Depois de tudo – Capítulo 12: Depois (ou o início) de tudo…
12 Depois (ou o início) de tudo…
Enquanto fito o olhar e o semblante de Thiago explicitamente desorientado, sinto minha mente se descolando em várias direções, mas num ritmo acelerado, como se eu estivesse dirigindo um carro em alta velocidade, tendo plena consciência de que se tentar puxar o freio de mão vou rodopiar e capotar até parar só onde o Criador sabe…
Fecho os olhos por um instante, o suficiente até me sentir seguro para voltar a encarar Thiago e compreender o que, de fato, ele está tentando dizer, pois cada uma de suas palavras, nesses últimos minutos, pareceram delírios, completamente sem nexo, despejadas umas sobre as outras como uma criança se confessando diante da autoridade materna após ter sido flagrada em uma travessura que de antemão lhe havia sido proibida.
Nós iremos nos reencontrar em Laranjeiras, Lucas
Eu e sua prima Beatriz somos noivos
Ouço a respiração pesada de Thiago e então abro os olhos um tanto receoso do que possa encontrar à minha frente e acabo por me deparar com o seu olhar trazendo uma estranha expressão morta, não permitindo alcançar nada além do que ele está me deixando enxergar.
Finalmente ele baixa a mão que ostenta a aliança de noivado e, em seguida, curva os ombros, dando a impressão de que está sendo consumido por um cansaço extremo. Assim, desse jeito, não se parece nem um pouco com aquele Thiago afável, aprumado e confiante que instigara minhas fantasias desde o final dessa tarde, pelo contrário, mais se assemelha a um jovem, ou melhor, a um homem corroído por uma dor mal tolerada.
– Eu não devia ter te trazido para esse apartamento…
Os olhos de Thiago continuam irradiando um lampejo que desafia análises. Ele me observa com a mesma atenção com que um gato observa uma toca de rato e sua aparente (e suspeitável) calma, inevitavelmente, me obriga recuar, fazendo-me deslocar um pouco para o lado enquanto sondo com as pontas dos dedos a porta do apartamento fechada atrás de mim, até sentir o relevo do miolo da fechadura… sem a chave.
– Não precisa ter medo… Estou sendo sincero. Por favor, acredite.
Ele dá um passo em minha direção e então um suor frio começa a brotar de minha fronte ao mesmo tempo em que me recordo de diversas histórias divulgadas na internet onde adolescentes gays foram vítimas de parceiros sexuais, que os havia atraído para um apartamento onde diziam morar, enredando-os num véu de mentiras e histórias mal contadas, até conseguir tirar-lhes a vida…
Rapidamente corro os olhos sobre o meu entorno, sobre os poucos móveis desse apartamento e percebo que não há nada de pessoal que demonstre que ele pertença a Thiago ou a qualquer outra pessoa… Nenhum porta-retrato que seja… Nada parece estar fora do lugar, tão somente uma invejável organização, um tanto fria até, premeditada, exatamente como havia notado agora a pouco, de madrugada, lá no quarto…
É isso. Thiago está seguindo à risca o roteiro desses psicopatas homofóbicos e o próximo passo é esse, confessar que nossos encontros foram premeditados por ele… Ou será que foi só o primeiro encontro na praia? Não consigo mais me lembrar ao certo…
Pouco importa. É claro que ele deve ser um desses maníacos que fuçam a vida alheia, buscando possíveis vítimas para descontar suas frustrações por não se assumirem…
Sim… A exposição de informações demasiadas de nossas vidas nas redes sociais é um prato cheio pra esse tipo de psicopatas e a primeira coisa que eu vou fazer ao sair daqui vai ser acabar com as minhas contas em todos esses canais…
Bem feito pra mim.
Talvez agora eu acredite que essa merda toda de que eu vou encontrar minha alma gêmea desapareça de vez da minha cabeça.
Inspiro e expiro forte, a ponto de sentir dores no meu peito, mas por fim decido que não tenho alternativa a não ser afrontar Thiago até dar um jeito de fugir desse maldito lugar.
Ajeitando os ombros, fixo os pés no chão com demasiada persistência e mantenho-me rijo, deixando claro para ele que vou resistir e lutar contra o que for preciso.
Diante da minha súbita mudança de postura, Thiago se detém, retornando uns dois passos e colocando em seguida as mãos para trás das costas, juntando-as um pouco acima do cóccix; ele ergue a cabeça como um monarca ante um plebeu que deveria inadvertidamente curvar-se pelo simples fato de estar diante de sua nobre presença.
