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Depois de tudo

Depois de tudo – Capítulo 3: Se eu pudesse voar…

 

Se eu pudesse voar…

 

Deixo o celular escorregar da minha mão enquanto corro os olhos pelos cantos do teto do meu quarto até fixá-los em um ponto qualquer.

Acabo de diagnosticar que a Gabriela sofre de transtorno dissociativo de identidade, pelo menos é assim que dona Lucia chamaria a crise de dupla personalidade que minha amiga acabou de demonstrar.

Há praticamente uma hora Gabriela me ligou, indignada, diga-se de passagem, com o fato do David querer, nos quarenta e cinco minutos do segundo tempo, vir conversar comigo para esclarecer o mal entendido do fim do nosso namoro… E ela mesma fez questão de me contar, antes que eu soubesse por terceiros, o fato do quadrúpede estar namorando alguém do SEXO MASCULINO depois daquela desculpa esfarrapada que deu pra se ver livre de mim…

Pois bem, depois dessa campanha Todos contra David o mínimo que eu poderia esperar seriam aplausos pela minha postagem no Whisper… Mas o que eu recebo?

Você agiu por impulso. Vingar-se de alguém nada mais é do que se igualar a essa outra pessoa. Sinto lhe dizer, meu amigo, mas você abriu um precedente para que o David possa assumir um papel de vítima.

Oi?

Tive que ser irônico e perguntar se quem estava realmente do outro lado da linha era minha amiga ou a minha mãe.

Pelo Criador. A Gabriela sabe como eu estou vivendo essas últimas semanas; sabe que conto com ela para ser minha válvula de escape no meio desse Deus nos acuda e assim, sem mais nem menos, me dá uma reprimenda por causa de uma desforrazita?

Tamborilo os meus dedos sobre o colchão. Estou tão nervoso que mal consigo respirar direito.

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Desde que o mundo é mundo vingar-se tem sido uma prática usual, perturbadora; o desejo da desforra tem sido representado pelo homem em obras que vão desde a mitologia grega até a novela das nove. Medéia que o diga. Matou os próprios filhos para se vingar do marido traidor…

Ok. Radical demais e apelativo, além de completamente insano, mas eu entendo a Medéia, de verdade. Não que eu chegaria a esse extremo, mas o principio de não deixar que o rival nos considere fraco e vencido é válido. É o que nos impulsiona a reagir de uma maneira tão derradeira, e no meu caso o David foi um covarde filho da puta…

Por que o infeliz não me disse que tava a fim de partir pra outra? Precisava inventar aquela historinha ridícula de que eu o fiz enxergar que sentia atração pelo sexo oposto?

Cara, na boa, será que ele não pensou em nenhum momento que esse pretexto iria me afetar de maneira negativa, demonstrando que eu fui um péssimo namorado, um completo incompetente elevado à milésima potência?

Teria sido melhor se ele tivesse dito que não iria rolar mais porque nossos signos não combinavam…

E agora o cretino me aparece com um cara mais velho…

Pior do que ser trocado por um novinho é ser substituído por um tiozão…

Pensando bem, gostaria de ver o David antes de ir embora para o mundo de Nárnia e perguntar, face to face, se ele acordou, assim, do nada, há mais de três semanas, com a ideia de que queria terminar o nosso namoro.

Duvido.

O infeliz já devia estar dando um perdido em mim com esse papa anjo trintão e na primeira oportunidade me dispensou sem sequer considerar que o meu mundo estava começando a desmoronar…

Uma postagem… Apenas uma postagem…

Viro-me de lado, num movimento brusco, e apoiando a cabeça sobre o meu braço esquerdo, fico olhando para janela; a luz do sol passando por ela…

Não vou pensar nisso agora. A Gabriela só está nervosa por causa dos trabalhos da escola e por isso me deu esse sermão… Não está raciocinando direito, digo a mim mesmo firmemente, erguendo o queixo.

Fecho os olhos e busco ouvir minha respiração.

