Eventyr – Capítulo 13
Chegamos ao trem e embarcamos. Havíamos deixado as nossas malas com o corcunda de olho de vidro e acabamos esquecendo-as na fuga. Agora estávamos apenas com as roupas do corpo e alguns crímatos de Neandro e Alexis.
– Não acharam estranho pessoas viajando sem bagagem? – perguntei.
– Não! – Neandro respondeu calmo – Já estão acostumados com nômades e aventureiros, que sempre acabam perdendo as malas.
– Tipo… Nós? – brinquei.
– Sim. Podemos dizer que sim. – Neandro respondeu. – Só lamento estar com tão pouco crímatos.
– Mas quem disse que temos muito pouco? – Nicardo perguntou
Olhamos para ele intrigado. Ele desamarrou uma pequena sacola do cinto e depois tirou algumas coisas do bolso. Eram pedras preciosas. Rubis, safiras e diamantes.
– Mas… – Neandro estava paralisado – Onde você… Não me diga que… Nicardo!
– O que? – ele guardou as pedras – Ninguém vai saber. Provavelmente depois que essas pedras foram guardadas no salão, ninguém mais soube de sua existência, caso contrario mais gente teria se aventurado a entrar na floresta antes mesmo dos reis de Cecia começarem a oferecer crímatos para quem voltasse vivo.
– Mas ainda assim é um roubo! – Neandro repreendeu.
– Que ninguém dará falta! – ele se defendeu.
– Neandro… Ele tem razão. – Alexis, para minha surpresa, ficou do lado de Nicardo – O que tem ali é o bastante para recuperar tudo o que perdemos e ainda ficarmos com uma grande parte do que sobraria. Acho que devemos esquecer certos princípios agora. Além do mais, aquele tesouro não tinha dono.
Apesar de ter achado os argumentos de Alexis e Nicardo um pouco vagos demais, Neandro acabou aceitando ficar com as pedras preciosas. Confesso que fiquei feliz por termos ficado com as pedras, acho que qualquer um no meu lugar ficaria.
Agora que estávamos relativamente ricos, todos nós ficamos um pouco mais tranquilos e o resto da viagem foi mais calma. Mas não por muito tempo.
– Eu vou almoçar! – Alexis se levantou. – Parece que não como faz várias décadas.
– Eu vou também! – poderia fazer minhas as palavras dele.
– Podem ir, eu irei depois. O vagão restaurante deve estar cheio, prefiro comer com mais calma. – Neandro parecia estar mais cansado do que faminto. Deitou na poltrona do trem e dormiu tão rapidamente quanto uma criança.
– Não estou com fome. – Nicardo respondeu, também deitado.
Fomos eu e Alexis para o vagão restaurante. Não sei dizer o que serviram, mas estava delicioso. Parecia com frango assado, fora que a minha fome era tão grande que quase não pude sentir o gosto das coisas.
Senti-me um pouco constrangida. O salão restaurante havia varias pessoas muito bem vestidas e de aparência elegante. Até mesmo os cecianos com suas orelhas e rabinhos de gato pareciam mais bem vestidos do que eu e Alexis, isso me deixou um pouco sem graça.
– Tem certeza que eles não estão achando estranho? – perguntei olhando para as fitas amaradas no meu ombro e na minha perna.
– Estranho o que? – Alexis rebateu e depois deu outra garfada na comida.
– Nós dois! – cochichei – Digo… Somos os únicos que estamos com roupas sujas e rasgadas.
– Para uma plebeia, você até que se importa demais com a aparência. – ele colocou a comida na boca.
– Não é isso. Quer dizer… Sim, é isso, mas não é bem isso. – Não sabia como explicar que não ligava para aparência, mas estava com vergonha de como estava vestida naquele momento.
– Silêncio! – ele colocou o dedo em minha boca – Você já está começando a me dar dor de cabeça. Pare de ser tão confusa. Tente expressar melhor o que quer dizer ou vou começar a te ignorar.
– Achei que você já fazia isso. – sorri maliciosamente.
– Engraçadinha! – ele fez uma careta. – Eu cansei um pouco.
– Cansou de que? – fiquei curiosa.
– Cansei de ser chato com você! – ele olhou em outra direção.
– Você não era chato. – sorri – Você era insuportável!
– Mas ainda não acredito que você destruiu as duas faces! – ele fez outra careta.
