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A Sete Chaves

Capítulo 4 – A Sete Chaves

O jovem professor de História da USP Daniel Amorim acordava cedo para cumprir a dura jornada de seu dia. Já trabalhava na USP havia dois anos e ainda não tinha se acostumado com aquela rotina. Sempre acordava resmungando como uma criança preguiçosa querendo aproveitar mais alguns minutos na cama. O celular sempre lhe acordava ao som de Beatiful Day de U2, sua banda preferida. A verdade é que a musica escolhida lhe servia de uma espécie de mantra para convencer-lhe que o dia realmente seria bom. Como um zumbi se arrastou do quarto até o banheiro. Na frente do espelho assustou-se com a visão de todas as manhãs. Os cabelos ruivos desgrenhados, a barba por fazer e as entradas de calvície ameaçando fazer-lhe um completo careca em poucos anos. Os olhos castanhos claros herdados da mãe era seu charme, embora eles nunca tenham prendido ninguém por muito tempo. Estava solteiro e traumatizado com uma tentativa de matrimonio a algum tempo atrás. Morava só em um apartamento na zona norte de São Paulo. Essa era uma informação dispensável uma vez que a bagunça de seu apartamento falava por si só. Daniel já despontava nos seus trinta e dois anos, sua maior preocupação não era constituir família. Ele tinha um espirito jovial demais para isso e uma vaidade sufocante.

Após tomar um banho rápido e preparar uma caneca de café solúvel, seguiu para o computador que já o esperava ligado desde a noite anterior. Sentou-se na cadeira com desconforto. No dia anterior tinha cumprido a ultima sessão de uma tatuagem que fez no peito. Zeus imponente. Loucura da maturidade, como ele justificava. Abrindo sua caixa de e-mail a primeira mensagem tinha caráter urgente e sua remetente era um tanto inesperada. Hellen Lobato? O último e-mail que recebeu dessa remetente foi cobrando um livro de parasitologia que ela havia esquecido em seu apartamento. Os dois tiveram um namoro de três anos, culminando em um noivado, mas sabotado pela agenda que os dois tinham de cumprir diariamente. Os encontros se tornaram mais raros na semana, as ligações seguiram o mesmo ritmo. Quando se encontravam mais pareciam estranhos procurando assuntos para tentar salvar o relacionamento. Mas as tentativas foram em vão com as constantes brigas que tinham. No entanto, o fim da relação foi amigável. Só não se permitiram ter uma exímia amizade pelas agendas que ainda atrapalhavam os dois.

Assim que abriu o e-mail pode observar a foto de uma tatuagem. Era uma inscrição que ele logo reconheceu. Passou a mão no celular que estava ao lado do computador. Havia muito tempo que ele não procurava na agenda o número de Hellen. Logo que encontrou efetuou uma ligação, afinal queria saber o que ela pretendia com aquilo.

– Hellen?

– Sabe que sou eu Daniel. Recebeu meu e-mail? Apressou-se ela em perguntar.

– Sim eu recebi, mas não entendi nada. Porque me mandou aquela tatuagem?

– Queria que traduzisse a frase que estava em outra língua. Imaginei que você pudesse conhecer.

– Sim conheço. É grego.

– Grego? Repetiu surpresa.

Daniel aquiesceu. Hellen deu um pequeno soco no volante do carro. Impressionante! Mais um desenho que seguia a temática das outras tatuagens. Isso reforçava mais ainda a ideia da estranha presença da esfinge egípcia no corpo do rapaz. Sem hesitar perguntou:

– E o que quer dizer?

– Bom, dizer não diz muita coisa. São apenas números.

– Números?

– É uma sequencia numérica. Éna, éna, tría, tría, dyo, penté, eptá, okto, míden, tría e éna.

– Pode traduzir?

– Um, um , três, três, dois, cinco, sete, oito, zero, três, um. Perdoe-me minha intromissão Hellen mas o que isso quer dizer?

Como uma projeção os números se materializaram nos pensamentos de Hellen.

– Hellen – Disse Daniel – Pode me explicar o que quer com essa tradução?

– Daniel é difícil de explicar, mas essa tatuagem está no pé de um rapaz assassinado hoje na Praça da Sé eu imaginei que pudesse ser uma espécie de pista.

– Uma tatuagem?

– Eu só queria saber se a inscrição em baixo dela era algum tipo de tradução. Outra coisa Daniel, conhece ou já ouviu falar de algum filósofo ou pensador chamado Tertia?