– Vou lhe contar algo que nunca contei a ninguém… Nem mesmo perante um tribunal… – um anseio e uma tristeza pontuam o tom de sua voz – Nem mesmo sua prima Beatriz ouviu de mim essa história da forma como vou dizer, crua, intimista, pois é dolorosa demais e só de relembrá-la, em voltar no tempo, naqueles malditos anos, sinto os demônios a ela ligados abrindo todas as portas nas quais eu os havia conseguido, a duras penas, trancafiá-los…
– Eu não quero ouvir nada, só me deixe ir… – procuro impedi-lo de pronto, porém sou desprezado de maneira veemente.
– Só quero que você entenda Lucas, e se depois não quiser compreender as razões que me trouxeram até aqui… – ele meneia a cabeça bem devagar – Até você…
Os olhos de Thiago buscam o chão enquanto engulo em seco diante dessa mais nova “provável confissão” que está prestes a acontecer, e esse gesto esquivo, sem dúvidas é para amarrar as pontas soltas da narrativa mirabolante que ele vai me oferecer…
Realmente não quero ouvi-la. O que eu preciso é ir embora daqui o mais rápido possível!
– Desde o instante em que a Beatriz mostrou suas fotos do facebook para todos da família, anunciando, como de maneira oficial, que tu irias para Laranjeiras, passar um tempo por lá, te apresentando como se vocês se conhecessem à longa data… – ele refreia as palavras antes de continuar e em seguida ergue seus olhos. A expressão tesa e noturna que carrega em seu semblante dá a impressão que está zombando de si mesmo, se permitindo, sabe lá por que, magoar-se – Não consegui mais apagar sua imagem da minha mente… Não consegui mais te esquecer…
Minha respiração se acelera e meus batimentos cardíacos vão me levar a um infarto.
Ele tá falando sério? Ele realmente noivo da tal da minha prima Bia?
– Eu não acredito que exista uma pessoa mágica, alguém que irá despertar na gente uma paixão instantânea e com a qual jamais nos desentenderemos… Acredito, sim, que possamos conhecer uma pessoa com quem nos conectemos a um nível mais profundo… – a fisionomia de Thiago, agora, parece a de um homem embriagado tomado por uma raiva impotente – E pude sentir isso ao vê-lo na tela daquele computador…
Então foi por isso que ele disse que me achava mais bonito pessoalmente…
Controle. Preciso e devo manter o controle.
– Posso apanhar o meu celular? – sua voz impassível invade os meus ouvidos chegando a me deixar um pouco tonto.
– É claro que não! – respondo firme, sem pestanejar.
– Calma. Ele está ali, no sofá – Thiago aponta para o móvel sem braços, não muito longe de onde estamos – Eu o joguei ali depois que chamei o Uber para vir te buscar, que, aliás, pelo tempo decorrido e o interfone em silencio, já deve ter ido embora…
Thiago não espera qualquer manifestação de minha parte e se volta rapidamente na direção do telefone e em menos de poucos minutos está de volta, prostrando-se diante de mim enquanto sua mão direita e sua atenção se movem num vai e vem frenético sobre o aparelho.
– Toma – ele me oferece o telefone – Veja.
Recuso-me, parecendo um gato escaldado diante da água fria, mas Thiago insiste, quase atirando o celular em cima de mim.
Não me resta alternativa a não ser acatar essa imposição. Tiro o aparelho com violência de suas mãos e alternando o meu olhar entre ele e o telefone, me surpreendo com o arquivo exposto à minha frente: uma sucessão de fotos de minha prima Bia ao seu lado em diversas ocasiões e lugares. Ela sempre sorridente, encantadora, os olhos bondosos, inteligentes e uma empatia singular marcando o seu semblante enquanto os olhos de Thiago surgem como duas velas protegidas de todos os ventos, duas luzes suaves brilhando de alegria como se estivessem resguardadas em um porto seguro…
Logo a sequência de imagens dá lugar a um vídeo, não muito longo, onde ele, Bia e várias outras pessoas estão em uma sala, comemorando alguma coisa. Não demoro a descobrir: é a festa de noivado deles dois.
Talvez ele esteja dizendo a verdade. Ouso conjecturar ao mesmo tempo em que perscruto o rosto de Thiago, encontrando-o cheio de pesar.
Luto contra o instinto que está tentando sobressair à razão, mas é impossível não sentir pena do seu semblante carregado de tristeza e arrependimento, e este último, diferente da primeira, que apenas belisca o peito, mata lentamente.
Não posso estar enganado… Mas se todas essas fotos e esse vídeo não passarem de montagens bem feitas?