Estou exausto…

***

Estou parado em frente a uma estrada sinuosa, vermelha como o sangue, ladeada por cedros escuros de cascalhos, que se encontram em arco, dificultando em grande escapitulo-03-acala a passagem dos raios de sol por suas copas, transformando a longa alameda que se desdobra ao longo do caminho em um túnel sombrio.

Onde estou? Que lugar é esse?

Não consigo me mover, falar ou qualquer outra
ação.

De repente sinto minha mão esquerda sendo puxada. Um corpo etéreo, um fluido que se deforma continuamente em cores e imagens como o de um caleidoscópio surge à minha frente tentando me fazer andar.

Recuso-me a seguir e reclamo, perguntando o que está havendo, onde estou… Não recebo qualquer resposta e então olho para trás e por incrível que possa parecer constato que caminhei um bom pedaço de chão.

Mas como? Estou imóvel…

Sinto filetes de raios de sol tocando minha pele, cálidos, plácidos, complacentes, ajudando a iluminar a semi escuridão que me rodeia.

Volto-me na direção da tal imagem constituída de pura energia, mas não a encontro. Ela (ou ele) desapareceu completamente sem deixar qualquer vestígio.

Uma chuva torrencial desaba sobre mim sem aviso prévio.

Volto a ter domínio sobre o meu sistema motor, minha coordenação e então começo a correr sobre a estrada vermelha sem diminuir um instante sequer os meus passos, entretanto, já ofegante, percebo que não consegui sair do lugar.

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Inesperadamente, como um sopro de vida, uma silhueta de contornos femininos surge no meu caminho. Semicerro os olhos e estico um pouco o pescoço para frente na tentativa de identificá-la; como se pudesse ler os meus pensamentos, a imagem embaciada adianta-se alguns passos em minha direção, estaciona e em seguida, como se as lentes de uma câmera tivessem encontrado o foco, uma jovem de cabelos longos, pretos, pele branca, muito branca, é revelada.

Não a reconheço de pronto, mas seu rosto aos poucos vai sendo iluminado pela luz escassa do sol. Só então percebo que o dilúvio que desmoronava sobre mim, estacou.

A jovem à minha frente é bastante bonita, de olhos bondosos, inteligentes…

Com um sorriso encantador atravessando todo o seu rosto e uma empatia singular emanando do seu semblante, ela abre os braços convidando-me para ir ao seu encontro…

É Bia. É Bia, minha prima. Está idêntica à foto de perfil do seu facebook.

Não demonstro qualquer emoção, apenas me limito a perguntar o que está havendo, porque não consigo sair do mesmo lugar…

Tal como o ser etéreo, ela também não me devolve qualquer resposta, qualquer explicação, apenas permanece parada, inerte, entretanto toda sua expressão acolhedora é substituída numa fração de segundos por um cenho cerrado, carrancudo, ao mesmo tempo em que sinto o chão começar a tremer sob os meus pés.

Uma aflição toma conta de mim.

Um calafrio percorre todo o meu corpo.

Apenas eu estou sendo atingido por esse cataclismo.

Tento e novamente não consigo me mover.

Volto a perguntar o que está acontecendo, mas dessa vez aos berros, incentivado por um frenesi genuíno incrustado em cada fibra do meu ser.

Bia permanece impassível, indolente acima da terra vermelha como o sangue.

O solo para de tremer, porém não tenho tempo de me sentir aliviado, pois os meus pés imediatamente começam a afundar.

Olho para baixo e constato, assumindo uma expressão de tamanho terror, que estou sendo devorado lentamente por um banco de areia.

Estremeço e então começo a me debater, me contorcendo de puro medo, gritando.

O suor brota de meus poros aos borbotões.

Levanto o rosto no intuito de pedir ajuda a Bia, mas em meio a essa realidade bizarra encontro em seu lugar a imagem de minha mãe. Ela também não se move, não esboça qualquer sinal de que pretende me ajudar…

Não demora muito para que metade do meu corpo já esteja submerso.

Praticamente não tenho mais voz e todos os meus músculos doem.

