Depois de tudo

Depois de tudo – capítulo 11 : Um jogo perverso

 

Um jogo perverso

 

Sem qualquer sinal de resistência, me deixo ser levado por Thiago até um curto corredor cercado por paredes brancas, nuas, tão somente maculadas pela luz difusa de um abajur que fica na passagem entre este cômodo e a sala de estar. 

Thiago, que está um passo a frente de mim, se vira num gesto abrupto, sem sequer me encarar, e me encosta à parede, sem aviso prévio, sem perguntas, colocando minhas mãos para o alto, entrelaçando meus pulsos, mantendo-os aprisionadoscap-10-e sob sua mão esquerda enquanto com a destra começa a acariciar todo o meu corpo, juntando os seus lábios aos meus, me beijando desesperadamente, invadindo minha boca com tamanha sofreguidão, tirando o meu fôlego.

Sonhador, precipitado, desesperado, não importa, Thiago está me fazendo sentir coisas que jamais experimentei em todos os meses de namoro que tive com o Jonas, com o Thomas ou com o David: um ardor permitindo dois corpos se entrelaçarem de maneira intensa, profunda e perfeita, como se fossem apenas um em uma dança de pura harmonia e beleza, transformando o suor em algo inevitável e revigorante.

Ah, aqueles três, agora, não passam de meros laboratórios, ensaios que me prepararam para o grande espetáculo que é poder sentir-me uma espécie de nobre seletividade na esfera do sexo.  

Seguro o rosto de Thiago para encará-lo. Preciso olhar em seus olhos e ter a certeza de que ele é tudo o que há de mais belo nesse mundo, que tudo isso que está acontecendo é real e que nada e nem ninguém conseguirá me atingir sobre a face da terra…

Mesmo um pouco resistente, Thiago cede diante de minha obstinação, erguendo de início as sobrancelhas em descrédito, mas logo me entregando, sobre a face flamejante, um meio sorriso acalentador, carregado de confiança, mas que não dura tanto tempo, pois ele volta novamente aos meus lábios, tornando mais intensa a força de sua mão sobre os meus pulsos e com a outra enlaçando minha cintura, empurrando-a de encontro à sua enquanto começa a sussurrar palavras obscenas ao pé do meu ouvido.

Um arrepio atravessa toda minha coluna vertebral de cima a baixo, na velocidade de um relâmpago ao mesmo tempo em que um calor quase sufocante me invade o peito, fazendo meu coração bater mais depressa.

A adrenalina e a testosterona dentro desse corredor parecem palpáveis.

Thiago, por fim, libera minhas mãos e em seguida começa a se afastar, caminhando para trás, passos lentos, enquanto vai esquadrinhando todo o meu corpo, parecendo enxergar a nudez por baixo de minhas roupas, avaliando-me de cima a baixo como se eu fosse uma mercadoria prestes a ser adquirida, uma vítima indefesa diante de uma ave de rapina que está disposta a desferir o seu ataque sem qualquer piedade.

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Ao alcançar a parede atrás de si, Thiago arranca a camisa branca lisa que está vestindo, jogando-a para algum lugar que não faço a mínima questão de saber, passando a exibir seu tórax timidamente definido, com poucos pelos…

Observo-o, bancando o voyeur, lamentando não ser eu a despi-lo, porém me consolo com a visão disposta à minha frente, só pro meu prazer… Thiago é ainda melhor do que eu imaginei debaixo daquele chuveiro… 

Como não se sentir hipnotizado diante dessa perfeição de músculos sem exageros? Como não permitir que a volúpia tome a frente do meu olhar, dos meus gestos?

Thiago retorna para mim da mesma forma, em passos lentos, sem pressa, enquanto nossos olhos voltam a se cruzar. Ao se aproximar, ele segura o meu rosto, quase me obrigando a encará-lo e em seguida desce suas mãos até a minha cintura, novamente, mas dessa vez para levantar minha blusa social xadrez, na altura suficiente para que seus dedos avancem sobre a pele da minha barriga, por cada centímetro, cada canto, ouriçando partes sensíveis do meu corpo que até eu desconhecia.

