro certeiro no olho do indivíduo.
– Andrey? – Ela pergunta com a respiração ofegante. – Você tá ficando louco? Como é que cê chega assim? Eu quase tive um enfarto.
– Você “quase” teve um enfarto. Já eu acho que perdi meu olho. – Andrey fala com a mão no olho.
– Desculpa, mas nada disso teria acontecido se você me abordasse decentemente.
– Tá, tá. Tive mesmo minha parcela de culpa. Mas e aí, como foi o show ontem? Gostou? – Ele fala ao se sentar num banco, próximo de onde Begônia estava sentada em outrora.
– Gostei sim. Mas não te vi lá. Nunca soube de um organizador que faltou em seu próprio evento. Aliás, esse show conseguiu arrecadar bastante dinheiro?
– Uns imprevistos acabaram surgindo, por isso tive que pedir para meus amigos segurarem as pontas por mim. E sim, conseguimos muita grana, até mais do que imaginávamos. Os ingressos esgotaram.
– Isso significa que você vai poder me pagar por ter cantado? – Ela brinca.
– Engraçadinha você! Todos que se apresentaram fizeram isso por bondade, para ajudar numa causa nobre.
– Só tô brincando, palhaço! Espero que muitas famílias necessitadas possam ser ajudadas. Mas diz aí que imprevistos foram esses.
– Nada demais. Foi apenas um desentendimento com a dona Fátima e o seu Josué. E o que é que você anda fazendo por aqui? Veio relembrar os velhos tempos? Onde ficávamos correndo igual dois loucos. – Ele sorri ao lembrar. – Éramos dois pimpolhos terríveis, nossas mães ficavam de cabelos em pé.
– Eita, desentendimentos entre pais e filhos não é nada bom! Se quiser desabafar, estamos aí. Na verdade, não vim aqui relembrar os velhos tempos, apesar de que foram ótimos. Pela minha vontade ficaria correndo aqui contigo até os dezoito, mas engravidei aos quinze e tive que amadurecer mais cedo.
– Então veio aqui para…?
Begônia pensa um pouco e decide ocultar o fato de ter saído de casa, não tendo para onde ir:
– Para que essa paisagem maravilhosa me inspirasse a escrever uma música pro Boca de Mulher. Mas acho que precisarei da sua ajuda, consegui compor poucos versos… Você poderia dar uma mãozinha a essa sua velha amiga?
– O que você não me pede chorando que eu não faço sorrindo? Desde pequena é assim: vive me pedindo ajuda em tudo. – Andrey sorri estonteante.
– Então vai mesmo me ajudar? É por essas e outras que eu te adoro. – Begônia continua de pé, fazendo existir certa distância entre ela e Andrey.
– Por que você não se senta aqui ao meu lado para a gente compor junto? Ou prefere ir lá em casa? – Andrey soa inocente.
– Na verdade, eu preciso muito voltar pra casa o mais rápido possível. Tenho tanta coisa pra fazer… – Begônia mente para não deixar transparecer que ficou desconfortável com o convite do amigo.
– Ah, claro! Os deveres domésticos intermináveis de Begônia, eles nunca deixam de existir. – Andrey fala com um tom de ironia. – Mas então tu me passa pelo celular o que conseguiu compor que aí dou continuidade.
– Tá bom, eu te passo sim. Mas não se esqueça que tenho um prazo para estar com a música em mãos, hein!
– Olha aí! Além de tudo é exigente. Pode deixar que você vai ter essa música dentro do prazo. Relaxa princesa! – Andrey fala se levantando do banco.
As últimas palavras de Andrey ecoam na cabeça de Begônia, pois foram ditas por um dos homens que a estupraram. A moça começa a perder o ar, as imagens do indivíduo tirando sua calcinha passam pela mente dela.
– Begônia, você está bem? – Andrey estranha.
Ela se deita no chão, ainda perdendo o ar, se encolhe aflita. Gotas de suor surgem na testa da mulher. Isso tudo faz com que Andrey fique bastante preocupado.
– Meu Senhor Amado! O que está acontecendo contigo, Bê? – Ele se aproxima da amiga, que está no chão.
– Não toca em mim, não toca em mim, não toca em mim! – Ela treme, os olhos estão cheios de lágrimas. – Sai daqui, sai! Sai.
– Begônia, se acalma! – Ele faz com que ela sente e a abraça com força, mesmo com a moça relutando. – Tá tudo bem, tá tudo bem.
Aos poucos a cantora vai parando de lutar contra o abraço do amigo, e lentamente recupera seu ritmo de respiração normal. O fato de ter o corpo de Andrey colado ao seu a deixa perturbada.