Olho para os lados na tentativa derradeira de encontrar algo para me apoiacapitulo-03-cr… Deparo-me com uma serpente, imensa, rodeando-me. Ela parece sorrir, mas isso é impossível…

A terra continua a me devorar.

Uso o que resta das minhas cordas vocais para um último pedido de socorro e qual não é minha surpresa ao ver a tal serpente se metamorfosear em David, e ele, já em sua forma humana, me dispara uma piscadela rápida e um leve traço de um sorriso enquanto me estende a mão…

***

Abro os meus olhos num sobressalto e me agito frenético, ainda acreditando estar sob o domínio da areia movediça.

Uma onda de confusão me assola enquanto olho em todas as direções buscando reconhecer o lugar onde estou… Apenas escuridão à minha volta.

Apalpo a superfície sobre a qual estou deitado e aos poucos vou sentindo a textura dos lençóis, do edredom, do colchão…

Estou acordado? Estou dormindo?

Não.

Meneio a cabeça.

Estou na minha cama, no meu quarto e não mais dentro daquela alameda ladeada por cedros escuros.

Será? Foi tudo tão real…

Respiro fundo e tento controlar meus batimentos cardíacos e minha respiração enquanto cruzo as mãos sobre o peito, assistindo as dimensões do meu quarto tomando forma sob a luz do sol que atravessa a janela.

Pronto. Era o que faltava: meu inferno particular não se contentar apenas com a realidade… Precisa invadir os meus sonhos também, constato um tanto quanto rabugento ao mesmo tempo em que me viro de lado (meus joelhos encostam-se a alguma coisa) e busco com o olhar o relógio de mesa em formato de TV antiga, azul, retrô, que fica no canto esquerdo da escrivaninha, ao lado do organizador de metal, simples, mas bonito, que ganhei de presente do meu pai no meu último aniversário.

Quatro e meia da tarde… Não acredito que cochilei esse todo esse tempo. 

Baixo os olhos na direção dos meus joelhos e me deparo com o meu note.

Quase três horas desde que eu postei a minha doce vingança contra o David, não consigo deixar de ponderar. É mais forte do que eu…

Merda.

Não posso acreditar que essa postagem no Whisper vai me infernizar a vida desse jeito…

Retorno à posição anterior, de costas sobre a cama e miro o teto com determinação implacável.

Não foi a toa que o David assumiu a forma de uma serpente dentro do bololô que foi esse sonho completamente alucinado que invadiu meu subconsciente numa mistura do Inferno de Dante com Salvador Dali e com pitadas de Jogos Vorazes…

Sinto minha coluna vertebral e meus músculos doerem.

Fui humilhado, desprezado, maltratado e enganado. Argumentações suficientes para submeter o David às mais diversas e inomináveis situações constrangedoras… 

Ele merece. Ele merece.

Uma postagem… Apenas uma postagem…

Inspiro e expiro.

Merda!

Levanto da cama num salto, apanho meu note e me jogo sobre a cadeira em frente à escrivaninha, depositando o computador sobre ela e ligando-o imediatamente para acessar a página do Whisper.

 Talvez a minha postagem não tenha sido lida…

 

computador Menos mal.

Não penso duas vezes (mentira, penso sim) e deleto minha missiva covarde, insultuosa, mesmo acreditando já ser um pouco tarde para isso e em seguida viro-me de supetão para a cama, e, com o olhar transbordando ansiedade, busco o meu celular.

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Demoro um pouco para encontrá-lo em meio aos lençóis desalinhados, ao meu caos emocional; como bem retratou Delacroix em uma de suas pinturas, onde nos mostra sua cama harmoniosamente desarrumada: veja como esses lençóis relembram a energia atormentada da pessoa que estava nele.

Consigo visualizar, por fim, o telefone descansando entre o travesseiro e a cabeceira da cama e então deixo escapar um longo e forte suspiro, não de alívio mas de apreensão: quantas ligações perdidas ou mensagens inflamadas deixadas pelo David irei encontrar?… Nessas horas constato que não é de todo ruim essa minha mania de manter o celular no vibracall.

Apoio-me à escrivaninha e me levanto, com certa dificuldade, pois sinto meus membros pesarem toneladas.