Num gesto irascível, ele arrebenta os botões da minha blusa para poder abri-la, arrancando-a sem demora do meu corpo e no mesmo ímpeto atirando-a para o chão sem qualquer cuidado, ao mesmo tempo em que não deixa de me encarar um segundo sequer, me invadindo com um olhar que mais parece estar atravessando minha alma, tentando desesperadamente absorvê-la.

cap-10-f– Valeu a pena esperar cada segundo – Thiago rumoreja num tom de voz extasiado antes de voltar a beijar o meu pescoço, agora rudemente, aproximando o seu peito do meu, roçando seus poucos pelos à minha pele nua.

 De súbito, ele se afasta, e me olhando de um modo impertinente, ergue a mão esquerda e acena, sugerindo que eu o siga enquanto estampa em sua boca de lábios finos um sorriso carregado de um humor cínico e em sua fisionomia uma fria imprudência.

– Vem.

Ele se vira, dando-me as costas por completo, partindo na direção de uma porta semiaberta no fim do curto corredor.

***

Olho para o interruptor que fica atrás da porta do quarto de Thiago, que está fechada, e considero a hipótese de me levantar para apagar a luz, e quem sabe assim tentar adormecer um pouco.

Em câmera lenta olho para o lado da cama e estremeço com esse gesto ao mesmo tempo em que sinto minha cabeça um pouco inchada.

Grande coisa um copinho de tequila, arremato com desdém enquanto constato que Thiago segue dormindo, a respiração pesada; desvio então a atenção para o teto à minha frente, encarando-o sobremaneira, meneando a cabeça lentamente sobre o travesseiro macio, sendo inquirido, pressionado pelo meu cérebro que a todo custo precisa racionalizar tudo isso que aconteceu…

Nunca foi tão difícil concatenar minhas ideias, como agora, diante desse vendaval que me atingiu nessas últimas horas e que me trouxe até aqui, para o apartamento e para a cama de um completo estranho, encorajando-me a jogar por terra os meus princípios, as minhas convicções… E quiçá arriscando a minha vida, o que é pior.

Volto a olhar para Thiago, imóvel, seu peito movendo-se num ir e vir sem pressa; ele parece estar dormindo o sono dos justos…

Quando acordarmos, se eu conseguir dormir, não irei aceitar nada que ele me oferecer…

Tomando o cuidado para não fazer movimentos bruscos, até mesmo por causa da festinha have que está acontecendo na minha cabeça, sento-me sobre a cama apoiando as costas à cabeceira e trago os joelhos até a altura do peito e os entrelaço com meus braços e começo a correr os olhos pelo quarto, conferindo cada objeto, cada espaço antes de me levantar para buscar o celular e avisar a Gabriela onde estou, quer dizer, depois de descobrir aonde vim parar, quer dizer, depois de descobrir onde minha calça jeans está repousando com o meu telefone…

Abaixo do interruptor, atrás da porta do quarto, está uma cômoda cheia de gavetas, recoberta de papeis com um tampo de fecho inerte na parte superior, o que provavelmente deva servir de escrivaninha quando aberto; ao lado, um tanto afastado, um guarda roupa de madeira branca, embutido, com duas portas e uma sapateira lateral, com prateleiras do mesmo material e cor, que vão de cima a baixo; no lado oposto, à esquerda, uma janela comprida e alta, vinda do teto e chegando provavelmente até à cintura, tem como companhia uma cortina blecaute cor de creme, devidamente fechada.

Não há nenhum móvel além do necessário dentro desse quarto, assim como os poucos que vi quando entrei nesse apartamento; nada parece estar fora do lugar, tão somente uma invejável organização, um tanto fria até, premeditada, mas também não é de se admirar, já que Thiago, segundo ele, apenas visita os pais, aqui, no Rio, esporadicamente…

Por que não nos cruzamos antes, já que ele vem sempre ao Rio?…

Reflito, enchendo os pulmões de ar.

E agora o destino o fez cruzar o meu caminho quando estou prestes a ir embora… Não importa. Se Thiago realmente for minha alma gêmea iremos nos reencontrar, até porque ele vive em Minas… Pelo menos foi o que ele disse… 

Constato um tanto claudicante.