Não… Não… Se eu parar, deixar um pouco de lado essa paranoia (um pouco) e tentar juntar as peças espalhadas desse quebra cabeça, Talvez algo faça sentido…
Se levar em consideração a mais ínfima possibilidade de que exista um fundo de realidade no receio, nas meias palavras de Thiago enquanto íamos conhecendo-nos mais e mais lá naquele quiosque… E depois aqui, nesse apartamento, seu desespero, sua aflição segundos antes de me revelar quem é a sua noiva, como se ele soubesse que ao colocar em palavras essa questão, o mundo inteiro desmoronaria e um muro absurdamente alto, inalcançável, seria construído entre nós dois.
Por que eu não aceitei o contive que minha prima me fez no facebook? Por que eu não tive a curiosidade de visitá-lo, vasculhá-lo?… Teria evitado toda essa confusão… Teria reconhecido Thiago, que certamente está lá, com ela, nessas mesmas fotos do celular e até em outras…
– Se isso tudo for verdade – inicio, devolvendo com cautela o celular para Thiago enquanto busco manter-me impassível – Por quê? Preciso entender esse jogo que você decidiu jogar… Onde ela, a Beatriz, fica nessa história toda?
Com gestos contidos, ele recebe o aparelho de volta e o coloca no bolso do roupão que está vestindo, retornando à postura enrijecida de antes, com as mãos para trás das costas.
– Passei toda a minha adolescência me perguntando que mal havia em ser bem nascido… Que demérito eu teria em aproveitar a benção de ter pais abastados financeiramente… Usufruir de uma situação da qual eu não havia escolhido, mas que o destino quis me presentear…
Oi?
Thiago lê a estranheza que trato de demonstrar de imediato na minha fisionomia e, em silêncio, retira as mãos de trás das costas e caminha até o pequeno console disposto ao lado esquerdo da porta e apanha um molho, com três chaves, e me entrega, indicando qual delas é a que abre a porta trás de mim.
Meneio a cabeça sem deixar de olhar para cada uma delas e então o ouço pedir, encarecidamente, que eu escute o que ele tem para dizer e depois, se preferir, poderei deixar o apartamento sem qualquer tipo de promessa ou condição.
Ergo a cabeça para encará-lo com indisfarçável desconfiança; Thiago então põe a mão, febril, urgente, em meu braço esquerdo e se afasta novamente, voltando à sua antiga postura.
– Temos, ou melhor, depois desse nosso encontro, acredito que tínhamos um almoço hoje… – ele informa pausadamente, arqueando as duas sobrancelhas, deixando claro, com esse deliberado gesto, que aguardava o momento certo para conquistar o seu voto de confiança.
Minha resistência cai por terra imediatamente diante dessa inquestionável declaração. Quem mais na face da terra, além de mim, de dona Lúcia, a Bia e Gabriela sabiam desse almoço?
Respiro fundo e meço Thiago de cima a baixo: ter a certeza de que ele e minha prima são noivos de fato não me faz sentir qualquer emoção, apenas um atordoamento imobilizante…
– Continuando… – Thiago pigarreia, chamando de volta a minha atenção – Atravessei a fase da adolescência junto de uma galera que se divertia em festinhas em boates classe “A”, em reuniões regadas a uísque, viagens para Búzios, Angra, Punta del Leste… Nada menos que passatempos caríssimos, mas quem vai se preocupar com dinheiro quando se é bancado pelo papai e vestindo Diesel, Lacoste ou dirigindo um Toyota?
“Ser playboy é e sempre será um estilo de vida que envolve moda, cultura, viagens, amigos, gostar da noite e das baladas, ter um carro específico e curtir jantar fora. Bem diferente de ser um mauricinho, que é um cara chato e engomadinho.”
Enxergo perpassar nos olhos de Thiago certo brilho de autoridade e orgulho atrelados à calma aparente que busca ostentar em sua fisionomia.