Uma voz grita em algum lugar na minha cabeça.

Endireito o corpo e caminho pé ante pé na direção do telefone, parando a poucos centímetros de distância aonde jaz abandonado.

Fecho os olhos, estico o braço direito até alcançá-lo e o trago para próximo do rosto e conto até dez antes de abrir meus olhos novamente…

Graças ao Criador não há nenhuma ligação perdida, nenhum contato do David ou quem quer que seja, o que me enche de esperanças; provavelmente os mil duzentas e quarenta e cinco acessos à minha mensagem não foram vistos por pessoas conhecidas, ou conhecidas do David…

Merda!

Definitivamente essa minha vingancinha não me tirou da bad, pelo contrário, só me deixou mais agitado, mais estranho, mais infeliz.

Quem sabe a Gabriela tenha razão…

Meneio a cabeça, inconformado.

Preciso de ar!

Corro os olhos até a janela que fica no extremo oposto à entrada do meu quarto e então me dirijo para ela, passando por cima de caixas e sacos pretos espalhados pelo chão, e estaco à sua frente, mantendo a sobriedade de alguns centímetros de distância enquanto levanto o braço direito até alcançar a parte de cima de sua estrutura de madeira para começar a empurrá-la, para dentro, devagar, respeitando o seu mecanismo, até abri-la, parcialmente, fazendo-a tombar sobre sua parte inferior.

De imediato meus ouvidos são invadidos por uma mistura de sons, me dando a impressão de que estou na calçada, beirando a rua, e não a quarenta e cinco metros acima do solo.

Recuo. Dois passos.

O suficiente para me sentir ainda mais seguro. 

Mesmo morando no décimo andar de um prédio desde que nasci não consigo me acostumar com a altura. Sempre que ouso me aproximar demais da beirada de uma sacada, de uma janela, sinto um mal-estar e a acrofobia me faz inevitavelmente ser tomado por uma sensação absurda (e insana) de como seria despencar, como seria a queda livre do meu corpo até atingir o chão…

Recuo. Mais um passo.

Com as costas eretas, coloco os braços para trás, sobrepondo as mãos às minhas nádegas e projeto meu tórax e meu pescoço para frente, mas num movimento praticamente imperceptível, apenas o necessário para que eu possa ver, de soslaio, o vai e vem do mundo lá embaixo que não para de se locomover.

Agora faltam menos de 48 horas para deixar toda minha vida para trás. Faltam menos de 48 horas para tomar um avião e voar rumo a um lugar completamente desconhecido, para encontrar pessoas que, apesar dos laços sanguíneos, são tão estranhas como qualquer individuo com que eu possa esbarrar enquanto ando pela rua…

Sinto meu coração afundar.

É engraçado o mundo continuar a girar do mesmo modo apesar da nossa dor…

Espero, mesmo diante da decisão incontestável de dona Lúcia, que algo possa acontecer para reter, impedir minha viagem para aquele fim de mundo… Eu preciso acreditar nisso. Desesperadamente. É o que me resta.

Balanço a cabeça e retorno à posição ereta, recolhendo as mãos das costas para em seguida iniciar um movimento de rotação, vagaroso o bastante para que eu possa passear, com os olhos estreitados, sobre cada canto desse meu refúgio.

Minha cama, o criado mudo, a televisão de tela plana fixada na parede, a estante de madeira onde estavam meus Blu-rays e videogames antes de serem encaixotados, o armário de roupas, os posters de alguns filmes famosos dos anos 80 milimetricamente dispostos sobre a parede de cimento queimado…

Cada um desses meus objetos tem uma história, cada um deles sempre foi tratado com o devido cuidado, e agora, daqui uns dias, serão jogados dentro de um caminhão para cruzar quilômetros e quilômetros de estrada até chegar, sabe-se Deus como, lá em Nárnia…

Um calafrio percorre todo o meu corpo. Sinto minhas pernas fraquejarem e então caminho de volta, na direção da escrivaninha, passando por cima novamente das caixas e dos sacos pretos, e me jogo sobre a cadeira, esparramado.