A aliança…

Imediatamente corro meus olhos até alcançar a visão da mão direita de Thiago, repousada sobre sua barriga, com o anel adornando o seu dedo anular…

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Será que ele mantém esse relacionamento com outra garota? E o tal carinha que o estava acompanhando na praia? É claro que é uma garota… Mas se for, por que ele a trai? E com alguém do mesmo sexo? Diversão? Curiosidade? Ou temor por expor sua verdadeira natureza? Talvez seja por causa dos pais, é isso… Mas e se não for? Se ele realmente se compraz com essa vida dupla, como tantos outros por aí…

Os pensamentos circulam em minha mente numa velocidade vertiginosa, investindo contra mim, mergulhando e cravando garras dilacerantes…

Mas se ele está aqui, se ele busca por essa válvula de escape, significa que não ama a noiva, ou quem quer que seja a pessoa que detém o par dessa aliança…

Fixo o meu olhar num espaço qualquer e por um tempo busco remoer a lembrança da hesitação de Thiago, de suas meias palavras ao falar de sua vida, do seu total desprezo à referencia daquele anel, deixando claro que não queria, ou que não devia, falar sobre o assunto…

Merda. Não sei por que estou me importando. Provavelmente devo ser mais uma conquista, mais um lanchinho…  Thiago não seria o primeiro cara a fazer isso sobre a face da terra, se escondendo atrás de convenções, abrindo mão da própria felicidade para satisfazer essa sociedade hipócrita em que vivemos…

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Balanço a cabeça, passando de leve os dedos da mão esquerda sobre a testa a fim de afastar essa pretensão descabida e esse pensamento leviano que estou depositando em cima de Thiago ao passo que volto a mirá-lo, encontrando-o envolto numa respiração calma, silenciosa, completamente imperturbável.

Ele é lindo!

Desço os olhos e me deparo com o músculo dos seus braços, discretamente torneados, como se cada um deles não fosse mais do que o resultado de um esforço cotidiano…

Descruzo os braços de sobre os meus joelhos e sem pressa me inclino para o lado, o suficiente para alcançar a testa de Thiago e beijá-la, de leve… O odor da bebida exalando de sua boca semiaberta alcança rapidamente minhas narinas, mas por incrível que possa parecer, nesses segundos, aqui, com meus lábios grudados à sua pele, consigo identificar um cheiro meio de flor, meio de fruta… Uma fragrância única e que ninguém no mundo conseguirá jamais confeccionar…

Volto à minha posição, apoiando as costas à cabeceira da cama, mas sem deixar de fixar meus olhos em Thiago: ele parece saído de uma pintura renascentista com esses seus lábios semicerrados, como se estivessem guardando o segredo da criação…

Estreito os olhos buscando registrar cada linha, cada canto de seu semblante, não deixando escapar nada, nenhum espaço de sua pele, nenhum poro… Preciso ter essa imagem gravada diante da iminente certeza de sua ausência, que vem gritando dentro de mim desde o momento em que sua mão pousou sobre a minha, na mesa do quiosque, com o seu dedo anular envolvido por uma aliança…

Sinto meus músculos retesarem, todos, da cabeça aos pés, e então jogo as pernas para fora da cama e salto para o chão, indignado ante o tumulto que só faz crescer mais e mais no meu coração, me encurralando como se eu fosse um criminoso e tivesse que decidir, aqui e agora, o que devo confessar para me ver livre de um crime cometido…

Corro os olhos pelo chão tentando encontrar minha calça jeans entre as peças de roupas espalhadas. Preciso espairecer minha mente, esvaziá-la de todo esse martírio. Agora, mais que nunca, devo ligar para Gabriela, pois vou ouvir as palavras certas e necessárias para voltar à realidade…

Enquanto atravesso o curto espaço da cama até o canto do quarto onde meu jeans está jogado, olho de soslaio para Thiago deitado e inevitavelmente sinto-me envolto pelo prazer, por uma percepção transcendental, mas também por algo semelhante à culpa e então me volto por completo e paro diante de sua imagem inerte, estudando-a sob uma cólera e apreensão crescentes…

Como alguém consegue satisfazer-se praticando sexo a varejo? Pelo Criador, será que algum outro adolescente gay ou qualquer outro ser humano com sangue correndo nas veias, também enfrenta tudo isso e consegue sobreviver, seguir os seus dias como se nada fossem? Será que realmente não fica um resquício de saudade, de querer tentar algo após uma noite de sexo? Não são atingidos por uma confusão de sentimentos, por um suplicio que mais parece uma bomba prestes a explodir dentro do peito?

Será que nunca tiveram a sensação de ter encontrado a pessoa certa? E se por acaso esbarraram com essa certeza, simplesmente a enterraram e continuaram suas vidas como se nada fossem?