– Eu preciso ir embora! – Begônia empurra Andrey, se levanta, pega seu violão e corre.
Bem longe do parque, a mulher agora caminha lentamente pensando no que acontecera há pouco. Begônia está se odiando por ter reagido de forma tão esquisita com seu melhor amigo. Ao menos não se culpa mais pela fatalidade que vivenciou na noite passada, pois agora sabia que tudo fora planejado por seu marido. Mas mesmo assim ainda se sentia bastante envergonhada, além de temer a má interpretação das pessoas se tal notícia viesse a tona.
A bela moça para em frente a uma casa simples de cor alaranjada e logo avança para tocar a campainha. Depois de poucos segundos esperando, alguém responde lá de dentro. Não demora muito para que Jéssica apareça de pijama na porta da residência, carregando consigo uma faca.
– Ah, é você Bê! – Jéssica respira aliviada. – O que faz aqui tão cedo?
– Jessy, eu preciso de sua ajuda mais do que nunca. – Begônia está evidentemente bem triste.
– Aconteceu alguma coisa? – Jéssica fica preocupada.
– Eu me separei do Rubens, saí de casa e não tenho para onde ir. – Begônia está agoniada. – Amiga, será que não tem como eu ficar um tempo aqui na sua casa? Até eu arranjar um lugar para ir.
– Mas é claro que você pode ficar aqui, sua boba! Fique o tempo que for preciso. Será ótimo ter a sua companhia. Vem, entra! Vamos tomar café. – Jéssica fala animada ao puxar Begônia para dentro de sua casa.
– Eu sinceramente nem sei como te agradecer. – Begônia se esforça para sorrir.
***
Os dias passaram se arrastando até que chegasse a data do evento que Begônia iria participar, o Boca de Mulher. Ela estava feliz por estar com tudo pronto: tanto a letra quanto a melodia. Em sua mente não tinha como nada dar errado, sua apresentação sairia tão boa como quando cantou no show beneficente de Andrey. Por falar no rapaz, a cantora descobrira os reais sentimentos dele para com ela, tudo por conta da letra da música que ele concordara em terminar de compor para a amiga – através da canção, expressou o amor que sentia pela moça. Vale salientar que depois do que ocorreu no parque, ambos nunca mais se viram, comunicavam-se apenas pelo celular.
Nem tudo estava sendo as mil maravilhas naqueles últimos dias, pois Begônia não conseguiu convencer Caíque de que Rubens era uma pessoa ruim. O jovem realmente acreditara na mentira do pai – de que a mulher tinha ido embora para poder ser feliz com o amante –, e mesmo tendo desculpado a mãe pelo que “fez”, ele não quis mais vê-la – nem mesmo aceitou o convite da moça, que o chamou para morar com ela por um tempo na casa de Jéssica.
Apesar de algumas coisas boas estarem acontecendo em sua vida, a mulher ainda tinha delírios e pesadelos por conta do estupro que vivenciara. Foram inúmeras as vezes em que pegava o celular e pesquisava pela ‘Associação Entre Amigos’, o endereço do local continuava salvo no bloco de notas de seu aparelho, e ela cogitara muito em ir até lá, mas faltava-lhe coragem. Até agora:
– Chega, eu não aguento mais isso! – Begônia está com as mãos sobre o rosto. – Se não consigo me abrir nem com a Jéssica, que é minha melhor amiga, preciso procurar por pessoas que passaram pelo mesmo que eu.
A moça está decidida em ir até o grupo de apoio para tentar desabafar e, quem sabe, encontrar uma solução para os seus problemas – sequelas causadas pelo que lhe sucedera. Begônia se levanta cheia de iniciativa e não demora muito para sair de casa às pressas.
Os pés da cantora já estavam cansados por terem andado tanto, o suor escorria por todo o rosto dela, que caminhou debaixo de um sol ardente. Mas ela felizmente conseguiu chegar até o seu destino: a associação. Ficou parada na frente do local, esperando que a coragem surgisse e lhe impulsionasse a entrar. Depois de uma grande hesitação, caminhara rapidamente para dentro do lugar.
Já na recepção, Begônia é abordada por uma moça que dá as direções necessárias para que a cantora participe da reunião que estava prestes a começar. Seguindo o que a atendente lhe dissera, ela anda a passos lentos até encontrar uma porta que dava acesso a um jardim, onde estava acontecendo a tal reunião. Por medo e vergonha, Begônia não passara da porta, ficara ali mesmo, escutando um grupo considerável de mulheres conversando – elas estavam sentadas em cadeiras de plásticos, as quais formavam um círculo perfeito.