Não vou ficar digladiando com o meu cérebro.

Apoio os cotovelos sobre a mesa, fecho os olhos e começo a massagear as têmporas com o polegar e o indicador da mão esquerda, fazendo pequenos círculos sobre a pele por alguns minutos, buscando esvaziar por completo a minha mente, neutralizá-la.

Não consigo.

Abro os olhos e começo a tamborilar os dedos sobre a superfície de madeira.

Nessas últimas semanas minha vida está se transformando cada vez mais e mais num verdadeiro inferno… E o que eu estou fazendo para que isso mude? Nada! Pareço uma barata tonta mergulhada num mar de irritação e impotência, apostando numa passividade milagrosa.

Chega de ficar chafurdando nesse oceano de sentimentalismo barato.

Vou sair.

É isso.

Vou ver o sol, ver gente. Aproveitar ao máximo minhas últimas horas na civilização…

Salto da cadeira e tropeçando nos meus próprios pés chego até a porta, abrindo-a de supetão, me projetando para o corredor sem olhar para trás, como se minha vida inteira dependesse dessa sequência de gestos alucinados.

Já do lado de fora, um tanto quanto resfolegante, após recuperar o equilíbrio do meu próprio corpo, fico parado de costas para a entrada do quarto e demoro alguns segundos antes de levar minha mão direita para trás, até alcançar a maçaneta da porta, para então fechá-la, sem titubear.

Quem sabe um dia eu vou achar tudo isso engraçado…

Reflito, dando de ombros e arqueando uma das sobrancelhas enquanto passeio os olhos pelos nichos, espelhos, quadros simples e efeitos luminosos que decoram o estreito (e extravagante) corredor do nosso apartamento; aliás, não me surpreende que seja o único cômodo ainda intacto diante do caos de caixas, caixotes, móveis, malas e tantos outros cacarecos.

Não posso sequer imaginar a fúria de titãs que os pobres coitados responsáveis pela nossa mudança encontrarão pela frente quando dona Lúcia os vir invadindo esse espaço; ela trata esse corredor e cada objeto que tem nele como se fosse o museu do Cairo com sua coleção de antiguidades faraônicas.

Tenho certeza que esses profissionais vão preferir mil vezes ter enfrentado as lendárias maldições que envolvem a tumba de Tutancâmon. 

Endireito os ombros e caminho, em linha reta, na direção da sala, como um soldado sob as ordens incontestáveis de seu superior, e encontro dona Lúcia sentada sobre um lençol (acho que também bege, como o seu jaleco) aberto de uma ponta a outra do sofá, cobrindo-o totalmente.

Ela está tão envolvida colocando objetos em caixas e depois etiquetando cada uma delas para fazê-las se juntar às que já estão espalhadas no seu entorno, que sequer reparou a minha presença.

Desde que anunciou a decisão unilateral de MIGRARMOS para sua cidade natal, percebi o quão estranhamente motivada minha mãe vem agindo ao organizar tudo o que diz respeito a essa mudança.

Não consegui até agora identificar qualquer sinal de incômodo ao vê-la dando uma geral nos armários, separando roupas e objetos pessoais e até mesmo alguns aparelhos elétricos, pequenos ou de médio porte, colocando meticulosamente tudo nas caixas enviadas com antecedência pela empresa de transporte, que a muito custo resolveu atender, em caráter de exceção, a esse seu pedido.

Como dona Lúcia está conseguindo processar tão bem essa situação?

Eu até posso entender que lá, em Tão, tão distante, estejam suas raízes, o seu passado, mas e a história que ela criou aqui, nesses quase vinte anos de Rio de Janeiro?

Chega a soar controversa essa reação de euforia que está vivendo, afinal, ela sempre relatou a vida que levava por lá de forma superficial, lacônica, dando a impressão de que não se sentia a vontade em falar sobre o assunto, tanto que eu só tive contato com esse lado da família uma única vez, aos cinco anos de idade, quando ela me levou para conhecer o seu pai, meu avô, que estava morrendo.