– Depois de quatro anos mergulhado no meio desse redemoinho de prazeres sem limites, alguma coisa começou a me incomodar. Uma sensação de descontentamento que eu não sabia ao certo explicar e que me fez refletir, questionar se realmente estava feliz e se aquela felicidade calcada num bem-estar material, em uma vida sem problemas e preocupações, era o que eu realmente queria…
“De início preferi não me manifestar, não compartilhar nada com ninguém, preservando a estabilidade das minhas amizades, ou o que eu acreditava poder chamar de amizade… Nesse ínterim acabei sendo surpreendido ao ver-me envolvido com o filho de um dos empregados da casa de um desses meus amigos. Não sei ao certo explicar até hoje como aconteceu tudo aquilo, mas posso garantir que resisti ao máximo à aproximação que foi acontecendo entre nós dois, até porque eu tinha tido algumas namoradas e nunca havia me interessado por outro cara”…
Thiago se cala e permanece assim, quieto, por um bom tempo, com as mãos cruzadas sobre o cóccix, vislumbrando o nada, ao mesmo tempo em que seus olhos parecem distantes, viajando num espaço de tempo e espaço só por ele alcançado…
Me mexo impaciente tentando entender porque razão ele está me contando tudo isso…
– É claro que fomos descobertos – a voz de Thiago, entristecida, parece retornar de um lugar longínquo – E os meus amigos trataram de mostrar seu desconforto e intolerância diante da situação. Primeiro me ridicularizando e depois humilhando o pobre rapaz, a ponto do pai dele pedir demissão… Mas eles, OS MEUS AMIGOS, acharam que isso foi pouco e então armaram uma cilada para estuprar o menino…
Como assim? Balanço a cabeça instintivamente a fim de assimilar o que acabo de ouvir. As lágrimas que começam a correr pelo rosto de Thiago, somadas à expressão lancinante que arrebata o seu rosto, não deixam dúvidas da dor de uma ferida que, pelo jeito, não foi cicatrizada.
– Eles tentaram me fazer participar daquele ato absurdo, daquela violência sem precedente, como se pudesse existir justificativa para agredir alguém, mas me recusei e então fui forçado a testemunhar, obrigado a ver o sofrimento dele… – percebo que Thiago hesita em dizer o nome do tal rapaz ao mesmo tempo em que aperta os olhos com força, repetidamente – Um garoto de 17 anos sendo sodomizado e humilhado por quatro…
– Thiago… Acho melhor…
Não consigo terminar a frase, sendo novamente impedido.
– Os quatro… – ele balbucia para logo em seguida continuar, entre os dentes – Os quatro bandidos saíram impunes, devidamente protegidos pela indulgência dos pais poderosos e influentes, comprovando o quão intocáveis poderiam ser, inclusive pela Justiça, como se o ato de maldade que cometeram fosse um direito de senhor feudal.
Thiago retira as mãos das costas e com o punho fechado de uma delas, soca a palma da outra mão, puxando o ar com toda força para dentro dos pulmões enquanto, com o cenho cerrado, consegue estancar, sem grandes esforços, as lágrimas que ainda teimam a escorrer de seus olhos.
– Eu fui um covarde… – ele reinicia com uma expressão chocada no rosto – Fui um covarde por não ter me rebelado diante do silêncio que me impuseram por ter me recusado em depor a favor daqueles monstros que chamei de amigos por muito tempo…
“Uma fase de depressão me assolou a partir de então, e passei a abusar ainda mais do álcool, na esperança de me ver livre dos pensamentos e lembranças terríveis que iam e vinham na minha mente, lutando de portas fechadas contra os meus demônios, sofrendo, chorando, lamentando e vegetando diante de uma longa confusão crescente e indomável dentro da minha cabeça”…
Cansaço e decepção figuram no rosto de Thiago. Em seus olhos não consigo enxergar nada mais que um sentimento de derrota… e miséria sentimental.
– Implorei a Deus, em alguns momentos, que me fizesse reencontrar um sentido pra minha vida, em outros questionava se valeria à pena lutar para conseguir alcançar qualquer objetivo. Eu já não sabia em quem confiar ou em quem acreditar realmente, nem mesmo nos meus pais, no meu irmão, que se consumiam a cada dia diante da muralha de um silêncio mordaz que levantei ao meu redor…
“Dormir era a minha única saída, pois só assim conseguia esquecer tudo que me atormentava, pois já não tinha mais forças para fingir o mínimo que fosse diante do excesso de dor, inclusive física, pela somatização de toda aquela angústia”…
Um silêncio e eu sinceramente não sei o que dizer diante desse desabafo sem precedentes…
– E então tentei o suicídio – revela Thiago com uma voz mortalmente calma, despejado de qualquer expressão.
Estremeço dos pés a cabeça e sinto minha boca ressecar.
– Por dois dias permaneci desacordado na clínica psiquiátrica onde fui internado por meus pais, despertando muito sonolento e confuso, sem ter conhecimento, inicialmente, do que havia feito, mas não demorei a recuperar a consciência e logo fui informado do risco que eu apresentava para mim mesmo.