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Irritado, dou as costas para a cama e me volto para a direção da minha calça, arrebatando-a do chão e também à minha cueca, que trato de vestir ao passo que resgato o celular do bolso para em seguida devolver o jeans ao mesmo lugar e já caminhando para a porta, entre passos largos e soturnos, abrindo-a com todo cuidado possível até conseguir atravessar o seu batente e fechá-la atrás de mim.

Cruzo o curto corredor, que só não está sob uma escuridão total graças ao pequeno abajur disparando sua luz difusa até a sala de estar, o suficiente para que eu identifique o sofá sem braço, onde trato de me jogar, sentando-me e cruzando as pernas enquanto o GPS do celular me informa onde estou: Av. Bartolomeu Mitre, Leblon.

– Pelo amor de Deus, onde você está? Precisei mentir para a sua mãe, dizendo que você tinha bebido além da conta e ficado na casa do Rômulo, quando ela me ligou preocupada por não conseguir falar contigo… Aliás, não só ela – ouço a voz de Gabriela, impaciente e rígida, do outro lado da linha depois de certo tempo. Não me parece sonolenta ou atordoada, apesar de já ser quatro da manhã.

Agradeço-a pela ajuda, pois só assim não vou ouvir um sermão de dona Lúcia, pelo menos não um sermão por não ter voltado pra casa sem avisar, e então explico, ou pelo menos tento explicar, fazendo um esforço hercúleo a fim de restringir o júbilo que tende a transbordar de cada uma das minhas palavras, o reencontro com Thiago, como nossas almas se conectaram até chegarmos ao ápice de nossa libido, colocando em prática a inevitável energia transformadora dos nossos desejos…

.– Não se pode amar, ou pensar que ama aquilo que não se conhece meu amigo.

Usando essa frase de efeito, Gabriela começa a desbastar qualquer possibilidade de eu seguir adiante com o meu castelo de paredes caiadas pela fascinação arrebatadora, sem limites para delimitar a realidade evidente gravitando no meu entorno, como acontece a todas as paixões que derrubam sobre suas vítimas a perturbação onírica, lancinante e covarde.

Ouço cada reprimenda em total silêncio, tendo plena consciência do que eu já sabia (e necessitava), mas ainda sim resisto, persisto em assimilar toda a essência amarga do fel de suas palavras…

– Não se esqueça de que você está indo embora amanhã, Lucas.

– Ele mora em Minas, acredita?

– Do que você está falando?

– O Thiago me disse que mora em Minas… Não disse exatamente aonde, mas…

O som mudo do outro lado da linha não me deixa terminar. Volto a teclar o número de Gabriela, mas ela desligou o seu aparelho…

Pouco me importa. Minha amiga está com inveja por eu ser um afortunado, por estar conhecendo, em tão tenra idade, o furacão de inúmeros sentimentos e incontáveis desejos que poucos que passam pela vida, por suas miseráveis vidas, sequer conseguem usufruir.

Levanto do sofá, empertigado.

Não tenho culpa se ela não teve a competência de ao menos arranjar um ficante que fosse, concluo, dando de ombros e caminhando de volta para o quarto de Thiago.

***

Sinto a fina coberta que está sobre o meu corpo sendo puxada, uma, duas vezes, até que decido puxá-la de volta. Parece a dona Lúcia me acordando para ir ao colégio ou qualquer outro compromisso…

Me deixa dormir mais um pouco por favor, peço num estado misto tanto de sono como de vigília.

– Acorda Lucas.

Uma voz firme, inflexível, determina.

Só mais um pouco, tento barganhar, virando-me para o lado, mas a violência com que a coberta é retirada de cima de mim, obriga-me a despertar.

Abro e fecho os olhos, um tanto confuso e então volto a me deitar, pois a cabeça parece estar mais inchada do que antes e dessa vez acompanhada de um leve mal estar estomacal.

– Lucas, eu não sou sua mãe pra ficar aqui implorando para que você levante da merda dessa cama…

A voz de Thiago. É ela que está retumbando dentro da minha cabeça, mas porque cargas d’água ele está sendo tão ríspido?

Apoiando os cotovelos sobre a cama, abro os olhos e levanto os ombros e a cabeça bem devagar, num só movimento; em seguida faço uma busca rápida no meu entorno: a cômoda cheia de papéis, o guarda roupa, a sapateira ao seu lado… Estou no mesmo quarto, menos mal.