Superar é preciso, seguir em frente é essencial, olhar para trás é perda de tempo. Passado se fosse bom era presente.

Foi a última resposta que me deu a respeito de seu passado enquanto voltávamos para casa, após enterrar o pai, recusando-se, sumariamente, desde então, a voltar a tocar nesse assunto.

Se algum dia eu nutri o desejo de tentar criar laços com minha avó, minha tia e depois minha prima ou qualquer outro parente que viveu ou ainda vive por lá, naturalmente me senti desmotivado.

– Vou dar uma volta.

Comunico à dona Lúcia enquanto continuo testemunhando a sucessão de gestos que ela pratica, colocando, tirando e escolhendo a caixa adequada onde cada coisa deverá ser guardada… Fico cansado só de olhar.

  • – Não demore querido.

Ela reivindica, num quase murmúrio, sem levantar a cabeça, e graças ao Criador, sem demonstrar qualquer resquício de aborrecimento sobre a conversa que tivemos…

Como minha mãe consegue ficar tão egoisticamente alheia à minha dor?

Respondo que logo estarei de volta e me dirijo à porta a passos largos: quero ver a praia; talvez o mar me ajude a expurgar boa parte dessa confusão mental, desse suplício, e Botafogo, definitivamente, não é o lugar adequado para essa empreitada.

***

Desço na estação de Siqueira Campos, em Copacabana, e sigo pela Rua Tonelero ao encontro da “Princesinha do Mar”, que me aguarda cinco quadras à frente.

Os carros costuram o asfalto e as pessoas andam num ritmo frenético, enfileiradas, sobre as calçadas, enquanto um mendigo parece estar dormindo, espremido num canto, embrulhado em trapos e folhas de jornal.

Passo em frente a diversos botequins, bares de sucos, antiquários e lojas de quinquilharias, e fico encantando com a vitrine de uma delas, onde há uma variedade de modelos de bonequinhas Frida Kahlo feitas de material reciclado. 

Continuo o meu trajeto e logo me deparo com um casal na direção contrária à minha, passeando de mãos dadas, cheio de sorrisos, e certamente segredando segundas intenções.  

Troco de calçada.

Será que vou me recuperar da febre David?

Poxa, eu tô sempre, sempre shippando casais de amigos e sempre, sempre terminando sozinho ou com o cocô do cavalo do bandido. Que saco! Meu cupido deve ser míope ou ter algum problema de visão muito grave. 

A praia.

Sigo em frente no que resta do meu trajeto e paro no final de uma calçada, ao lado de algumas pessoas, esperando, junto com elas, o sinal fechar, o que não demora a acontecer e então alcançamos, quase em uníssono, o famoso calçadão do outro lado da Av. Atlântica.

Escolho para que lado ir e começo a caminhar sobre o mosaico de pedras portuguesas em formato de ondas.

É claro que a enxurrada de pensamentos relacionados à mudança para a cidade onde mora minha avó não demora a invadir minha mente. Ingenuidade acreditar que deixaria lá, no meu quarto, trancadas, todas as perturbações provenientes dessa mudança… 

Se elas invadiram até mesmo os meus sonhos…

Inspiro e expiro pausadamente enquanto luto contra uma vontade absurda de gritar muito, muito alto.

Paro e me viro na direção do mar e vejo o sol começando a se ocultar no horizonte, o fulgor vermelho na orla do mundo se tornando cor de rosa… O céu lentamente passado de azulão para um sutil azul esverdeado…

Sinto meu rosto queimar e minhas pernas fraquejarem.

Estou sufocando.

Preciso me controlar. Preciso me controlar.

Inspiro e expiro… Um… dois… três…

Olho novamente para o horizonte, para o céu avermelhado, em busca de paz, mas minha crise de pânico parece que está aumentando.

Meneio a cabeça de um lado para o outro, devagar, tentando controlar o quase incontrolável.

Dou meia volta e encaro a rua. O zigue-zague dos carros na avenida, velozes como foguetes, desfila à minha frente. Meus olhos correm tentando acompanhar a velocidade de cada um deles.