“Fui assolado por uma sensação atroz de vergonha e desespero ao encarar o rosto dos meus pais, do meu irmão e enxergar o sofrimento que tinha lhes causado. Parecia que tinham envelhecido dez anos… Depois disso decidi que precisava me recuperar e arrumar a minha bagunça e parti para alcançar uma provável recuperação e uma redenção que eu sabia que não obteria facilmente… Depois de seis longos meses naquela clínica consegui vencer minha batalha interior, confrontando a guerra surda e covarde que quase tinha me derrotado”…
– Mas e o seu amigo… – tento medir as palavras antes de dizê-las, mas é mais forte do que eu – O que houve com ele? Por que não depôs contra os quatro?…
Thiago me dá as costas e caminha até o sofá sem braços, onde se deixa cair, permanecendo imóvel, olhando para o teto.
– Ele se matou dois dias depois do estupro.
Engulo em seco e sinto uma dor fria no coração como se um pingente de gelo o tivesse trespassado.
Olho para a imagem estatelada de Thiago sobre o sofá e faço um esforço imenso para não ir até lá e puxar sua cabeça para o meu ombro, afagar-lhe os cabelos…
De súbito ele se ergue e caminha de volta até onde estou e se prostra à minha frente com um olhar pálido, frio e uma fisionomia enrugada denotando cólera e apreensão.
– Não quero que pense que te contei essa parte da minha vida para barganhar, pedir que sinta pena de mim e não conte nada para sua prima do que eu fiz até tê-lo na minha cama… Não farei nada disso, até porque me aproximei de você porque ao lhe ver na tela daquele maldito computador reconheci “ele”… A semelhança entre vocês dois é assustadora…
– Do que você está falando? – pergunto enquanto um caos de pensamentos e dúvidas volta a me assolar.
Thiago puxa o celular novamente do bolso do roupão e depois de uns instantes me mostra uma foto onde ele e…
Pelo Criador, seu eu soubesse que não sou eu nessa imagem, poderia jurar…
Levanto os olhos para Thiago, interrogando-o em silêncio, tentando entender que tipo de brincadeira é essa…
Sua fisionomia está impassível.
– Você me fez matar as saudades que sentia dele… – Thiago dispara sem qualquer remoroso suas palavras nem um pouco gentis – Claro que sua prima não soube disso, contei apenas ao meu irmão, até para ele me ajudar (mesmo contra a vontade) a subornar os dois porteiros do seu prédio, o que não foi muito difícil, para que soubéssemos todos os seus passos…
Minha respiração começa a ficar entrecortada. Eu me viro de súbito para a porta e com certa dificuldade consigo abri-la, e então me volto para Thiago novamente, encontrando-o com os olhos marejados.
Por um breve instante tento achar alguma pista de que ele esteja me zuando, tentando quebrar o clima pesado que se instaurou, porém o espectro de um sorriso velhaco, debochado, surge no canto dos seus lábios me deixando completamente coberto de indignação.
– Filho de uma puta. Isso tudo que você me contou aqui, agora, deve ser uma mentira deslavada…
– Acredite no que quiser…
– E o que você disse quase agora sobre conhecermos uma pessoa com quem nos conectemos a um nível mais profundo… Sobre você ter vindo até aqui… E aquela sua frase sobre sorrir mesmo quando estiver triste…
– Pelo amor de Deus, Lucas – Thiago grita, impaciente, ao mesmo tempo em que dá um giro em torno de si mesmo, voltando a me encarar, firme – Decisões baseadas em emoções não são decisões, são instintos…
– Não – eu berro de volta, pouco me importando com a porta aberta do apartamento – Tudo isso que aconteceu, ontem, na sua cama, ontem, quando estivemos lá, no quiosque, ontem, ali, sobre aquele sofá… Agora eu sei que aprendi mais sobre mim mesmo e sobre você nessas horas do que se tivéssemos vivido cem anos…
– Que lindo a maneira como você enxerga a vida, cheia de mimimi, sonhos, fantasias, esperanças, desejos e alegrias… Realmente cativantes… Portas fáceis para te atingir sem qualquer dificuldade…
O escárnio no rosto de Thiago me derruba. Não posso acreditar nessa súbita mudança de comportamento. Tem algo de errado…
– Mas seria uma pena se alguém fizesse você enxergar a realidade não é mesmo?
– Por que me contou essa história de seu passado se tudo isso foi um jogo? Eu vou ser descartado mesmo então não preciso saber nada disso sobre você…
Ele se aproxima de mim rapidamente e me sacode, mas sacode de tal maneira como se sentisse uma raiva insana de mim… e dele mesmo.
