Capítulo 5 – A Santa e o Bruxo
MACHULLA – Ottone! Preciso falar com ele… Não! Ottone não! E agora?
Machulla deu a volta pela casa para ver se encontrava pelo menos uma pista. Havia. Um pedaço de tecido preso em um espinheiro. Parecia ser roupa de mulher.
MACHULLA – Uma muié! Pelos diabos, quem pode ser?
Machulla correu para dentro da casa e pegou uma espingarda. Percorreu a pé um raio de trezentos metros da sua casa, mas não encontrou ninguém. Na estrada, viu uns meninos caçando passarinhos.
MACHULLA – Oh, minino. Cês num viro uma muié correndo aqui com um baú não?
MENINOS(uníssino) – A bruxa!!! Mamãe(aos berros)
Saíram os dois correndo.
Corta para Jesuíno.
Maria e Jesuíno ficaram sozinhos na varanda da casa, enquanto dona Conceça auxiliava os escravos na arrumação da cozinha.
MARIA – E essa Jormungand, ela é bonita?
JESUÍNO – Jormungand é uma mulher fascinante. Seus cabelos louros parecem trigais no verão, e seus olhos são tão azuis e incomuns, que não há quem não se deixe hipnotizar por eles.
Maria se levantou, ressabiada. Ela sentiu ciúmes.
MARIA – E você sente alguma coisa por ela?
Jesuíno notou o tom de Maria.
JESUÍNO – Não! Por Deus, ela é uma mulher bonita, mas tudo que tenho por ela é apenas admiração, nada mais do que isso. Mas, por que a pergunta?
Maria se postou bem de frente para Jesuíno, e colocou seu dedo indicador nos lábios do rapaz, para que ele não falasse mais nada.
MARIA – Jesuíno, eu sempre tive inveja da minha irmã. Ela estava predestinada a ser uma santinha, uma mocinha de que todos adoram e admiram. Mas mais do que isso, ela estava predestinada a você. Mas eu, eu sempre te amei.
JESUÍNO – Maria, eu…
MARIA – Por favor, não diga nada. Eu prefiro manter o suspense, do que ter uma recusa vinda de você.
JESUÍNO – Eu… eu realmente não sei…
A conversa foi interrompida por Dona Conceça que chegou trazendo doces e café.
CONCEÇA – Olha o cafezinho.
JESUÍNO – Dona Conceça, infelizmente terei que declinar a sua hospitalidade. Porque tenho muitas pessoas ainda a visitar. Pretendo Ir à casa do intendente Vandervalter Gomes. Ele deve ter mais informações a me dar sobre o Bruxo.
Jesuíno se levantou e seguiu para a saída. Na cancela, um rapazinho já o esperava com o seu cavalo. Maria correu para ele e gritou:
MARIA – Jesuíno, espere!
Ela pulou para seus braços e o beijou.
MARIA – Posso fazer você muito feliz, se me deixar.
JESUÍNO – Eu…Podemos…
Desorientado, ele subiu em seu cavalo e saiu, sem olhar para trás.
Jesuíno galopeava pelas veredas, deixando os seus cabelos voarem pelo vento, e o chapéu saltar da sua cabeça, que teria voado não fosse pela pequena correia que o segurava. Ele adorava. O que ele não sabia é que estava sendo vigiado. De longe, do alto de um morro, Celson Canavieira avista sua vítima. Se Cipriano queria Jesuíno morto, ele ia ter, mas ele não sabe como isso ia proteger o tal segredo, ou trazê-lo à tona. Jesuíno estava na sua mira. Não havia como errar. Ma o destino era brincalhão. O cavalo de Jesuíno se assusta com uma jararaca bem no momento em que Celson Canavieira atira. Ao dar um pinote, o cavalo entrou na mira e foi alvejado. Jesuíno foi atirado longe e só viu o que aconteceu com o seu cavalo depois que o mesmo estava caído, ainda com os últimos sinais de vida. Nesse mesmo instante, ainda sentindo dores pela queda, sacou sua pistola e ficou a postos, esperando que alguém aparecesse.
JESUÍNO (aos gritos)– Cangaceiros! Apareçam se forem homens!
CARCARÁ – Vamo lá, Capitão. Ele tá chamano. Vamo dar cabo logo da vida do infeliz.
O bando desceu à toda do morro. Todos a cavalo, e todos com seus bacamartes e espingardas apontados para Jesuíno. Calson Canaveira desceu do seu cavalo e sacou sua “peixeira” afiada, passando a lâmina no pescoço de Jesuíno.