Lentamente ela vai colocando seu rosto para além da porta, tentando avistar melhor as pessoas e identificar aquela voz – a qual era tão familiar –que estava tomando conta do ambiente. Com os olhos arregalados e o rosto evidenciando uma inegável surpresa, a cantora escuta atentamente o que acontece no jardim, onde está a mãe de seu melhor amigo prestes a iniciar a reunião.
– As mulheres que estão aqui há mais tempo me conhecem muito bem. Para quem está aqui pela primeira vez, irei me apresentar, como faço em todas as reuniões. – Discursa Fátima no centro do círculo de mulheres. – Muito prazer, meu nome é Fátima e eu sou uma das fundadoras deste grupo. E assim como vocês, eu também fui violentada por um canalha. Tudo isso aconteceu quando eu era mais jovem, anos após ter me casado.
– Casado comigo aqui! – Josué grita, se destacando por ser o único homem ali no lugar.
– Sim, gente! Esse é o meu marido. Já estamos casados há quarenta anos. – Fátima sorri. – Mas retomando de onde parei, fui violentada no meu trabalho, pelo meu patrão… Eu trabalhava de empregada na época. Ele era rico, solteiro e… Um lixo de pessoa! O crápula fez comigo a pior coisa que deve ter feito em sua vida miserável, mas deu a mim a melhor coisa que poderia ter dado: meu único filho.
Ao escutar tudo aquilo, Begônia parece perder o ar por alguns instantes, seu coração bate aceleradamente. Ouvir os dizeres de Fátima não foi nada fácil, parecia ter perdido o chão. Demorou para processar que a existência de Andrey foi fruto de um estupro, doeu saber que a mulher que cuidara de ti quando criança também passara pela mesma situação que a sua.
– Demorei pra aceitar a existência daquele ser em minha barriga. Sofri assim como vocês! Pensei até em abortar, mas o Josué não permitiu, e ainda garantiu que cuidaria da criança como se fosse dele. Não fui a única que sofri com essa história, recentemente tomei coragem para contar tudo ao meu filho. Ele ficou muito mal quando soube, mas espero que um dia meu menino consiga entender e superar isso. – Fátima está com os olhos marejados. – A vergonha e o temor eram tão grandes que nunca passou pela minha cabeça entregar aquele covarde, foi o meu marido quem me encorajou a denunciar o monstro. Mas talvez nos tempos atuais eu procuraria pela delegacia da mulher sem titubear porque ao menos seria mais confortável pra mim relatar o ocorrido.
Josué leva uma garrafa de água à sua mulher, que dá uma golada antes de continuar falando:
– Foi por causa dele que decidi criar este grupo, o qual existe há dezesseis anos. Pois ele me mostrou que eu poderia dar suporte às pessoas que passaram pela mesma desgraça que passei. Josué me apoiou do início ao fim quando lhe contei o que aconteceu. O meu porto seguro é esse homem, meninas!
– E você o meu, minha linda. – Josué fala ao beijar a bochecha de sua amada.
– Se vocês deixarem, me desembesto a falar da minha vida aqui até amanhã de manhã. Mas isso foi só uma introdução para que a gente possa se familiarizar. Espero que gostem daqui e se sintam acolhidas, sejam muito bem-vindas. E se precisarem desabafar, estou sempre à disposição, vinte e quatro horas por dia. Agora que me apresentei a todas, vamos ao que de fato interessa. – Fátima, que está com um papel na mão, dá uma verificada neste antes de prosseguir. – Hoje, antes de abrirmos espaço para as novatas relatarem o que aconteceu com elas, teremos um casal aqui entre nós, o qual me procurou ontem em minha casa e apresentaram a mim uma nova perspectiva sobre o estupro. Confesso que achei válido mostrar isso a vocês, por isso praticamente implorei para que eles se juntassem a nós. Agora é com vocês, meninos.
Begônia estava atordoada, pensava em ir embora dali o quanto antes. As surpresas foram tantas que ela já não tinha mais condição alguma para conversar com aquelas mulheres sobre o que aconteceu consigo. Para dizer a verdade, a moça não tinha nem mais ânimo em ir cantar no Boca de Mulher.
Ela se perguntava o porquê de nunca ter percebido que Fátima havia sido violentada, e que seu melhor amigo fora fruto disso. Os questionamentos eram incontáveis, mas uma voz vinda do jardim a fez parar com aqueles pensamentos. A cantora congelou, se virou lentamente, e deu dois passos para além da porta. Seus ouvidos não tinham se enganado: quem estava ao centro da roda, acompanhado de uma menina, era mesmo seu filho.