Consigo me livrar de suas mãos e fugir para o corredor, onde estaco depois de me assegurar suficientemente distante e ter a certeza de que Thiago não se moveu.
O encaro. Não sei o motivo para ainda querer fazer isso, mas o encaro. Talvez para tentar encontrar um resquício de hesitação em seu olhar, um vestígio de arrependimento em seu semblante…
Ficamos quietos, nos olhando, com a pequena distância perpetrada entre nós, …
– Vá embora, por favor – Thiago ordena, sussurrando, baixando os olhos.
Respiro profundamente e relaxo por um instante, tentando reunir toda raiva possível a meu favor, tentando recobrar a força, mas por incrível que possa parecer me sinto cansado demais para odiar ou me importar com qualquer coisa. A derrota pesa em meu espírito como chumbo. Apostei tudo e perdi…
– Que parte você não entendeu dessa porra, Lucas? – ele me questiona num tom de voz beirando o descontrole…
– Eu não consigo… Eu não consigo acreditar… Você… Eu…
– Eu precisava ter a certeza de que você não era “ele” – o desdém direcionado a mim é sufocante – E tenha certeza de que você, perto dele, posso afirmar agora, não passa de uma simples nota de rodapé.
Respiro com dificuldade diante dessa humilhação; ao menos o orgulho preciso manter depois de tudo…
Girando nos calcanhares, me afasto do raio de visão de Thiago e a passos largos alcanço a escada de emergência, onde, depois de fechar a pesada porta anti-incêndio atrás de mim, começo a correr, pouco me importando quantos andares terei que descer para me ver longe dessa merda toda. Em cada degrau um solavanco reflete diretamente na minha cabeça, como se minha coluna quisesse sair do crânio.
Alcanço, por fim, a portaria do prédio e a atravesso, ofegante e rápido, sem olhar para os lados, ao mesmo tempo em que me volto para trás para ter a certeza de que não estou sendo seguido.
Sentindo o corpo enrijecido e dolorido, atravesso a porta do hall e saio pela rua, caminhando sem destino, refletindo e constatando o quão imbecil me permiti ser por causa da minha ingênua capacidade de acreditar em ilusões, acreditar que posso ter uma vida normal, como a maioria dos seres humanos, independente de qualquer coisa, principalmente da própria orientação sexual…
Por que não tive forças para protestar contra o Thiago? Ele é só mais um idiota insatisfeito com a própria condição, enganando a si e a outra idiota que vive ao seu lado…
Merdaaaaaaaaaaa.
Não consigo dar mais um passo. Sinto-me cansado até os ossos, fraco, confuso…
Será que existe escapatória desse beco sem saída?
Olho o meu entorno e retiro o celular do bolso da calça e de pronto me deparo com ligações perdidas de dona Lúcia e Gabriela… Definitivamente não quero enfrentá-las agora.
Respiro fundo e teclo os números à minha frente. Do outro lado da linha Rômulo não demora a atender.
– Por favor, meu amigo, você pode vir me buscar?
***
Entrego a passagem e minha identidade para que o funcionário da empresa aérea faça a devida conferência.
Com seus gestos rápidos e frívolos não demoro a receber de volta o meu documento e uma parte do ticket destacado, observando-os por alguns segundos antes de guardá-los para logo em seguida começar a percorrer o trajeto que me levará à entrada do avião.
Decido não olhar para trás. Me recuso a ver minha mãe e Gabriela acenando e se debulhando em lágrimas. Detesto despedidas, ainda mais desse tipo, no pior estilo italiano de ser: carregada de drama, e no caso de dona Lúcia, não quero me sentir ainda mais culpado do que já estou depois da discussão que tivemos ontem, quando o Rômulo me deixou em casa, e eu disse coisas horríveis numa última tentativa de não ser exportado para Nárnia, inclusive sobre ela estar me mandando para um lugar que evitou estar a vida inteira… Na verdade estava descarregando nela a decepção e frustração que Thiago derramou sobre mim…
Continuo o meu trajeto e a cada passo que avanço me sinto como se estivesse sendo escoltado para minha execução sumária; logo um tique nervoso começa a tomar conta do meu rosto, sinto minhas veias saltarem das têmporas, minha mão esquerda tremer e a garganta ficar seca.
Faço a curva no fim do corredor e visualizo as comissárias de bordo sorrindo na porta do avião.
Vou morrer antes de alcançá-las.
Agora palpitações no peito e falta de ar. Invoco o auxilio de São Luís Gonzaga, padroeiro dos adolescentes, para que não me deixe ter um ataque.
Um ansiolítico, pelo Criador.
