Contratempo de amar – Capítulo II
Sigo caminhando até meu apartamento com minha mente fervilhando com tantas lembranças que eu não queria que estivessem ali.
São Paulo, Brasil – 2003.
– Isabel, você tem certeza que não quer levar nada? – a assistente social me pergunta mais uma vez.
– Não. Eu não preciso lembrar de nada daqui. – digo enquanto olho uma última vez para a casa onde vivi desde criança.
– E não vai se despedir dos seus vizinhos?
O olhar de julgamento no rosto das pessoas à porta de suas casas era como uma lança penetrando minha pele. Nenhuma daquelas pessoas nunca nos ajudaram em nada. Nunca perguntaram como estávamos. Eles não eram vizinhos, eram abutres. Apenas espreitavam a vida de uma mãe solteira e sua filha adolescente.
– Não tenho ninguém pra me despedir aqui. – enxugo uma lágrima que teima em escapar.
– Então vamos, querida. A casa de amparo que você vai ficar é muito tranquila. Você vai conseguir pensar bem no que vai querer fazer a partir de agora.
– Eu quero ir embora da cidade, já disse. – a encaro, séria.
– Eu entendo. – a moça com olhos gentis sorri com pesar pra mim – Vamos procurar um bom colégio pra você terminar o segundo grau, e então você pode escolher pra onde quer ir, tudo bem?
Era estranho ter toda aquela atenção. E ainda mais estranho saber que minha mãe possuía um seguro de vida tão bom que permitiria que eu morasse onde eu quisesse. Mas não estou em situação de questionar nada, não por agora.
– Você ia embora sem se despedir de mim, Bel? – uma voz familiar ecoa atrás de mim, e eu estremeço.
– Nossa, chegou cedo. – Catarina diz sem tirar os olhos da TV – Quem diria, pensei que partir o coração de alguém demorasse mais um pouquinho…
– Agora não, Catarina. – enxugo meus olhos ainda úmidos.
– Bel… – desliga a TV e se dirige à mim – Bel… Por Deus, até quando você vai se torturar desse jeito? – me abraça.
– Vai passar… – soluço, caindo em prantos – Sempre passa, não é?
– Vai passar, minha amiga… Vai passar. – afaga meus cabelos, suspirando.
As horas passam mas continuo sentindo um enorme peso sobre meus ombros. Já havia terminado outros relacionamentos antes, mas nenhum tão sério como o com Frederico. Queria que ele não tivesse pensado em casamento. Que não me fizesse acordar da ilusão que estava vivendo. Nunca havia me sentido tão mal por me afastar de alguém, a não ser quando adolescente. Mas era uma criança, não sabia o que era a vida ou o que eram sentimentos reais. Não é verdade?
São Paulo, Brasil – 2003.
– Você ia embora sem se despedir de mim, Bel?
– Diego? Você devia estar no colégio. – digo, tentando soar o mais indiferente possível.
– Me responde, Isabel. Você ia mesmo embora sem me dizer nem um “tchau”? – Diego pergunta chateado.
– É melhor assim. – minha voz sai como um fio.
– Eu vou deixar vocês conversarem sozinhos, ok? – concordo silenciosamente com a moça gentil – Te espero no carro, Isabel. – a assistente social sai.
– Bel, eu sinto muito por tudo o que aconteceu com a sua mãe. Ela era como uma mãe pra mim também. – diz com a voz trêmula, contendo as lágrimas – Você não precisa ficar sozinha agora.
– Sim, eu preciso. – o afasto – Eu preciso seguir a minha vida, Diego.
– Eu faço parte da sua vida desde que você nasceu, Bel… – ele diz, visivelmente magoado.
– Mas não pode continuar nela agora! – grito, chorando – Eu preciso de espaço, Diego! Eu preciso ficar sozinha!
– E eu? Você precisa me deixar sozinho também? – quase não consigo ouvir suas palavras, mas elas me ferem de uma forma terrível.
– Você precisa me esquecer, Diego. – me surpreendo com a frieza em minha voz – Eu vou esquecer esse lugar.
– Eu entendi. – Diego enxuga as lágrimas e diz, seco – Espero que você consiga encontrar o que precisa. Boa sorte, Isabel. – sai com pressa.
– Bel? – Catarina bate na porta, abrindo – Está acordada?
– Estou sim. – me sento na cama – Entra.
– Eu queria te pedir desculpas por ontem. – senta ao meu lado – Eu não deveria te chatear com tantas acusações.
– Tudo bem, amiga. – a abraço – O dia ontem não foi fácil pra ninguém.
– Verdade. Mas então, o que vai acontecer agora? – pergunta, me encarando.
– Agora eu vou esperar sair o resultado do concurso e pensar nas minhas opções… – brinco com os dedos.
– Você vai mesmo embora, não é? – Catarina pergunta, triste.