– Vocês com certeza devem estar pensando que sou eu o acompanhante da vítima. Mas na verdade, é ela quem está me acompanhando… – Caíque procura pelas palavras certas para se expressar. – Essa daqui é minha colega da escola, a Yara. E foi ela quem me encorajou a procurar por ajuda, a me abrir com alguém além dela. – Ele começa a chorar. – Eu queria ter podido contar com a minha mãe ou meu pai, mas eles nem sequer estão notando a minha existência nesses últimos dias, estão tão ocupados com seus problemas que nem devem ter tempo para os meus.
Lágrimas rolaram dos olhos de Begônia naquele momento. Ela estava perplexa. Sua vontade era de correr até Caíque e dar-lhe um abraço bem apertado.
– Minha infelicidade aconteceu no final do ano passado, quando completei dezessete anos. Era também o último dia de aula. Me lembro perfeitamente de tudo! Da festinha que meus amigos preparam para mim na sala, da minha professora dizendo que tinha comprado um presente e que o entregaria na saída da escola. Mal sabia quais eram as reais intenções dela. – Ele fala encarando a grama.
Caíque tem dificuldade para prosseguir, mas é encorajado por Yara que entrelaça a mão dela a dele.
– Inocente, fui até o encontro dela na hora da saída. Ela disse que o presente estava no carro e que teríamos de ir lá. Quando chegamos, minha professora pediu para que eu entrasse e sentasse no banco do passageiro. Inesperadamente, após ter entrado no veículo, ela travou as portas dele e mais que depressa apalpou a minha coxa. Não demorou muito para que começasse a abrir o zíper da minha calça e se aproximasse para fazer sexo oral. Depois… abaixou a própria calça junto com a calcinha e me obrigou a transar contigo. Eu soube apenas ficar parado e esperar que aquilo tudo acabasse. Foram os minutos mais demorados de minha vida.
Yara percebe que quão difícil está sendo para o amigo ter que tocar no assunto, e então decide ajudá-lo:
– E como eu estava acostumada em ir para casa acompanhada do Caíque, pois moramos na mesma rua, decidi procurá-lo em sua sala. Não o achei em lugar algum, por isso perguntei sobre ele para uma menina que ainda estava por ali e era de sua sala. Consegui descobrir seu paradeiro e fui até lá. Quando cheguei no estacionamento, avistei um carro que se destacava com relação aos outros porque em seu interior havia uma movimentação estranha. Olhei atentamente até enfim reconhecer o Caíque e a professora Virgínia. – Ela está com uma feição tristonha. – Fiquei abismada com aquela cena que presenciei: ela pulava em cima dele com tanta vontade. Mas até aí tava tudo “normal” pra mim. Todos os meninos da escola achavam a professora Virgínia a mais gostosa de todas, o Caíque foi o que tirou a sorte grande ao estar transando com ela. Essa foi a única coisa que consegui pensar.
– Acontece que mesmo a Virgínia sendo mesmo a mais bela das professoras, nunca pensei em ter nenhuma relação com ela, a não ser de mestre e aluno. Para muitos ali na escola, transar com aquela louca a força seria um privilégio, mas pra mim não foi dessa forma. Eu tive nojo daquilo, aquela mulher acabou com o meu psicológico e por mais estranho que isso seja para a sociedade: homens também são estuprados! É pura ignorância dizer que isso não existe. – Caíque não consegue mais se conter e desaba em lágrimas. – No início deste ano, eu tive receio em voltar pra escola e dar de cara com a desgraçada. Passei minhas férias todinha sendo atormentado por aquelas lembranças, muitas vezes acordei assustado no meio da noite. É algo que nunca irei esquecer, mesmo que queira. Senti um alívio apenas quando soube que a Virgínia não daria mais aula na minha escola, e assim consegui me abrir com a Yara sobre o que ela tinha presenciado no final do ano.
– Sim. E foram inúmeras as vezes que o aconselhei a contar para os pais dele ou procurar por algum tipo de ajuda. Mas ele tinha vergonha do que pensariam dele. Possivelmente achariam que ele é gay por não ter gostado de transar com um mulherão daqueles dentre tantas outras cogitações. – Yara relembra com um meio sorriso estampado no rosto.
Begônia está completamente arrasada. Não aguentava ouvir mais nenhuma revelação de quem quer que fosse. A moça demora pra voltar a si. Transtornada, ela caminha trêmula em direção à rua. E sem saber para onde ir ou o que fazer, continua a andar.