Não demoro a vislumbrar o canto onde está a janela, agora com a cortina blecaute aberta o suficiente para deixar a claridade da luz do sol entrar, mesmo que em filetes…

Amanheceu… Mas onde está o Thiago?

Mal termino de me questionar, o vejo atravessando o batente da porta, entrando no quarto e vindo à minha direção; seus olhos estão pálidos, emoldurando um semblante carregado de intransigência.      

– Acabei de chamar um Uber. Ele vai estar aqui em quinze minutos… – Thiago comunica com um ar de dignidade e orgulho e uma respiração sem qualquer sinal de alteração – Portanto acho melhor você se apressar – termina jogando minhas roupas sobre a cama, aos meus pés, para em seguida caminhar até a janela, onde estaca de costas para mim.

Enquanto me visto o meço de cima a baixo. Está usando um roupão preto, devidamente amarrado à cintura e que desce até a altura dos seus calcanhares,. Está elegante, claro, não poderia estar diferente… Mas o que houve? Por que estou sendo tratado dessa forma?

Deixo os ombros caírem e me sinto ridículo diante da minha ingenuidade sem tamanho…

Mas é claro. O dia seguinte. O desprezo. A urgência em despachar o parceiro indesejado…

Não me dou por vencido. Quero ver Thiago me encarar. Quero vê-lo me descartar como um homem e não como um moleque…

– O que houve? – lanço minha pergunta tentando ocultar um resquício de indecisão.

– Como o que houve? Está na hora de você ir embora, não?

– Pensei que…

– O que você pensou Lucas? – ele se vira lentamente; sua fisionomia trás uma aspereza perturbável – Pensou que eu iria te convidar para tomarmos um café da manhã nababesco, que iríamos conversar e fazer planos para o futuro?…

Sinto meu coração se contrair de decepção. Thiago não precisa ser rude dessa forma.

Respiro fundo. Ele vai ter que me fazer acreditar que esse Thiago que está parado à minha frente é o verdadeiro, não aquele que conheci na praia e depois reencontrei no quiosque…

– Nem sequer nos apresentamos… – começo a argumentar, mas a expressão dura em seu rosto abafa minhas palavras,

– E para quê? – Thiago ergue as sobrancelhas – Já não sabemos os nossos nomes? Você ouviu meu irmão me chamando lá, na praia, e eu vi sua identidade, então…

Irmão? Ele está me dando uma satisfação, é claro. O tal carinha que o estava acompanhando não é seu namorado, ou amante, ou ficante… 

– O banheiro fica depois da cozinha – Thiago informa, voltando a se virar para a janela – Se quiser esperar o Uber na portaria do prédio…

Essas últimas palavras me enchem de vergonha. Quem ele acha que eu sou para me tratar desse jeito?

Termino de amarrar os cadarços do meu tênis e me levanto, indignado, erguendo a cabeça na sua direção, colocando as mãos na cintura, apertando-as com tanta força que sinto a pele, os músculos e os ossos sob meus dedos doerem.

– Qual o seu problema? Por que está me tratando desse jeito? O que eu fiz de errado? É só me pedir, com educação, para ir embora que eu vou… 

Thiago se vira de modo tão repentino que seus olhos encontram-se com os meus com tal intensidade que acabo levando uma das mãos à garganta.

Um silêncio inconveniente toma conta do quarto por um instante interminável enquanto sinto todos os sons e odores irrelevantes se ampliarem e o batimento do meu coração atingir o ritmo do toque de um tambor.

– Você não fez nada de errado – começa ele rapidamente, as palavras tropeçando umas nas outras – eu quem não deveria ter tentado te conhecer, insistido, mesmo sob os diversos avisos do meu irmão.

Tentando me conhecer? Do que ele está falando? Será que tem algo a ver com o que ele disse sobre eu ser mais bonito pessoalmente?

Meu cérebro está cansado e move-se com lentidão.

– Mas eu fui teimoso… – suas palavras continuam a serem desencadeadas em um corrente – Quis pagar pra ver. Quis ter a certeza de que eu estava curado, que eu conseguiria resistir sem esmorecer, sem me deixar levar. Idiota. Eu fui um completo idiota e pior, vou ter que conviver com isso, como se já não bastasse a culpa que carrego pelos meses que passei naquela clínica, pelo desgosto que causei aos meus pais, ao meu irmão, à minha família… Mas agora não vai ser assim, eu não vou deixar que ela também sofra por causa da minha fraqueza… Ela não merece isso…

– Ela quem? A sua família? – ouso perguntar quase entre sussurros.