CELSON CANAVIEIRA – Tem gente poderosa aqui quereno a sua cabeça, num sab?
JESUÍNO – E quem seria?
CELSON CANAVIEIRA – vai adiantar alguma coisa fala, cabra?
CARCARÁ – Capitão, deixa eu matar o cabra…
CELSON CANAVIEIRA – Ocê fica quieto!
JESUÍNO – Você vai me matar?
CELSON CANAVEIRA – Mandaro eu matar ocê mesmo, num sabe? Mas tem umas coisa aí que tão me encasquetano. Uma coisa é esse tar de baú que o major Cipriano tá quereno.
JESUÍNO – Que baú?
CELSON CANAVIEIRA – Ocê num se faça de besta, que ocê deve saber melhor do que ninguém por que vosso pai ficou de mal do velho Malheiros, de tal maneira que os dois morreram inimigos.
JESUÍNO – Eu realmente ignoro o motivo. Eu não sei de que baú você se refere. Se vai me matar, faça logo.
CELSON CANAVEIRA – Amarra ele, Carcará. Tem uma grota ali na frente. Vamo levar ele pra lá e dar cabo logo dessa história.
Eles o amararam no meio do mato. Parte ressequida e parte queimada por algum incêndio. O sol muito forte, queimava a pele de Jesuíno, que mal podia deixar os olhos abertos.
CELSON CANAVIEIRA – Eu vou dar pra ocê uma chance que eu nunca dei pra ninguém, vince? Fala tudo que o ocê sabe sobre a inimizade do vosso pai com Malhero, e pode ser que poupe vossa vida.
JESUÍNO – Eu não sei de nada, diabos!
CELSON CANAVIEIRA – Pois isso é muito estranho ocê aparecer aqui bem no dia da morte da santinha e do bruxo.
Ao se referir à Santinha, todos eles tiraram seus chapéus em sinal de profundo respeito.
CELSON CANAVIEIRA – É de vera que tu ia casar com a Santinha, é?
JESUÍNO – Sim, éramos noivos…
CELSON CANAVIEIRA – Oxe! E num é sacrilégio profanar uma santa não?
JESUÍNO – Para começar, ela não era santa. Além do mais, não deve ser pior do que matar pessoas. E vocês fazem siso quase todos os dias.
CELSON CANAVEIRA – Ocê tem uma lingua mito da afiada pra quem tá preso. Ocê tem “cuião”. Ia ser um cangaceiro.
JESUÍNO – Eu sou um revolucionário. Não me uno a ladrões.
CELSON CANAVIEIRA – E ocê acha que o que faz é mió do que o que nos faz? Nós “fazemo” justiça por esse povo, defendendo eles de gente como ocê.
JESUÍNO – Já vi que a hipocrisia chegou ao sertão também. Muito bem, cangaceiro. Mire sua arma e atire logo.
Celson Canavieira mirou, e postou seu dedo no gatilho. O suor corria copiosamente em ambos. Jesuíno sentiu que aquele seria o seu fim. Que ironia: Ele que esteve preso na Alemanha e na Bastilha depois de se envolver com conspiradores contra o reino da França, agora se via às portas da morte pelas mãos de conspiradores contra o Império do Brasil.
CELSON CANAVIEIRA – Comece a rezar!
Corta para a Velha Machulla.
Machulla ainda estava apavorada por ter perdido o baú. Ottone Sanguinette a havia confiado, até que ele pudesse deixar totalmente a aldeia dos índios. E ela precisava falar com ele que a tinha perdido, mas estava sem coragem . Contudo, não havia outra alternativa, tinha que ir até a aldeia. Mais que depressa, arriou o seu burro e o atrelou à charrete, e embrenhou-se pela estrada poeirenta até a aldeia, que ficava a alguns quilômetros dali. No caminho, ela ia tentando inventar mil desculpas para tentar explicar como deixou que roubassem o baú. Ela estava apavorada, mais pelo que o baú representava do que pela possibilidade de ser repreendida por Ottone.
Casa de Marta Sanguinette
PADRE VITAL – Ó de casa!
MARTA – Ó, de fora!
PADRE VITAL – Como é que vão as coisas, dona Marta Sanguinette?