Respiro fundo e caminho como se nada estivesse acontecendo. Preciso me controlar ou então pedir ajuda diante da minha incapacidade.
Escolho.
Não vou chamar a atenção. Sigo para o meu destino e tão logo cumprimento as duas funcionárias impecavelmente vestidas em seus uniformes, ganhando um fone para os ouvidos e algumas balinhas.
Uma breve troca de sorrisos e então me dirijo ao meu assento, onde graças aos anjos ninguém está ocupando as duas cadeiras (a do corredor e a do meio) até esse momento, e se
tudo der certo vai ser assim até o avião decolar.
Atiro-me na poltrona junto à janela e fecho os olhos; a imagem de Thiago, mais uma vez, insiste em tomar conta da minha mente, apesar de eu estar conseguido evitá-la, nas últimas vinte e quatro horas, a duras penas.
Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando
estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.
Abro os olhos de sobressalto e me viro para a janela, fixando o olhar na asa do avião, no asfalto da pista, no diabo a quatro.
Também tenho uma frase bem legal pra você, seu ridículo: A maioria dos homens vive uma existência de tranquilo desespero.
Um whats chegando…
Merda.
É do David…
Ele está desejando que o avião despenque.
Penso em responder alguma coisa para ele à altura, mas desisto. Ele não vale as impressões digitais que deixarei sobre o teclado do meu telefone.
Desvio o olhar da minha janela e o estaciono sobre as duas poltronas vazias ao meu lado. Pareço hipnotizado. Preciso de alguns segundos para colocar minha mente em ordem e saber realmente o que devo fazer quando chegar lá, no Sítio do Pica-pau Amarelo e me deparar com o “senhor das aspas” e sua noiva, e também toda a minha parentada…
Cruzo os braços e respiro fundo e começo a tamborilar os dedos nos braços da poltrona enquanto meu cérebro se revira de todas as maneiras possíveis.
Assim como Scarlett O’Hara disse ao final de “… E o vento levou”, quando Rhett Butler a abandonou: Chega. Não vou pensar nisso agora. Penso nisso amanhã… No meu caso, pensarei nisso daqui a duas horas, quando chegar ao aeroporto de BH…
Retorno a olhar na direção da minha janela e logo o som de outro whats chegando invade os meus ouvidos. Apanho o telefone na certeza de que vou encontrar mais uma mensagem desagradável de David, dessa vez desejando que o avião exploda, mas me surpreendo: é de dona Lúcia.
Engulo em seco antes de abri-la.
Já que você, meu querido menino, insiste em dizer que está indo para “Nárnia”, te deixo com uma passagem deste livro encantador: “Nem tudo está perdido como parece… sabe? Coisas extraordinárias só acontecem às pessoas extraordinárias. Vai ver é um sinal que você tem um destino extraordinário, algum destino maior do que você pode ter imaginado”.
Sou sua mãe e nunca se esqueça de que te amo mais do que qualquer coisa nesse mundo.
Ok. Sei que meus olhos estão marejados, mas não vou permitir que uma lágrima sequer caia. Nossas mães têm esse poder e essa intenção, e aqui, agora, não vou me derreter como uma manteiga jogada na frigideira.
Guardo o celular de volta. Não posso responder nada nesse momento à dona Lúcia. Quando chegar em Nár… em Laranjeiras eu agradeço.
Se posso criar cicatrizes, será que tenho o poder de curá-las?
Fecho os olhos e faço uma oração ao Criador e sinto uma lágrima, UMA, escorrer pelo meu rosto.
Merda.
O avião decola finalmente. Adoro a breve sensação de vertigem somada ao prazer de estar deixando o chão sem me locomover. A visão da baia de Guanabara é sempre inspiradora, chegando ou saindo da Cidade Maravilhosa…
Relaxa, Lucas…
Recordo as palavras de Gabriela depois do meu desabafo carregado de desespero e ansiedade por causa do “senhor das aspas”, dentro daquele Uber que nos lavava para a minha festa de despedida da qual eu fugi…
A adolescência é muito complicada. Na verdade não sabemos o que realmente queremos… Em alguns momentos estamos felizes, mas com uma rapidez absurda ficamos tristes, porém somos assim mesmo. Vamos esquecer as preocupações e recarregar as energias!
Pelo Criador! É isso aí minha amiga.
Li alguma vez em algum lugar que a adolescência é como uma massa de bolo que ainda não está pronta, que gruda nos dedos, na palma da mão, na parede, em tudo, e que a infância é uma espécie de sono profundo…
Obrigado por todos que acompanharam essa história.
