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Black Tears

Black Tears – Capítulo 3

O Primeiro Badalar.

Oh! Meu querido inimigo, como posso vir a odiá-lo
quando somos tão parecidos.
Somos ambas faces opostas de um espelho quebrado.
E por mais que tente não consigo deixar de amar esse sentimento
de odeio que borbulha dentro de mim.
No final quando os cacos se espalharam e nós encontrarmos.
Espero – ardentemente – que apenas um de nós veja
o belo nascer do sol.

** 1 **

Fechei os olhos para contemplar o gosto doce que descia pela garganta, lambi os dedos levemente açucarados aproveitando cada pedaço deixado para trás. Abri os olhos só para encontrar o padeiro tendo uma mistura de sentimentos em seu rosto, orgulho, ansiedade e satisfação tudo ao mesmo tempo.

– Meus mais sinceros elogios – Seus ombros relaxaram após o comentário.

– Posso provar um pouco – Senti a respiração bem perto de mim – Por favor.

Respirei fundo para então voltar a degustação, minha filosofia e a de que doces devem ser comidos com calma – Vamos cara, ficar vendo você comer sozinho vai me matar – comentou meu caro amigo inconveniente.

– Você não acha que está muito perto, “Junior” – Perguntei tentando parecer o menos indelicado possível, algo que nunca consegui.

– Entendi – Sua respiração tinha se afastado – Vou respeitar seu espaço pessoal.

– Não me importo que invadam meu espaço – Respondi enquanto encarava o próximo doce a ser capturado – Se você for uma mulher é claro.

Pelo reflexo da vidraça pude ver seu sorriso irônico. Apontei para um doce rosa perto do canto – Por favor embrulhe para a viagem -, o padeira rapidamente pegou um pequeno pacote e colocou dentro com todo o cuidado possível. Lhe entreguei uma moeda de prata antes de caminhar para a saída – Vou avisar quando tiver um doce novo, tenha uma boa tarde – Falou o padeira acenando.

– Você gosta mesmo de doces, não é?

– Mas é claro, doces ficam em segundo lugar na minha lista – Falei levantando um V com a mão.

Sua risada se perdeu em meio a multidão de pessoas que andavam pela rua. Crianças com seus olhos grandes vorazmente encaravam minha boca, retirei meu pirulito segurando o cabo só para mostrar para elas antes de continuar meu caminho pela rua.

– Não precisava fazer isso. Coitada das crianças -.

Soltei o ar pelo nariz antes de me virar para ele, suas roupas bagunçadas me davam agonia.

– Mais é claro que sim – Respondi fingindo surpresa – Não gosto delas, e espero que elas pensem o mesmo de mim.

Não tive a oportunidade de colocar novamente o pirulito na boca, o destino era cruel. Fiquei algum tempo o encarando caído no chão enquanto uma comoção acontecia ao redor, pessoas gritando palavrões, crianças chorando, todo o tipo de coisa que não me interessava nem um pouco – O karma é mesmo uma vadia não é – murmurei em silêncio. Sequei uma única lagrima que caia antes de ver um homem correndo pela multidão, sua atitude indicava que estava sendo perseguido por alguém. Guardas empurravam os transeuntes que com medo tentavam sair do caminho por vezes caindo no chão no processo.

– Devemos ajudar – perguntou meu caro colega de classe se preparando para correr.

– Fique a vontade. Não sou um herói.

Antes que ele respondesse uma explosão enorme jogou todos para trás causando uma enorme comoção que veio acompanhado com uma onda de poeira que cobriu os poucos sobreviventes. Segurei o braço de Rodolf o puxando para o beco antes que algo que passou voando acertasse sua cabeça. Depois que a fumaça se dispersou devido ao vento uma cratera se encontrava ainda crepitando, em seu entorno só havia cinzas e resto de que deveriam ser pessoas. Não muito longe outra explosão ressoou pela cidade se misturando aos gritos de desespero.

Rodolf que ainda estava entorpecido pelos súbitos acontecimentos estava encolhido no chão, o peguei pelo bravo o forçando a se levantar, seu rosto dizia que ele não entendia o que tinha acontecido.

– Temos que voltar a escola, podem haver vítimas – falei alto o suficiente para que ele escutasse, meus ouvidos ainda estavam apitando.

Dei as costas para ele sem esperar uma resposta que provavelmente nunca viria e então corri pelas ruas. No caminho passei por adultos abraçando corpos enquanto gritavam em plenos pulmões, crianças chorando em cima dos corpos dos pais, era um verdadeiro inferno. Observei rapidamente Rodolf que tentava me seguir tão desesperadamente que nem sequer olhou para os corpos, desconfio que se fizesse suas pernas cederiam. As portas da academia estavam destruídas, nas pontas quebradas um leve rubor poderia ser visto.