Marta Sanguinette ainda resistia à idéia de que um homem negro pudesse ser padre, principalmente numa sociedade escravagista. Na verdade, Vital do Espírito Santo nasceu escravo, mas foi liberto pelo seu senhor aos 11 anos depois de ter salvo o seu filho de uma situação de perigo. Agradecido, o seu senhor libertou não somente ele, mas a todos os membros da sua família. Entretanto, a pequena família liberta não soube o que fazer com a liberdade, pois não havia muitas opções para negros numa sociedade de predominância branca. Principalmente negros sem qualquer qualificação. Seus pais então pediram a um padre que tomasse conta do menino Vital, e eles sumiram no mundo. E conseguindo uma autorização especial da Igreja, o padre Amâncio conseguiu com que Vital do Espírito Santo estudasse no Seminário, muito embora encontrasse muito preconceito dos próprios colegas postulantes, e também dos professores. Ainda estavam numa época em que se discutia se o negro possuía ou não uma alma, e defendiam severamente, baseado na Bíblia, de que a escravidão era algo permitido por Deus, porque no Velho Testamento, em diversas passagens, se encontram instruções de como lidar com escravos.
Padre Vital foi mandado para a Barra do rio das Velhas justamente por ser um lugar afastado, e que provavelmente ele não encontraria tanta resistência. Ledo engano. Até mesmo as senhoras pias, como era dona Marta Sanguinette, cujo marido Ottone era dono de diversos escravos, ainda tinha certo desconforto em ter um padre como pároco. Mas enfim, ela tolerava.
MARTA – Padre Vital, a sua bênção.
Ela pediu a bênção sem sequer pegar direito na mão do padre.
PADRE VITAL – Deus lhe abençoe, minha filha. Estou aqui para falar com o seu marido, o senhor Ottone. Ele se encontra?
MARTA – Ottone está a viajare, e nem mesmo nós outros aqui em casa sabemos para onde. Ele anda muito misterioso ultimamente, desde que mandaram entregar uma traquitana aqui em casa.
O padre percebeu a rejeição de dona Marta, ao notar que nem mesmo água ela lhe ofereceu.
PADRE VITAL – Que traquitana?
MARTA – Antes de morrere, O Jesuíno Velho entregou para o Ottone uma caixa grande assim. Estava encoberta, e portanto não deu para vere o que estava dentro, ou sequer o que era. Mas depois disso, Ottone não teve paz, e fica somente a viajare. Já está a considerare inclusive retornar ao Rio de Janeiro, e deixare a fazenda para Marquinhos.
PADRE VITAL – A senhora não vai me oferecer um copo d’água?
MARTA – Claro, como não.
Marta chamou uma escrava de dentro, e mandou que servisse água, café e umas quitandas ao padre. Muito a contragosto. Depois de beber a água, o padre vital sequer encostou nas guloseimas.
PADRE VITAL – Me desculpe incomodar. Quando o senhor Sanguinette retornar de viagem, diga que preciso falar com ele, por gentileza.
MARTA – Farei, padre.
Quando o padre se afastou, ela disse consigo mesmo.
MARTA – Um padre negro… pois sim! Só pode ser o fim dos tempos mesmo.
Corta para Jesuíno.
Celson Canavieira ia puxar o gatilho, quando ouviu um barulho ensurdecedor, de gritos, vindo do meio do mato.
CELSON – Índios!
Os cangaceiros se colocaram a postos, mas os índios eram hábeis em se esconder mesmo na mata ressequida como estava. Uma lança veio de algures, atingindo um dos bandoleiros bem no pescoço, ao que caiu morto na hora. Isso deixou o resto do bando em pânico, pois os índios eram as únicas coisas que eles temiam, justamente pela capacidade que os mesmos tinham em se movimentar no mato sem serem vistos.
CARCARÁ – E agora, Capitão.
CELSON CANAVIEIRA – Vamo deixar o cabra aqui e vamo embora. Os índio dão conta dele.
Os cangaceiros fugiram, e os guerreiros Cariris se aproximaram de Jesuíno ainda amarrado em uma árvore. Dois índios o soltaram, e Jesuíno mal pode abrir a boca para agradecer quando sentiu uma forte pancada na nuca.
Ao acordar, ele estava amarrado no chão de uma oca indígena. Havia duas crianças e um macaco perto dele, e quando ele abriu os olhos, o pequeno curumim saiu correndo. De repente, entram dois vigorosos guerreiros, ainda pintados, e o arrastam para o meio da aldeia, onde uma multidão de índios o esperava. Ao ver Jesuíno, os índios iniciaram uma gritaria que era insuportável, dando voltas ao redor dele. Enfim, os dois guerreiros que arrastaram Jesuíno, o ajudaram a se levantar.