– É uma pena. – cheguei um pouco mais perto dele – Você querendo ou não foi o que aconteceu.
– Conversa! – ele disse com desdém.
– Conversa? – alterei um pouco o tom de minha voz, depois baixei novamente – Você está com inveja por que fui eu quem destruiu as faces e não você.
– Eu teria destruído se não fosse tentar te salvar! Já pensou se eu tivesse morrido? – ele tocou em um ponto delicado.
– Tudo bem, vamos mudar de assunto? – pedi um pouco nervosa.
– Você quase me extinguiu da face de Monterra. – ele insistiu.
– Quer parar, por favor? – estava ficando nervosa. – Você não sabe o desespero que eu senti quando achei que tinha te perdido.
– Me perdido? – ele ficou vermelho – O que quer dizer com isso?
– Esquece! – acabei falando demais – Só não fale mais sobre isso, combinado?
Ele levantou uma das sobrancelhas, fez uma careta e depois assentiu fazendo um biquinho um pouco torto para esquerda que acabei achando a coisa mais fofa do mundo.
– Não sabia que você havia ficado tão mal. – ele agora sorriu sem jeito. Um rápido silêncio tomou conta de nossa mesa e só ouvimos os cochichos das mesas ao lado.
Fiquei olhando para Alexis. De repente pequenos detalhes dele pareciam mais óbvios para mim, como um corte perto do polegar esquerdo, ou as unhas dele que estavam sempre ruídas. Os olhos pareciam mais expressivos e ele parecia ainda mais bonito agora. Seu cabelo estava preso, apenas com uma pequena mecha que havia caído. Ele me olhou um pouco desconfiado.
– O que foi?
– Nada. – respondi.
– Você estava olhando de um jeito. – ele ficou vermelho.
– Estava apenas decorando os seus detalhes. – disse calma. – Você é tão bonito.
– Eu hein… Que conversinha mais estranha é essa Beatriz? – ele afastou a cadeira da minha.
– Não é conversa estranha. – sorri – Eu apenas lhe fiz um elogio.
– Elogio? – ele me fitou de lado – Sei… Desde quando você me faz elogios?
– Desde agora! Finalmente eu estou enxergando em você o que eu não via antes.
– E o que você não via antes? – ele perguntou afastando um pouco mais, disfarçadamente, a cadeira dele da minha.
– Que você é bonito. Você é simpático. Você não é um principezinho metido que pensei. – cheguei mais perto dele.
– Beatriz, você está me assustando. – ele tentou afastar a cadeira dele, mas segurei-o.
Ele ficou paralisado. Eu não estava me reconhecendo, mas desde que quase o perdi, nasceu em mim uma necessidade louca de estar perto dele. Tentei puxar-lo para perto de mim, mas minha má sorte resolveu fazer uma visita de última hora.
Puxei, junto com Alexis, a toalha que estava na mesa, com todas as louças e talheres. Tudo ao chão, quebrado em vários pedacinhos. Fiquei vermelha na mesma hora, Alexis também, mas acredito que o vermelho dele queria dizer outra coisa: FÚRIA.
Voltamos para a nossa cabine. Nicardo e Neandro ainda estavam dormindo, um do lado do outro. Achei cômico e quis acordar, mas preferi deixar-los dormindo.
De repente uma sensação estranha queimou meu peito e depois minha cabeça. Era quase a mesma sensação que tive quando senti que o cristal da floresta estava no centro, porém, agora era mais forte e dolorido.
– Alexis! – eu gritei enquanto caia no chão.
– O que foi? – ele me segurou desesperado.
– Eu não sei. Eu estou sentindo algo muito estranho. – coloquei a mão no peito – Uma dor muito forte. Parece estar me avisando que algo vai acontecer.
– Não fale uma coisa dessas! – ele continuava desesperado – Se você realmente “herdou” o sexto sentido da mamãe nós estamos perdidos!
– O que está acontecendo? – Neandro acordou. Nicardo acordou em seguida.
– A Beatriz está pressentindo algo de ruim. – Alexis ainda estava me segurando.
– Mas que droga! – Neandro pulou da poltrona. – Será necessário avisar ao resto das pessoas?
De repente, uma imagem veio a minha cabeça.
– FOGO! – alguém gritou.
– Acho que já avisaram! – Alexis tentou não parecer debochado.
– Vamos sair deste trem o mais rápido possível. – Nicardo abriu a porta.