Uma tontura repentina…

Coloco as mãos sobre os olhos e então os cubro totalmente…

capitulo-03-f

Se eu pudesse voar…

https://www.youtube.com/watch?v=ymanYMdbBZE

4 comentários sobre “Depois de tudo – Capítulo 3: Se eu pudesse voar…

  • “Depois de Tudo” não tem pressa para acontecer! Ao invés de várias cenas e ações que dão agilidade aos acontecimentos, o @nandocouto faz com que nos aprofundemos do sofrimento do Lucas. Partimos para uma análise muito mais psicológica e até filosófica destes conflitos do que a mera análise factual. Conseguimos enxergar todo esse drama, que é elevado à catástrofe pelo protagonista, com seus olhos… Embora não seja o fim do mundo, o Lucas assim o tem enxergado e apresenta capítulo a capítulo suas justificativas que estão mais baseadas no medo que na própria realidade em que vive.

    A cada capítulo o autor surpreende mais e mais e faz isso sem nenhuma pressa, mas com um compromisso com a escrita e acerta em cheio ao criar uma trama tão profunda. Considero-me um fã da sua escrita!

    • Eu simples e notoriamente não sei como responder a esses comentários enriquecedores que você literalmente me presenteia, Dominus. Fico encantando em como você expõe com perfeição as reações do Lucas, conseguindo captar a minha intenção, o que busco mostrar através desse “grito” de socorro que o protagonista está dando e, que pelo jeito (pelo menos até esse capítulo 03) só vem produzindo eco.

      Sempre me encantou o prefácio de Jorge Amado para o seu livro “Tieta do Agreste”: “Começo por avisar: não assumo qualquer responsabilidade pela exatidão dos fatos, não ponho a mão no fogo, só um louco o faria. (…) Sobretudo porque verdade cada um possui a sua, razão também, e no caso em apreço não enxergo perspectiva de meio termo, de acordo entre as partes.”

      Ele deixava claro, de antemão, que o leitor teria a total responsabilidade na impressão dos personagens e acontecimentos que ele escrevera, o que é fascinante, não delimitar espaço, descrições, narrativas, porém é ainda mais deslumbrante quando esbarramos com a similaridade do outro que está se disponibilizando a “viajar” no universo que criamos, e no caso de “Depois de Tudo”, você está enxergando com uma sensibilidade ímpar (algumas das vezes até mesmo detalhes que eu não visualizei, acredite …rsrr) todo o conflito “vivido e relatado” pelo Lucas.

      Obrigado por entender a escolha de não incrementar a narrativa dessa história com múltiplas cenas de ação (a não ser que se façam necessárias). Resumiste perfeitamente: “Partimos para uma análise muito mais psicológica e até filosófica destes conflitos do que a mera análise factual.”

      Acho que estão faltando textos que dão oportunidade à profundidade sentimental masculina (independente da orientação sexual) já que o mercado, desde os áureos tempos, destacam a verborragia emocional feminina.

      Um grande abraço e espero que possa manter à altura a trama de “Depois de Tudo”, cativando-o cada vez mais e mais.

      • Digo mais ainda porque acho “Depois de Tudo” incrível. Como avaliador das webs que são publicadas no site, me deparei com muitas histórias, inclusive com esta temática. Mas a sua tem este elemento que nos faz ver algo muito além de personagens agindo de acordo com as situações em que são colocados.

        Além de uma narrativa marcante que me faz lembrar as minhas leituras do Machado de Assis e do Lima Barreto, você me faz perceber que só li algo parecido com isto em Paulo Coelho. Num de seus livros, O Monte Cinco, ele faz o leitor entrar na história e viver aqueles momentos de forma tão singular que desenvolve um dos sentimentos mais sublimes que só pertence ao ser humano: a empatia.

        Rasgo estes elogios com muita verdade porque o que mexe com os sentimentos deve ser dito, né?! Acredito que você trata o texto com uma paixão que se transborda nestas linhas. E, independentemente da temática, você conseguiria transferir este taleto para outros enredos. De verdade, parabéns!

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