Daniel não conseguiu prender o riso.

– Tertia? Nunca ouvi falar! E olha que de pensadores nessa história eu conheço bem…

Houve um silencio na linha. Nesse meio tempo Daniel sentiu coragem de questionar.

– Então me manda um e-mail pela manhã cedo para apenas traduzir uma frase no pé de um defunto e se informar a respeito de um pensador de nome esquisito? Conta outra Hellen…

Daniel e sua pretensão masculina imaginavam que na verdade Hellen estava usando um simples pretexto para entrar em contato e se aproveitou de uma tatuagem no pé de um morto para isso. Para ele um pretexto mais que desonesto.

– Você já foi mais honesta Hellen.

– Como assim Daniel?

– Eu não posso acreditar que só quer mesmo a tradução dessas palavras gregas.

– Acredite. E desde já agradeço imensamente ajuda. Se cuida! Desligou o telefonema.

O tom de sarcasmo de Hellen evidenciou que ela havia sacado as insinuações de Daniel. Por outro lado, ele desligou o celular com um sorriso vitorioso no rosto, pois realmente acreditava que Hellen o havia procurado com segundas intenções. Ele ainda esperava uma segunda chance com ela.

 

 

 

Hellen agora tinha nas mãos uma sequencia de números. E a imagem perdurava na sua mente:

11332578031

Uma senha? Número de algum documento? Além dos números a frase, que descobriu não ser uma tradução, levantou mais questionamentos ainda. Em um lapso uma ideia lhe ocorreu. A imagem dos números na mente se organizou da seguinte maneira:

11 33257-8031

Um número de telefone? Hellen repetiu para si o que pensou, tentando afastar com o bom senso a possibilidade dos números serem mesmo o telefone de alguém. Não havia alternativa senão tentar. Discou o número e levou o telefone ao ouvido. Chegou até a se achar ridícula por estar fazendo aquilo, mas sentia profundamente que deveria fazer. E para sua surpresa a ligação começou a chamar. Um estalo em seguida certificou que alguém atendera a chamada.

– Alô, quem fala? Uma doce voz de mulher do outro lado da linha se adiantou em falar.

Hellen prendeu a respiração sem saber o que dizer. Estava muito surpresa e confusa. Poderia ser uma grande coincidência ou a porta para decifrar o caso. Para tirar a dúvida soltou o ar e falou.

– Aqui quem fala é Hellen Lobato. Com quem eu falo?

– Sarah Régia em que posso ajudar?

Primeira de Abraão e única minha… Sarah! A primeira parte da frase abaixo da tatuagem fez um enorme sentido. Hellen não era uma mulher muito religiosa, mas sabia que Sara tinha sido a primeira esposa de Abraão segundo a narração bíblica. Agora estava claro para Hellen que tudo aquilo não passava de uma simples coincidência. A esfinge no punho aguçou seus sentidos propondo uma charada que induziu a outra charada, no pé do rapaz, e surpreendentemente levou-lhe a um numero de telefone do qual o nome da dona correspondia a charada abaixo dos números. Meu Deus, não é possível. Hellen estava muda na linha.

– Alô? Liga para mim esta hora da manhã para não falar nada?

– Desculpe-me – Disse Hellen atordoada – Não sei por onde começar. Só sei que a forma que cheguei ao seu número é surpreendente. Se não acreditar em mim vou entender. Preciso somente que me ouça!

– Estou fazendo isso não?

– Sou uma médica legista e perita policial, nossa equipe foi acionada hoje pela madrugada porque encontram um homem morto com dois tiros na Praça da Sé. Esse número de telefone estava codificado em uma tatuagem e faz clara referencia ao seu nome. Imagino que pode nos ajudar a desvendar o caso Sarah.

– Como assim? Do que você está falando? Isso é um trote não é?

– Não, não é. Poderei lhe explicar com mais clareza, mas estou no transito no momento. Diga-me apenas, conhece alguém com um corpo todo tatuado com desenhos gregos? Deuses, afrescos, palavras…?

Houve um silencio sepulcral do outro lado da linha.

– Bem, conheço uma pessoa que pode se encaixar nessas características.

– Quem?

– Meu ex-namorado. Mas o que isso tem haver?

– Não posso afirmar ao certo, mas certamente foi ele a quem encontramos morto na Sé. E ele tinha essa tatuagem com o seu número de telefone. Pode vir me encontrar?

– Onde você está?