Um índio bem velho, talvez o Pajé se aproximou de Jesuíno e começou a falar. Mas Jesuíno não o entendia, pois ele não conhecia nenhum idioma indígena.
JESUÍNO – Eu não estou entendendo.
O índio insistia em contar uma história, gesticulando com tamanha propriedade, que parecia para ele que estava se fazendo entender.
JESUÍNO – Alguém aqui fala a minha língua? Eu não entendo… Por favor, alguém.
O pajé então mandou que desamarrassem Jesuíno. Ele foi levado a um local onde diversos índios preparavam uma aguardente feito com mandioca e fermentado com saliva. Era o Cauim. Havia uma cabaça cheia de Caium pronto, e o chefe da tribo encheu uma pequena cabacinha, oferecendo-o a Jesuíno.
JESUÍNO – Quer que eu beba isso!
OTTONE – Recusar é ofensa grave!
JESUÍNO – Tio Ottone! Mas o senhor não estava no Rio de Janeiro?
OTTONE – Não. Tem um mês que estou aqui na tribo. Mas tenho conhecimento de todos os acontecimentos lá na vila. Eu sinto muito por Santinha. Vocês dois formariam um belo casal.
JESUÍNO – Mas o que o senhor está fazendo aqui?
OTTONE – Me desculpe, Jesuíno, mas tem coisas que é melhor não saber.
JESUÍNO – Mas e eu? O que eu estou fazendo aqui?
OTTONE – Segundo me disse o guerreiro, você estava em perigo nas mãos dos cangaceiros, e qualquer inimigo dos cangaceiros, é amigo dos Cariris. Vamos, aceite a bebida.
Jesuíno não teve opção. Aceitou o cauim. E era bem mais forte que a cachaça que eles estavam acostumados.
OTTONE – Venha, que o Cacique está lhe oferecendo a sua hospitalidade.
O Cacique era jovem. Devia ter pouco mais de trinta anos. O Cacique fez sinal, pedindo que Jesuíno passasse aquele dia na tribo, e que só fosse embora no dia seguinte. Ferido como estava, não houve alternativa senão aceitar a oferta. Ao cair da tarde, os índios insistiram que ele se banhasse no rio. Tomar banho diariamente era um costume tipicamente indígena, absolvido pelos portugueses por causa do monte de mosquitos e carrapatos que tinham no Brasil. E o sol já estava se pondo, quando todos se reuniram na oca do Cacique. O cacique então começou a contar uma história que ia sendo traduzida por Ottone, que conhecia muito bem o idioma, que era uma corruptela do yathê, dos grupos indígenas que vieram do Pernambuco.
OTTONE – Ele está dizendo que houve uma época em que seres divinos vieram de lá(apontou para o Norte). Eles traziam algo que os grandes antepassados disseram ser uma caixa que continha os males do mundo. E houve então uma guerra entre os deuses pela posse da caixa. Esses deuses vieram em barcas subindo o rio. E o que trouxe a caixa chegou primeiro e viveu entre o seu povo, os ensinando muitas coisas sagradas. Mas aí chegaram outros, numa canoa muito grande, que continha bem na fronte a cara feia de um demônio. Esses outros queriam a caixa, e então eles começaram uma guerra com seus cajados que lançavam fogo. Muitos Cariris morreram, e esses deuses maus tomaram para si algumas donzelas da tribo, e após as violarem, as mataram. O deus que veio primeiro então pediu para o Pajé ancestral esconder a caixa e nunca permitir que ela seja aberta, e assim fez o Pajé. Junto com a caixa, o Pajé colocou faca grande do deus, para marcar o lugar. Mas o deus despojou-se do seu corpo e retornou para Tupã, grande deus da floresta, e a caixa contendo todos os males ficou em segurança, até que alguém a encontrou e a tirou de lá. A lenda fala que muita morte e muita destruição virá por causa dessa caixa dos deuses.
JESUÍNO – Isso tem a ver com o tal baú que os cangaceiros estão querendo?
OTTONE – Então eles sabem.
JESUÍNO – Parece que sim.
OTTONE – O que tem dentro da caixa não tem valor para eles. Alguém os deve estar pagando para recuperá-la.
JESUÍNO – Mas o que diabos tem dentro desse baú?
OTTONE – A desgraça!
Houve um silêncio que foi quebrado por uma voz familiar.
MACHULLA(gritando e esbaforida) – Seu Ottone! Seu Ottone! O baú foi roubado!
JESUÍNO – Então estava com o senhor…
Fim do capítulo 5