O olhar de Thiago se distancia por uns instantes, mas rapidamente volta a me encarar.

– Nós vamos voltar a nos encontrar, Lucas – seu tom de voz está mortalmente calmo – Não tenha dúvidas disso, e quando acontecer, e não está longe de acontecer, pelo que é mais sagrado, me prometa que não vai comentar tudo isso que aconteceu, o encontro na praia, no quiosque – ele me fita sustentando um olhar inabalável – O que houve dentro desse maldito apartamento. Quero que você esqueça tudo isso, ouviu bem?

Thiago dá um passo em minha direção e eu, claro, recuo, tentando me manter o mais longe possível.

– Você não está dizendo coisa com coisa – lhe devolvo – Que história é essa de que quis me conhecer dando a entender que foi tudo premeditado…

– E foi! – ele dispara num só fôlego. Sua voz parece uma ferida aberta que lhe dói por dentro.

Por um tempo que me parece infinito, permaneço completamente imóvel, forçando o meu cérebro a lembrar de cada instante, cada minuto passado naquele calçadão, cada palavra dita por Thiago quando nos conhecemos e não encontro vestígios de qualquer ação premeditada; em nenhum momento visualizei em seu rosto qualquer sinal que não fosse genuíno, verdadeiro, honesto…

Um cansaço avassalador toma conta de mim fazendo com que meus músculos pareçam tão doloridos quanto um prisioneiro depois de uma sessão de tortura. O ar à minha volta parece água e meu cérebro e coração estão lutando contra essa corrente de confusão, assombro, desespero…

O som do interfone tocando me traz de volta à realidade, assustando-me, assim como a Thiago.

– Me prometa que vai esquecer tudo isso?

– Eu… Eu não sei o que houve, de verdade, Thiago… Eu não sei por que você está me dizendo tudo isso, me pedindo…

– Nós vamos nos reencontrar, eu já te disse…

– Como? Quando? Lá, no quiosque, você mesmo fez questão de evitar falar de sua vida, e eu entendo, afinal de contas você é noivo, e é óbvio que a sua companheira não sabe de nada disso…

Pouco me importa que minhas palavras o firam. Ele merece ser atingido por cada uma delas e interpretá-las da forma que bem desejar…

– É tão mais complexo do que você pode imaginar, Lucas… – lágrimas cintilam em seus olhos, mas também revolta passeiam por suas órbitas…

– Então me diz, anda.

Thiago se vira e olha pela janela outra vez. Seus ombros já não estão tão retos. Por um longo momento eu o aguardo, em silêncio, esperando que me diga o que precisa ser dito, mas o som do interfone voltando a se fazer presente e ele, Thiago, permanecendo na mesma posição, me fazem crer que realmente já é hora de ir embora.

Num gesto abrupto viro-me para a porta e a passos largos atravesso o seu umbral, sem olhar pra trás, com uma raiva impotente sufocando minha garganta, o meu coração…

Quando finalmente estou alcançando a entrada do apartamento, depois de atravessar o curto corredor e os outros cômodos integrados, sinto mãos tocarem os meus ombros, me forçando, com certa violência, a me virar para trás.

– Espera.

Ao me voltar encontro Thiago olhando-me com um desejo frustrado; nas curvas de seus olhos uma expressão de classe e dignidade persistindo por seu corpo esbelto e ereto.

– Pela última vez, o que está acontecendo? Por que você afirma com tanta convicção que vamos nos encontrar de novo? Como eu te disse, estou me mudando para o interior de Minas Gerais, para uma cidade chamada Laranjeiras e você não fez qualquer menção de que estaria próximo a ela…

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Em um instante Thiago me envolve em seus braços, pressionando sua cabeça contra o meu coração, sussurrando:

– Me perdoe! Por favor, me perdoe.

Ao ser tocado por ele minha pele sente a mudança que se processa proveniente desse abraço, a impetuosidade, a magia… De repente me vejo de volta àquele calçadão, sendo abordado por Thiago com sua paciência diante da minha arrogância, da minha indolência; seu cavalheirismo diante do meu arrebatamento…

Thiago me abraça mais forte e então sinto nossos corpos derreterem por um momento atemporal, unidos até que seus lábios se apoderam dos meus, famintos, como se não pudesse encontrar satisfação.