 

Após o café, aquele homem de olhar frio e sinistro se se encostou ao alpendre da sacada de seu apartamento luxuoso. O sol ainda se erguia preguiçoso no horizonte e refletia uma suave luz no orvalho que banhou as orquídeas do pequeno jardim que tinha na sacada. Uma manhã maravilhosa! Acendeu mais um Djarum Black e baforava brincando com a fumaça. Os acontecimentos da madrugada estavam fresquinhos em sua mente. Com destreza havia orquestrado um assassinato que livrava a Irmandade de ter seus planos malogrados. Ninguém pode nos deter! A ele estava a responsabilidade de tocar os próximos passos do secreto grupo ao qual liderava. Sua ambição por poder o cegaram de tal forma que já não pensava como um humano. Tinha pensamentos instintivos de uma fera. Visualizava-se adornado de honras e prestígios pelos companheiros quando o telefone tocou. Abandonando a sacada adentrou o quarto e atendeu o celular que estava sobre cama. O nome que aparecia no visor do aparelho lhe chamou atenção. Ele já havia falado com ela na madrugada.

– Pode falar. Disse ríspido.

– Tenho péssimas notícias.

A voz da mulher estava carregada de preocupação.

– Aconteceu alguma coisa?

– Ainda não, mas se as medidas corretas não forem tomadas irão acontecer. Estávamos enganados que com a morte do traidor as coisas pudessem se resolver. Não foi exatamente assim que aconteceu!

– Vamos com calma – Disse ele – O que aconteceu de fato?

– Ele foi muito inteligente. Arranjou uma forma de repassar o segredo da irmandade mesmo depois de morto. A polícia já está envolvida no caso. Corremos grandes riscos.

– Como assim?

– Não sei explicar ao certo, mas ele deixou uma espécie de pista codificada em suas tatuagens.

– Pistas que levam ao que?

– Eu imagino que ao maior segredo que guardamos. O grande sacrifício.

Uma sensação gélida lhe percorreu toda espinha. A grande obra!

– Eu acredito que quando ele falava da tal grande obra se referisse as tatuagens das costas. Fomos enganados! Continuou a mulher para a inquietação de quem lhe escutava.

O homem soltou o ar e respirou fundo. Não admitia a ideia de ter sido enganado daquela maneira. A vontade era de explodir, mas estava visivelmente tentando manter o equilíbrio. Afinal seu orgulho não permitia ele transmitir insegurança para aquela que tanto o admirava e confiava. Após pensar alguns instantes e deixar a mulher apreensiva do outro lado da linha, falou:

– Não vou pedir explicações detalhadas sobre o que ficou sabendo. Se nossos planos correm riscos logo não sou somente o único responsável por eliminá-los. Você é uma pessoa inteligente eu sei, afinal de contas está conosco. Eu acredito que já sabe o que fazer não sabe?

A mulher ficou em silencio enquanto ouvia-o falar com um tom muito sereno. Em sua experiência de persuasão ele sabia que estava alcançando seus objetivos em convencer a mulher a agir.

– Eu acredito que posso fazer alguma coisa.

– Muitas coisas minha cara. Lembre-se esse é um mundo de fortes, somente os fortes sobrevivem. A razão de aquele traidor estar morto é que ele foi fraco para um mundo prestes a serem dominados por nós, os fortes.

A mulher aquiesceu convencida que poderia ajudar.

– Não se preocupe com nada. Não estará sozinha garanto. Aguarde minhas próximas ligações. Pretendo encontra-la. Tertia, quae caderbant!

– Fides et servitute!

Assim que encerrou a ligação o homem abriu sua valise que também estava sobre a cama. Foleou uma pequena agenda contendo os números das pessoas que poderiam ajuda-lo a tomar algumas providências. Nesta agenda continha o número de muitos políticos, celebridades, delegados, advogados, secretários de governo e uma infinidade de pessoas poderosas do país. Todas elas membros da misteriosa irmandade. Após pesquisar por um instante encontrou o número de alguém muito importante que certamente tomaria as mais rápidas medidas a respeito do caso.

 

 

O som estéreo do ultrapassado rádio gravador Phillips era o responsável por alimentar espiritualmente o Padre Thomas com cantos gregorianos todas as manhãs. Já havia feito as Laudes, primeiras orações de louvor do Santo Ofício, cumprido fielmente desde seus dias de coroinha. Não era um exemplar cantor, mas acompanhava o latim dos cantos que ouvia. Enquanto cantava preparava seu café. Não era um homem muito ligado ao mundo exterior, mas assim como fazer as Laudes, assistir o telejornal fazia parte de seus costumes matinais. Desligou o rádio e ligou a TV que também já estava fora de linha há muito tempo. A princípio deu de ombros a primeira notícia. Falavam dos escândalos de corrupção no congresso nacional. Encheu generosamente sua xícara de café quando teve sua atenção roubada pela próxima manchete:

– Um corpo nu, tatuado e com dois tiros foi encontrado morto hoje cedo na Praça da Sé, no centro de São Paulo.

