Depois da Morte – Especial de Natal
!Acordei de supetão. Estava dentro de um ônibus. Olhei no meu relógio de pulso, já passara da meia-noite. Olhei assustada pela janela. Onde eu estava? Eu iria perder a ceia. O Cobrador disse que aquele era o último veículo aquela noite. Dei sinal e desci numa rua deserta. Quando ele sumiu no horizonte, percebi que havia não pensado direito. Fazia frio. Chutei uma pedrinha que quicou até cair em um boieiro próximo. Escutei passos. Olhei para trás. Vi uma sombra se aproximando ofegante. Acelerei os passos. Ao longe ouvi uma senhora discutir com seu basset de longe. Resolvi pedir ajuda. Mas não consegui me guiar. Uma brisa limpou minha alma. Não havia um comércio aberto, exceto por aquele bar no fim da rua. Atravessei à calçada. Passei em frente, mas algo muito estranho aconteceu. Todos trajavam um longo capuz negro e estavam sem vestígio nenhum de rosto. Farfalhavam num tom macabro que arrepiava minha alma. Comecei a correr, até que um carro escuro me fechou numa esquina. Deles saíram homens robustos com cabeças de porco. Agarraram-me pelos cabelos. Quando percebi estava sendo dopada. Apagou tudo.
Abri os olhos. Estava sufocada. Presa numa câmara de gás. Esmurrei desesperado o teto. Implorei por socorro, mas parecia que ninguém escutava. Até que escutei um barulho. Alguém abria e me puxava pelos pés. Mas não dava para ver quem era. Uma luz forte, branca, tomou meu corpo. Senti um cheiro esquisito. Um perfume diferente. Não deu tempo para ver quem era, logo fui cega por aquela intensidade e…
Eu estava voando? Que jardim era aquele? Começou a chover, mas por que eu não sentia nem um pouco molhada. Deu-me medo. Desejei ir para a casa. Onde estavam meus pais? Avistei um automóvel deslizando por entre as nuvens torrenciais, mas quando chegou mais perto. Percebi que eram patos de línguas. Falavam francês. Mas eu não sabia. Não podia pedir informações. Uma mulher apareceu com uma lua aos seus pés. Sorrindo. Não entendi o que significa aquele sinal. Mas senti algo estranho no meu peito. Ela era familiar e eu amava tanto, mas não entendia o por quê, já que nunca vi ela na minha vida.
Ela me chamou com um gesto nas mãos. Eu pensei para analisar a situação, mas quando percebi estava sendo levada pelo vento até ela. Ela desapareceu dentro de uma nuvem cinzenta. Aquilo que estava me sugando também. Senti uma vontade vomitar, um cheiro de podridão. Quando percebi atravessei as paredes espinhosas daquela nuvem e fiquei novamente no breu. As paredes inteiras lembravam um lugar que já estive quando pequena. Mas o que era? Havia rachaduras enormes e algo pingava no fundo de um corredor estreito. Olhei de relance e abri aquela porta velha de madeira que rangeu e quase caiu sobre mim. Os cupins já haviam devorado boa parte de sua haste. Entrei naquela passagem. Um cheiro de decomposição aumentava. Uma aranha peluda passou rapidamente para um buraco inferior, próximo a um rato morto. As paredes estavam encharcadas. Parecia que havia algum vazamento. Olhei para o teto e pela fresta de luz que entrava em uma janela redonda a um canto, pude perceber que o teto descamava quando mulheres em menstruação. Senti uma pontada no útero. Aquilo de certa forma fazia parte de mim.
Meu tênis grudou num chiclete estranho que parecia bailar sobre a sola do meu pé. Cruzei a única porta que havia ali e uma velha escada de madeira apareceu. Dei o primeiro passo e meus pés ficaram presos no degrau que se quebrou. Foi horrível a sensação. Aquilo apertava como uma planta carnívora uma mosca suculenta. Quando consegui puxar, ouvi um canto diferente. Parecia uma moça. Quando terminei de subir, percebi um retrato daquela mulher que vira momentos antes e me deu uma vontade de chorar. Uma barata já tinha conseguido me assustar quando abri a porta de um quarto iluminado guiada por aquele canto melancólico. Uma lareira estava acesa e pude observar numa penteadeira em um lado de um canto, uma mulher cantando de costa enquanto penteava o cabelo.
Engoli seco. Não a conhecia, mas sentia algo tão seguro dentro de mim, me pareceu que ela era confiável. Respirei fundo e continuei. Mas foi então que bruscamente uma gaveta daquela cômoda abriu e um gravador caiu quebrando no chão, cessando aquela voz. A mulher virou de repente. Tomei um susto terrível. Estava paralisada e roxa com a boca aberta. Era minha mãe. Soltei um grito de desespero e andando para trás cai em um buraco escuro que não parecia terminar nunca. De cima era possível ver um vulto me olhando, sumindo conforme a queda. Era uma velha com cabelos espanados com uma parte destes faltando, suas pupilas se dilatavam e ela ria silenciosamente.
Cai em uma folha gigante. Estava molhada, mas a água era gelada. Levantei-me de repente. Uma neblina chegou ao meu rosto. Onde estava agora? Quando aquela viagem estranha iria acabar? Percebi que havia túmulos e jazidas ali. Certamente estava num cemitério. Mas por quê? Ela avistou de longe, seu pai colocava flores sobre um muro. Aproximei-me feliz da vida. Havia enfim encontrado alguém que me poderia… NÃO! Sufoquei com o que li ali. O nome da minha mãe, do meu irmão caçula e MARIA ELISABETH CORRÊA. O meu estava ali. Não, ela não podia ter morrido. Aquilo não podia ser verdade. Um veneno tomou-me as veias. Corria-me por dentro. Eu sentia a dor da morte, que meu pai experimentara naquele momento. Meus cabelos estranhamente entraram na minha boca e comecei a tossir. Estava engasgada. Fui levitada e comecei a girar, tentei de todas as maneiras tirá-lo da garganta, mas foi em vão, ele entrava cada vez mais e a velocidade aumentava bruscamente. Até que …
Acordei, estava deitada no asfalto, com meu corpo dentro. Era uma tarde tão linda. Meu corpo estava sangrando. Meu vestido ensopado. Olhei para os lados não avistei ninguém. Chorei desesperada ao perceber que o carro do meu pai estava em pedaços. Foi então que me recordei da viagem com a mamãe e meu irmão. Estávamos todos felizes. Desesperada, o suor do cansaço e o choro limparam aos poucos o sangue do meu rosto. No final da rua, observei minha mãe com meu irmão no colo. Ela me olhava tão triste e pondo ele no chão, abriu os braços para mim. Eu corri até ela e abracei. Foi o abraço mais aconchegante que já presenciei. Meu irmãozinho puxou minha roupa e eu o levantei no colo, dei as mãos a minha mãe e juntos, olhamos para trás. Avistamos meu pai chegar, ele estava péssimo. Resolvi voltar, mas minha mãe me puxou. Olhou-me profundamente. Não dava para voltar. O Tempo é almejando o futuro. Passado fica na história. Foi difícil, mas me virei. Meus cabelos esvoaçaram com o vento. Olhamos para frente e nos dirigimos à eternidade. Assim como aquele pôr-do-sol se punha, assim como aquele dia ficava para trás. Eles agora superaram a cronologia, superaram as questões terrenas, pertenciam a outro plano. Sumiram no infinito. O choro de aquele ser era terrível embebia as mãos com suas lágrimas, a morte era…