Obrigado, principalmente ao site Séries de Web por me permitir postá-la.
Obrigado ao Dominus pelos vários comentários incentivadores.
Obrigado ao Wilson Bernardo pela MARAVILHOSA e SENSÍVEL trilha sonora.
Obrigado ao Wellyngton Vianna pela impecável abertura, pela qual me apaixonei logo de cara…
E obrigado, claro, ao verdadeiro Lucas por me permitir contar essa parte de sua história.
Simplesmente muito obrigado por tudo.
Um grande abraço!
🙂 : )
E obrigado a você Francisco por esta história. Por compartilhar a experiência dolorida do “Lucas” de forma tão sensível. Espero outras temporadas de “Depois de Tudo” e mesmo que não haja, esses 12 capítulos da vida do Lucas (que aconteceu em poucos dias) já é suficiente para mostrar que a vida é assim: imperfeita, imprevisível e na maioria das vezes, desafiadora.
Sabe, seu texto é também um enriquecimento: o Thiago tinha tudo, mas havia um vazio que não podia ser preenchido pelas riquezas que possuía; e sua agonia se confronta com um enfrentamento a seus próprios demônios que são, em geral, os grandes vilões da nossa existência. São questionamentos que transcendem a ficção e contribuem para uma discussão que vai além deste ou outro personagem, mas dos humanos, da nossa fragilidade diante dos nossos medos.
Ah, no trecho da fala do Thiago em que relata a sua história, você colocou uma parte em aspas. A título de curiosidade, seria o depoimentos do “Lucas”?
Eu já estava choroso e dona Lúcia me vem com As Crônicas de Nárnia. Gosto tanto dessa frase que já havia feito um post bem antes para a fanpage com ela, acreditas? https://www.facebook.com/seriesdeweb/photos/a.378560945514289.73436.335125033191214/1066057676764609/?type=3&theater
E pra terminar tudo, você ainda me vem com Capital Inicial! Quer me matar, é isso!
Brincadeiras a parte, não exagero pelo elogios e quero te agradecer por trazer ao Séries de Web esta história. Te desejo muito sucesso e sim, quero ter a oportunidade de te ver em ação com outras histórias suas.
Abraço!
Obrigado Dominus. Como sempre você conseguiu enxergar além das palavras, além dos diálogos. Nesse momento do Lucas, nesse fim de temporada, acredito que a narrativa tenha “dado o seu recado” para os adolescentes (e até mesmo alguns adultos) de que devemos apostar mais em nós mesmos, parar de criar castelos de sonhos e pior ainda, empurrá-los para cima de alguém e querer que essa pessoa corresponda à nossa ansiedade e ilusões.
Claro, não digo que devamos desistir de almejar uma pessoa ao nosso lado, mas da forma como Lucas, chega a beirar o limite suportável da carência (vide os 3 namoradinhos que ele teve por insistência) e o que o próprio Thiago lhe joga na cara sobre quão fragilizado ele ficou apostando tudo em sonhos… O Lucas mesmo, quando percebe que Thiago não é o “príncipe encantado”, reconhece que “apostou tudo e perdeu”.
Bom… Chega de explicar o que não se pode (ou deve)…kkkkk… Mas sobre as passagens em aspas nas falas do Thiago, são deles mesmo. Quando um personagem esta tendo um texto bem extenso e precisamos passar para o parágrafo seguinte (e ainda ser o mesmo personagem falando) se usa aspas, pois se colocarmos travessão vai indicar (erroneamente) que é outro personagem se expressando… Fiquei confuso quando vi isso pela primeira vez e depois fui conferir… Procede produção…kkk
A respeito da passagem das crônicas de Nárnia, incrível a coincidência do seu post que já existe há tempos com a mensagem da dona Lúcia. Eu queria usar esse texto realmente, dessa forma, naquele momento, como a mãe do Lucas o faz, até mesmo o cutucando, já que ele se refere sempre à Laranjeiras pelo nome do lugar criado pelo C.S. Lewys
Bem, mais uma vez obrigado e fico feliz que tenha “adotado” o Lucas.
Um grande abraço.
Eu que acabei confundindo. A pessoa que inspirou a história é o Lucas. Acabei confundindo e achando que este trecho em aspas do Thiago seria o relato do verdadeiro Lucas.
Mas enfim, parabéns pela mensagem.
Não vou escrever outro textão kkkk
Por nada Francisco, parabéns a você por transmitir tanta sensibilidade e talento através das palavras escritas nessa história. Garanto que muitas outras virão e você poderá contar comigo no for preciso. Um abraço!!!!!