No instante seguinte ele me solta, de súbito, dando um passo para trás, me fazendo cair de costas sobre a porta fechada atrás de mim. Nossos olhos se cruzam. Os meus, obviamente, suplicantes, mas os dele, agora, distantes como lagos sob céus sombrios.

– Nós iremos nos reencontrar em Laranjeiras, Lucas – ele avisa, sem qualquer mudança no tom plácido de sua voz.

– Oi?

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Thiago, com gotas de suor na testa, ergue a mão direita e me mostra o dedo anular, girando a aliança que ele retém enquanto me encara sob um olhar atordoado, porém direto e penetrante.

– Eu e sua prima Beatriz somos noivos.

 

 

6 thoughts on “Depois de tudo – capítulo 11 : Um jogo perverso

  • Honestamente fiquei comovido, suas palavras Francisco comove nossos sentimentos, esta mistura de emoções e ações por parte dos protagonistas, é como se eu estivesse vivendo os dramas de Lucas e as incertezas perante a sexualidade de Thiago, suas palavras são tão ricas descreve com todo carinho o que de fato Lucas sente a fundo, cada movimento cada gestos viajo aqui… E este ultimo gancho foi pra acabar, com o perdão da palavra me rendeu 7 baldes de lágrimas!!! :,(

    • Wilson, não poderia esperar nada menos que suas palavras transbordando sensibilidade neste comentário. Uma pessoa que lida o tempo todo com emoções, e das mais variadas, como você, casando com maestria as histórias do site com canções que só fazem enriquecer o universo de cada uma delas, é a alma de um verdadeiro artista e, claro, enxerga o mundo ao redor com os olhos de quem tem e exprime, sem sombras de dúvidas, esse sentimento, esse dom.

      Agradeço sua gentileza para com o Lucas, a empatia com os sentimentos confusos que ele carrega, ou se permite carregar, afinal, não se pode exigir muito de um adolescente, a vida não dá saltos não e mesmo? E também sua compreensão para com o Thiago, sua ausência de julgamentos diante do “poço” de dúvidas e conflitos que ele está enfrentando devido a própria sexualidade…

      Enfim, muito obrigado por sua disponibilidade e espero que curta o último episódio.

      Grande abraço.

    • Imagina Failon. Eu agradeço de coração a sua disponibilidade e fico muito feliz por estar gostando da narrativa (e desventuras) do nosso querido Lucas.

      Pena que tá chegando ao fim a primeira temporada… 🙁 🙂

      Grande abraço

  • E Francisco segue surpreendendo a cada capítulo! É o décimo primeiro “forninho quebrado” – apropriando-me de uma frase da internet. É porque é um por capítulo e nesses foram dois! Brincadeiras à parte, preciso consultar um dicionário para adjetivar mais uma vez o que você faz a cada parágrafo desta história encantadora. Francisco, pelo criador – apropriando-me do bordão do Lucas, só faltam dois capítulos pra esta temporada e não sei como lidar.
    Depois daquele post que você falou sobre a inspiração desta história, olho com muito mais carinho para cada cena, situação, diálogos e cada vez mais percebo a sensibilidade da sua escrita.
    Abraços e espero além de umas próximas 20 temporadas de Depois de Tudo, apreciar outros textos seus.

    • Dominus, certamente um “muito obrigado” direcionado às suas sempre elegantes, incentivadoras e sábias palavras é insuficiente para demonstrar minha gratidão. Fico muito feliz pelo carinho que você (e os demais leitores) dispensam para essa série, que me proporciona grande prazer em escrevê-la, mas também um certo suplício, pois lidar com sentimentos (mesmo que estejam no passado) de uma pessoa ainda viva, além de tentar colocar em cada linha a efusão de sensações que um adolescente atravessa proveniente de sua imaturidade emocional, sem tornar isso caricato, depreciativo, me imputa uma responsabilidade, a meu ver, claro, de ser ainda mais imparcial do que um autor geralmente precisa e deve ser. (eu mesmo me vejo confuso muita das vezes ao tentar organizar essa “colcha de retalhos”).

      A propósito, adorei a expressão “forninho quebrado”… kkkkk… E nesse penúltimo capítulo então, ela caiu como uma luva. Tadinho do Lucas 🙁

      Mais uma vez obrigado e um grande abraço.

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