Thomas virou para TV e deixou a xícara cair sem dar atenção para a sujeira que fizera. O coração bateu acelerado e a respiração ficou ofegante. As rápidas imagens de um corpo masculino no chão não seriam suficientes para Thomas chegar a nenhuma conclusão se um close de relance não tivesse mostrado o rosto da deusa Afrodite no braço esquerdo do cadáver. Ele reconheceu imediatamente a gravura que tanto viu nos últimos meses em sua casa do ombro do rapaz que acolhera. Meu filho!

– O corpo foi encontrado por moradores de rua que afirmam ter sido abandonado no local por um veículo em alta velocidade. Uma equipe de policiais do DHPP comandado pelo delegado Haroldo Mello cuida do caso e abriu um inquérito para investigar o crime considerado por ele um quebra-cabeça. A polícia trabalha com a hipótese de o crime ter sido motivado pelo tráfico de drogas.

Antes que a apresentadora do telejornal pudesse encerrar a notícia o sacerdote já tinha a sobrenatural certeza que a vítima era seu filho espiritual a quem tanto confortara na noite anterior. O padre correu até seu quarto, a porta do alçapão estava descoberta no canto ao lado de sua cama. Puxou um tapete e cobriu a portinhola de madeira que agora estava invisível. Para garantir o sigilo da passagem secreta para o porão arrastou uma pequena cômoda. Fazia tudo como atos premeditados. Em seguida, pregou na parede uma cruz cuidadosamente posicionada sobre a cômoda. Está protegida agora! Ele estava cumprindo tudo que seu querido filho adotivo tinha pedido dias antes. A agenda! O padre então recordou de outro detalhe. A agenda e o número que deveria ligar conforme outra importante recomendação do rapaz. Thomas ergueu o colchão da cama e lá estava a agenda. Ao folear a pequena caderneta, procurou o primeiro número do bloco C. Ao encontrar o número em questão Thomas logo estranhou o fato que todos os outros números da página estavam nomeados exceto aquele. Ao contrário dos outros o número tinha uma sigla no lugar de um nome próprio que indicasse o dono.

– C.C.C? Sussurrou Thomas com grande estranheza.

O padre tinha no quarto uma escrivaninha do começo do século passado, assim como tudo que tinha em casa. O telefone sob o referido cômodo parecia lhe encarar severo ordenando que fosse usado imediatamente. Assim o padre o fez. Agarrou o telefone com força e discou o número. O padre não tinha a menor ideia para onde estava ligando, o código de área do telefone não era de São Paulo. A ligação foi redirecionada duas vezes para a caixa postal. Na terceira vez, no entanto o padre deixou um recado pedindo que retornasse para seu número em caráter de urgência.

Após olhar para todos os feitos dos últimos minutos fez uma genuflexão diante do crucifixo de madeira e desatando o rosário da cintura começou uma oração de encomenda da alma regada a muitas lágrimas. Meu filho está morto! Padre Thomas a muito tempo não sentia tão grande dor. Ele sabia quem tinha feito esse ato, no entanto não poderia abrir a boca e nem se sujar com a justiça dos homens. Esse era seu pensamento. Apenas uma ordem Vaticana poderia liberá-lo para abrir a boca sobre o caso. No entanto, ele não pretendia nem sair de casa. Quinze minutos depois o telefone tocou para a surpresa do padre. Ele ainda estava na terceira dezena do Santo Rosário, mas não hesitou em atender com pressa a ligação.

– Alô? Disse o padre apreensivo.

– Recebi seu recado na secretaria eletrônica. Já imagino que deve ser você David. Pode parar com suas…

– Não é David quem fala. – Disse o padre – David está morto!

O padre ficou com a voz esganiçada e o homem do outro lado da linha emudeceu.

– Foram os filhos da escuridão. Eles mataram David. As tatuagens de David vão guia-lo! Foi tudo que ele pediu que eu dissesse. A Irmandade…

Os toques agudos do outro lado da linha indicou que o homem desligou o telefone.

 

 

 

 

 

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