– Provavelmente. – respondo, também triste – Tá vendo só? E você dizendo que eu não teria ninguém pra me fazer ficar mal por ir embora daqui. – brinco, na tentativa de aliviar o clima, mas é em vão.
– Ai, minha amiga… – me abraça forte – O que eu vou fazer aqui sem você, hein?
Após algumas semanas, recebi os resultados do meu concurso, onde obtive uma colocação prestigiada. Algumas empresas já haviam entrado em contato comigo, mas nenhuma vaga boa era o suficiente para que valesse a pena deixar meu emprego na Alemanha.
– Eu não posso dizer que não estou gostando disso, sabe? – Catarina fala de boca cheia – Você pode acabar ficando mais um tempo por aqui, e assim vamos evitar o choro de despedida, e blá blá…
– Muitíssimo obrigada pelo apoio, amiga. – respondo, sarcasticamente.
– Se eu soubesse que você queria ir embora de verdade, talvez te apoiasse de fato… – a encaro, revirando os olhos – Mas não vou começar essa briga agora, ok ok, entendi. – meu celular toca.
– Hallo? – atendo.
– Senhorita Maria Isabel Ávila? – a voz de uma mulher, provavelmente mais velha, me pergunta do outro lado da linha, em português.
– Sim, é ela. – respondo.
– Senhorita Ávila, aqui é da assessoria da R.B. Enterprise.
– Oh, sim. – arregalo os olhos, instigando a curiosidade de Catarina – Em que posso ajudar?
A R.B. Enterprise é uma das maiores empresas de produção tecnológica da América. Com várias filiais por todo o mundo, inclusive na Alemanha. Trabalhar no setor jurídico desta empresa é o sonho de consumo de qualquer advogado que busca qualificações e crescimento na sua carreira. É considerada um trampolim no que se diz respeito a advogados construindo o seu nome.
– Recebemos uma indicação da senhorita através de um cliente muito especial, e ao analisar o seu currículo o interesse do nosso diretor foi mais aguçado.
– Nossa, muito obrigada, é um prazer ouvir isso! – agradeço, incrédula – Mas ainda não estou certa se estou entendendo o motivo do seu telefonema. E quem seria esse cliente?
– Ele solicitou sigilo em sua identidade. – estranho, mas não questiono – Nós gostaríamos de propor uma oferta de emprego na nossa filial, como membro do corpo de advogados da R.B. Enterprise. Seria de seu interesse?
– O que?! Uma vaga pra mim?! – soo mais empolgada do que deveria e Catarina comemora silenciosamente – Quero dizer… Sim! Seria do meu interesse sim! – tento me conter – Eu ficaria muito feliz em aceitar essa oferta! Eu posso começar amanhã mesmo! Eu moro a algumas quadras do edifício e…
– A senhorita se mudou para o Brasil?
– Brasil? O que? – pergunto, confusa – Não. Eu vivo na Alemanha.
– A proposta é para a filial que temos em São Paulo, senhorita Ávila.
– Ahn… Eu… São Paulo? – balbucio, atordoada – Eu entendo.
– Tornarei a ligar no fim do dia. Enviarei a proposta detalhadamente para o seu email e a senhorita poderá pensar com calma, ok? Passar bem. – desliga.
– São Paulo? Brasil? – Catarina sussurra.
– São Paulo. Brasil. – repito, com o olhar vago.
– Você disse que talvez precisasse se mudar, mas a gente nunca falou de você voltando pra sua cidade… – Catarina se senta ao meu lado – Você vai se sentir bem lá?
Chacoalho a cabeça, tentando afastar os seus pensamentos. A ideia de voltar não estava me fazendo bem, imagine então voltar de fato… Preciso me conter. Preciso manter a minha cabeça no lugar. É apenas um lugar. Uma cidade.
– Não tem motivo pra não me sentir bem lá, Catita. Não tenho ninguém que me conheça, nenhuma ligação, vai ser como um começo do zero.
– E aquele garoto que você vivia falando? O que você namorava antes de vir pra cá? – pergunta.
– Em primeiro lugar, ele não era meu namorado. Era um amigo. – a corrijo – O único que eu tinha, por isso que eu só falava dele. Em segundo lugar, o Diego já deve estar a quilômetros de distância de lá.
– Será? – Catarina lança a dúvida.
– Mesmo que não esteja, quais são as chances da gente se encontrar em uma capital tão grande? A gente não iria nem se reconhecer. – digo, divagando.
– Então, é isso? Você vai? – pergunta, me encarando, e devolvo o olhar.
Para mim, este momento estava fadado a acontecer, era só uma questão de tempo. Havia me preparado para ele. Não posso me deixar levar pelas emoções. Preciso manter a certeza de que estava fazendo o possível para cumprir aquilo que minha mãe tanto sonhou. Catarina é a minha melhor amiga, esteve comigo durante boa parte dos 8 anos que passei na Alemanha, mas não podia vacilar agora. Voltaria para o Brasil.