O corredor estava uma loucura. Varias pessoas correndo desesperadas, com malas na mão. Seguimos em direção a um dos homens que trabalhava no trem.
– Em que direção o fogo está vindo? – Neandro perguntou.
– Naquela! – ele apontou para a direita.
– Obrigado!
Neandro correu para o lado direito do corredor. Seguimos pela mesma direção. Ouvi o homem dizer que essa era a direção errada, mas Neandro parecia ignorar a sugestão.
– O que exatamente vamos fazer? – perguntei.
– Tentar deter o fogo!
– Você está louco? – me assustei.
– Nós podemos fazer alguma coisa! – Neandro continuou correndo.
Antes de chegarmos a qualquer lugar, encontramos o causador de toda aquela confusão. Naquele momento eu estava realmente assustada.
Era um ser enorme. Sua boca e olhos eram de uma escuridão mórbida, mas o restante de seu corpo brilhava em chamas alaranjadas. Ele parecia estar apenas nos esperando.
– Mallory! – o ser de fogo gritou. – Quero Mallory!
– Mallory? – estranhei – Espere, Mallory sou eu!
Alexis puxou uma espada de dentro das próprias mãos. A principio me assustei, mas logo lembrei que deveria ser magia. Nicardo puxou a sua espada e Neandro novamente o sua espada-raio.
O monstro atacou jogando uma rajada de fogo na direção de Neandro. Ele virou-se para o lado, imprensando Alexis e Nicardo na parede. O corredor era muito pequeno para uma luta e o monstro sabia disso e estava usando esse fato ao seu favor.
De repente outra rajada de fogo, desta vez em minha direção. Não sei como, mas antes de chegar a mim uma rajada de água saltou da minha mão e duas bolas de água ficaram paradas em cada uma delas.
O monstro se surpreendeu e atirou mais uma rajada de fogo, que rebati novamente com duas de água. Uma apagou a rajada ele havia atirado e a outra acertou no seu ombro, que se apagou.
Sem chamas o ombro dele era preto, como carvão. Ele olhou para o ombro e pareceu indignado. Depois soltou uma gargalhada que ecoou dentro dele mesmo, como se o monstro fosse oco por dentro, e fez o ombro voltar a queimar em chamas.
– Nicardo, corra e mande parar o trem. – Neandro fitava o monstro – Faça o possível para que todas as pessoas saiam do trem e fiquem bem longe daqui.
Nicardo assentiu e correu para avisar as pessoas. O monstro tentou impedir, mas não fez muito esforço. Estava claro que o alvo dele não era Nicardo, mas a Mallory. Ou seja, EU.
O monstro soltou mais duas rajadas de fogo em minha direção. Desviei me aproximando dele. Juntei minhas duas mãos e fiz uma bola d’água ainda maior do que a que estava fazendo. Não sei como descobri que poderia fazer isso, apenas sabia que podia.
Joguei a grande bola de água no monstro que lhe acertou a cabeça. Seu rosto não tinha forma de nada. Continuei atirando bolas de água pelo corpo dele. Rapidamente ele conseguia botar fogo novamente em certas partes do corpo, mas já não estava mais conseguindo manter o corpo inteiro em chamas.
Continuei atirando bolas de água e ele havia se concentrado em manter-se queimando e parou de jogar rajadas de fogo. Neandro e Alexis ajudava cortando partes das bolas com as espadas e multiplicando-as. Não sei como faziam isso, mas estava funcionando, não demorou muito o monstro estava completamente apagado.
Assim que reparou que não conseguia mais repor o fogo que era apagado, o monstro soltou um grito de ódio que, assim como a gargalhada, ecoou dentro dele de forma monstruosa.
– Beatriz, vá e veja se todas as pessoas já saíram do trem! – Neandro vigiava o monstro. – Não podemos destruir-lo se ainda houver pessoas aqui. Monstros de fogo costumam explodir depois que morrem.
– Certo! – respondi.
Fui voando – literalmente – atrás de pessoas. Tentava olhar em todos os lugares. Passei por todos os quartos e tentei fazer tudo o mais rápido que me foi possível. Estava tudo vazio. Comecei a procurar por outros vagões, mas todos estavam vazios – o que era um ótimo sinal.
Cheguei ao ultimo vagão e encontrei todos ainda saindo do trem. Nicardo estava ajudando a tirar as pessoas do vagão.