– O que pelos deuses aconteceu aqui – não respondi, o momento não era oportuno, havia coisas mais importantes para se preocupar.

– Aju…d..aa.

Um leve murmúrio ecoou tão rápido que quase pensei que havia sido minha imaginação, quando vi uma mão acenando em baixo dos escombros – Temos que ajudá-lo – falou Rodolf indo em direção a voz que ficava fraca a cada segundo. Dei um passo em sua direção, antes de lembrar o real motivo de ter vindo aqui.

– (Escolha logo Dan – Sussurrou uma voz tão perto que pude sentir o ar quente que saia de sua boca – Mas fique sabendo que se escolher ajudá-lo, Cecile pode já ter morrido. Ai não apenas uma pessoa, mas duas irão ter o mesmo fim).

Suas mãos palidas seguraram meu rosto, cabelos negros escorriam tão longos quanto uma cachoeira. Tentei olhar para onde Rodolf me chamava desesperadamente pedindo ajuda, mas não consegui me mover. Seu rosto foi ficando cada vez mais perto até sua boca chegar ao meu ouvido.

– (Você vai deixar que ela morra, Dan. Assim como fez comigo – Pude senti-lo sorrir – Ou vai dar meia volta e evitar seu trágico destino).

Meus pés começaram a se mover sozinhos, tentei resistir, mas foi tão fútil quando a tentativa de ajuda composta por apenas uma única pessoa. Não pude ouvi-lo pedindo ajuda, nem mesmo sua expressão foi permita a se manifestar naquela neblina. “Ele” havia coloca suas mãos frias em meus ouvidos me removendo completamente do mundo, colocado uma venda em meus olhos não me permitindo vê-los em suas agonias passageiras, não me permitindo ajuda-los. Quando fui libertado já estava perto do prédio onde passo minhas manhãs todos os dias, o mesmo prédio se encontrava caído em uma pilha de escombros irreconhecíveis, tinha chegado tarde. As estatuas que uma vez eram guardiãs daquele belo lugar estavam caídas com seus rostos espalhados pelo chão, ao lado de uma delas um liquido escuro escorria se espalhando pelas pedras, no centro disso mechas laranjas eram visíveis. Ajoelhei perto do corpo, fechei suas pálpebras que estavam pegajosas, talvez pelas lagrimas ou pelo sangue, nada mais importava depois que o coração deixava de bater.

– (Você chegou tarde – Dedos gelados me impediam de tirar meus olhos daquela tragédia, uma voz tão pegajosa quando piche me engolia – Você sempre chega tarde, veja o fruto da sua fraqueza, venha comigo, vamos sofrer juntos).

– Ela pode ter saído – Murmurei tentando convencer aquela sombra, aquele pensamento – Conheço Cecile, tenho certeza que ela saiu com todos.

– (Você diz isso tentando me convencer – Seu queixo se apoiou em meu ombro – Ou diz isso para convencer a si mesmo, não que faça muita diferença não é).

Um pingo molhado caiu em meu rosto me acordando, as nuvens escuras feitas pela fumaça deram origem a uma chuva, pude sentir as gotas geladas descendo lentamente pelo meu rosto até se encontrar com minhas roupas tão molhadas quanto, algumas seguiram seu caminho até minha boca piorando ainda mais o seu gosto amargo. Outra mão tocou meu rosto, seu calor se espalhou dispersando aquele frio momentâneo.

– (Oh! Meu pequenino – Aquela voz continha tanta tristeza, tanto calor – Não se culpa tanto, seu momento havia chegado).

– O momento poderia ser evitado – Respondi nervosamente – Todos podem ser evitados, só precisava ter chegado mais cedo.

– (Não se engane – A única coisa que pude ver foi branco – Mesmo que você tivesse chegado mais cedo, seu sangue ainda não voltaria para o corpo, seu medo da morte não teria ido embora. Quando o momento chega não podemos evitá-lo. Quanto a Cecile, seu corpo não está aqui, sem corpo não existe confirmação da morte).
– Mas tão pouco a confirmação da vida…
Seu abraço quente queimava naquele mundo frio e molhado me concedendo a calma que precisava. Soltei o ar que havia segurado antes de tudo desaparecer como um castelo de cartas. Os sentimentos que borbulhavam dentro de mim haviam se acalmado, no instante seguinte uma mão segurou firme no meu ombro, dessa vez seu aperto era real.

– Um dos professores me informou que ela tentou o máximo possível, mas infelizmente não conseguiu resistir.

– Entendo – Não precisei virar para saber quem era, a voz era suficientemente familiar.