Um misto de emoções reverberavam pelo corpo da cantora: tinha medo, angústia, vergonha, vários questionamentos e incertezas. Estava a caminhar por uma ponte, a qual havia pouco movimento de carros. Quando parou de andar, era possível ver em seu rosto uma feição de tristeza. Permaneceu parada por um bom tempo, relembrava naquele momento as palavras ditas por Fátima.
– Delegacia da mulher. O que será que ela quis dizer com aquilo? Pra que serve esse lugar? – A ignorância de Begônia sobre o assunto era evidente.
Rapidamente pegara o celular no bolso de sua calça jeans e iniciou uma pesquisa sobre a delegacia da mulher. A moça estava surpresa por nunca ter escutado falar de tal lugar antes. Aquilo foi o bastante para se sentir motivada a denunciar o que lhe ocorreu. Mas havia algo em seu interior dizendo que ela não devia tocar mais naquele assunto, que com o tempo tudo seria apaziguado e sua vida voltaria ao normal sem que ninguém soubesse sobre o que aconteceu.
Saber que seu filho também fora estuprado fez com que a mulher começasse a lutar contra a parte de si que tentava lhe impedir de ir até a delegacia. Begônia imaginava que com a sua denúncia poderia ajudar outras pessoas de serem futuras vítimas, o que livraria até mesmo jovens – como Caíque – de tamanha crueldade, pois assim os indivíduos seriam presos e estariam impossibilitados de continuar a realizar tal barbaridade. E quando os ponteiros do relógio marcaram exatamente seis e meia da tarde, ela chegara em seu destino.
– É agora ou nunca, Begônia. Você precisa fazer isso. – Ela se encoraja entre lágrimas.
A cantora entrou na delegacia da mulher com bastante receio, mas em poucos minutos já estava sentada de frente com uma autoridade feminina.
– E então, no que posso ajudá-la? – A policial pergunta com um tom de voz sério.
– Eu… – Begônia pensara em inventar uma mentira qualquer e sair dali correndo. – Eu… fui violentada por dois homens. Eles me estupraram a mando do meu marido.
Naquele momento, as lágrimas que saltavam dos olhos da moça carregavam com elas todo sofrimento, medo, angústia, dor e vergonha que estavam enraizados em seu interior. Demorou, mas enfim se sentia aliviada depois de tanta tormenta. Parecia que uma grande montanha havia sido tirada de suas costas.
A confissão que ela tanto silenciou durante todos aqueles dias proporcionou a si um momento de leveza. Porém, aquele não era o fim, pois o que lhe aconteceu jamais irá morrer em sua mente: será inevitável não reviver na memória a crueldade que vivenciou na pele. E por mais que queira, as lembranças, as sequelas psicológicas que lhe restaram, não permitirão que tudo isso tenha um final.
Autor: Marcelo Júnior Maia e Silva
Data de publicação: 16 de março
Como falar do seu atrevimento em abordar o tema estupro sem nunca ter passado por isso?
Que atrevimento cheio de sucesso foi este?
“Adorei de verdade a narrativa, a forma como Begônia lida com o estupro sofrido: a culpa que a vítima sente, a vergonha em compartilhar até com as pessoas mais próximas e aquela reviravolta no final.”
O texto em aspas foi o que compartilhei com você assim que li seu texto à primeira vez. E você tratou de um assunto sério com sensibilidade tremenda. São marcas que ficam com quem sofre deste abuso. E há todo esse sentimento de culpa, transformado em vergonha e a dificuldade em compartilhar a dor mesmo que seja com os relacionamentos mais próximos.
Não precisa se preocupar em perfeições quando você traz um texto tão excelente na essência e que compartilha a dor do personagem com o leitor. É possível sentir isso quando lemos a história de Begônia. Parabéns e muito mais inspiração pra você. Abraço.
Essa história foi uma das mais fortes. Parabéns pela sua escrita, Rodrigo, consegui sentir a dor, o horror que se passou na mente de Begônia após o nojento ato de estupro!! O tom realista seguiu até o final, gostei que foi leal a sua proposta, e a reviravolta que colocou (o que Rubens fez) me deixou boquiaberto, que ser humano nojento, e pensar que existem vários assim, a solta, e até protegidos por seus semelhantes.
Mais uma vez, parabéns pelo episódio, um dos melhores até agora.
Ah dias nao vejo um comentário mas Ok … Amei a história de Begonia, muito bem escrita detalhada. Muito bom mesmo. Me perdi um pouco mais isso e de menos. Rodrigo PARABÉNS.