– Nicardo! – gritei – Temos que agir rápido, Neandro vai explodir o trem a qualquer momento!
Assim que disse isso a gritaria foi geral. Logo me arrependi. As pessoas pareciam ainda mais agitadas e loucas para saírem o mais rápido possível. Começaram a quebrar tudo e a pular pelas janelas, mas por fim acabou ajudando, logo não tinha mais ninguém no trem.
– Eu vou tentar levar-los para longe do trem, você vá avisar ao Neandro que ele já pode explodir tudo! – Nicardo saiu do trem.
Voltei novamente o mais rápido que me foi possível. Antes de chegar ao ponto onde havia deixado os três, encontrei Alexis e Neandro lutando com o monstro – sem armas.
Alexis estava socando o monstro, enquanto Neandro tentava impedir-lo de continuar andando dando chutes em suas pernas.
– Neandro! – gritei – Já estão todos fora do trem!
Assim que disse isso, Neandro puxou novamente sua espada – que agora era feita de gelo – e partiu em direção ao monstro. O monstro defendeu o primeiro ataque, destruindo a espada de Neandro, que se refez.
Alexis tentou chamar atenção do Monstro golpeando-o na cabeça, mas o monstro continuava atento a espada de Neandro, que tentou golpear-lo outra vez, sem sucesso.
O monstro socou uma das paredes e puxou uma das poltronas. Ele golpeou Alexis com a poltrona e depois tentou usar-la como escudo contra os ataques de Neandro.
Alexis agora também havia começado a atacar com sua espada. Ele parecia outra pessoa lutando. Era muito serio e tinha feições de determinação. Era diferente do Alexis que conhecia. Resolvi fazer algo e chamei a atenção do monstro.
– Ei, coisa feia! – gritei. – Olha aqui, ex-esquentadinho!
– Falar comigo? – o monstro tinha uma voz muito rouca.
– Com você mesmo o demente! – continuei provocando.
– Demente? – o monstro soltou a poltrona – O que ser demente?
– Ah, você é tão demente que nem sabe o significado da palavra demente. Burrão.
Neandro percebeu o que eu estava planejando e não perdeu tempo. Sem demora refez a espada dele e aproveitou enquanto o monstro prestava atenção em mim.
– Beatriz, você vai fazer um buraco na parede? – Neandro disse com uma voz estranha. – Acho que o monstro não é capaz de fazer um buraco nesta parede aqui! – Neandro apontou para a parede que tinha uma janela. A vista do lado de fora era linda, um belo campo verde. Logo entendi qual era a intenção.
– Eu poder sim! – o monstro se movimentou até perto da parede e deu um soco abrindo um enorme buraco, grande o suficiente para sairmos os três.
– Quando eu disser já! – Neandro gritou. – Já!
Neandro sentou a espada no peito dele. Pulamos todos para fora e BOOM! O trem foi explodindo de vagão em vagão e depois todo o fogo sumiu, do nada.
– Monstros de fogo quando são destruídos explodem, mas o fogo que sai desta explosão e proibido de se espalhar. E uma prevenção mágica para que coisas piores não aconteçam. – Neandro respondeu minha pergunta.
– Mas temos agora um problema! – Alexis fitou Neandro preocupado – Esse monstro estava procurando a Mallory, ou seja, a Beatriz. Monstros de fogo não saem em missões por conta própria.
– Você está querendo dizer que…
– Leone já deve ter descoberto sobre Beatriz! – Alexis completou o pensamento de Neandro.
– Teremos que ficar sempre atentos. – Neandro pareceu estar decepcionado.
Nicardo vinha de longe. Parecia um tanto satisfeito. Provavelmente havia conseguido levar todos para um lugar seguro. Assim que chegou perto de nós seu rosto mudou e ficou preocupado. Acho que não precisou nem ser dito, ele já deve ter visto o que havíamos descoberto.
– Mas nós ainda temos os pedidos para o cristal! – Neandro tentou nos tranquilizar.
– Mas será que o poder do cristal é tão forte a ponto de deter Leone? –Alexis não parecia muito animado.
Seguimos a pé até Padja. Não havia muito que andar, estávamos a menos de 1 quilometro do tal reino e já estava chegando a noite.
Depois de toda aquelas aventuras, eu estava mais do que exausta. Estava completamente esgotada. Não podia ver a hora de cair em uma cama e dormir até o dia seguinte.