A chuva havia ficado mais forte ao ponto de trovejar, Cecile tinha vários arranhões e uma perna quebrada, mas ainda estava com aquela máscara seria que ela exibia diariamente. Sua mão segurava firmemente uma bengala cinza feita de madeira. Apoiei seu braço em volta do pescoço ajudando com o apoio.

– Onde você estava – perguntei ajeitando seu braço – ela bateu sua bengala na minha canela -.

– A pergunta é porquê você está aqui?

– Na verdade vim ajudar os outros e acabei vindo para cá – minha voz era calma, sem nenhum resquício daquelas emoções, daquele momento.

– Sei – Um leve sorriso apareceu no canto de sua boca, o primeiro em muito tempo.

– Alias, você ainda não me contou como conseguiu quebrar a perna e muito menos o que veio fazer aqui.

– Fui até a sala do diretor entregar alguns papeis quando um homem entrou correndo pela entrada. Os guardas conseguiram pegá-lo, mas foi aí que uma explosão enorme aconteceu, fui jogada na parede e acabei quebrando a perna e por consequência perdi a consciência. Quando acordei o local inteiro estava destruído e vários alunos mortos.

Estávamos quase chegando onde alguns sobreviventes estavam reunidos, o local que uma era uma recepção de entrada agora tinha virado um hospital improvisado. Antes mesmo de chegarmos gemidos ecoavam pelo ar fazendo parecer como se algum tipo de tortura coletiva estivesse acontecendo, talvez fosse tortura e a única coisa decente a se fazer seria deixar os que sofriam morrerem em paz, mas quem sou eu para dizer o que é e o que não é descente. Pessoas freneticamente saiam e entravam carregando ataduras, observei que perto do canto havia um lugar vago. Passamos por pessoas que gemiam em agonia, algumas gemeram pela última vez antes de caírem em um sono eterno só para logo em seguida amigos começarem a chorar não deixando sequer um pequeno espaço para o silêncio. Apesar da dificuldade ela se sentou sem sequer mudar sua expressão calma, nem parecia a mesma garota que conhecia desde criança.

– Tem alguma coisa errada comigo – Perguntou franzindo a sobrancelha direita – Você está me encarando a algum tempo.

– Tirando os cortes, a sujeira e a cara de brava nada em particular – Respondi fingindo um suspiro – Só estivesse pensando o que você estava fazendo perto do prédio caído.

– Todos estavam fazendo o possível para encontrar sobreviventes, mesmo que eu não fosse de muita ajuda não pude ficar apenas olhando. Quando sai para procurar alguém que pudesse precisar de ajuda vi você correndo para o prédio da escola, tentei te chamar, mas você nem sequer me notou. Nessa condição não pude fazer muito mais do que tentar te alcançar devagar – Ela fez uma pausa enquanto me encarava, o instante pareceu uma eternidade – Quando finalmente te alcancei você estava ajoelhado na frente dela.

Senti uma câimbra surgir no canto da boca – Então ela não viu –, pensei virando o rosto para encarar os feridos. Cecile não disse mais nada, ela simplesmente ficou em silêncio.

– Então você estava aqui!

Me virei ao mesmo tempo em que desviava de um punho vindo em direção ao meu rosto, meu agressor era Rodolf que rangia os dentes. Pude adivinhar o porquê daquilo, seus dedos estavam machucados com sutis manchas vermelhas, sua roupa em farrapos com alguns rasgos na área do joelho. A blusa estava manchada.

– Quando eu olhei para trás você tinha sumido – Lagrimas escorriam pelo seu rosto deixando um rastro no meio da sujeira – Não consegui fazer os primeiros socorros.

Ele ficou olhando para suas mãos por algum tempo. Todos que inicialmente haviam parado seu trabalho pela súbita discussão voltaram as suas atividades como se o tempo tivesse voltado, os feridos não se curavam sozinhos. Ao lado dele que molhava as mãos com as lagrimas um garotinho loiro chorando com o mesmo rosto sombrio, suas pequenas mãos esfregavam seus olhos freneticamente tentando suprimir as lagrimas. Ele voltou a me encarar com olhos sem vida, cansados para alguém da sua idade, o garotinho já havia sumido deixando apenas um sentimento ruim.

– Você poderia me dizer onde você estava?

– Claro que posso – Respondo olhando no fundo dos seus olhos – Resolvi conservar minha energia para salvar aqueles que teriam uma chance. Então em um ato heroico sai procurando por alguém.

Seu corpo estava tão sobrecarregado que sua risada saiu fraca, ele arrastou seu corpo com o resto de energia que havia sobrado até uma parede onde abaixou a cabeça ficando em silêncio, se separando daqueles gritos, nem mesmo as enfermeiras ousaram chegar perto para examiná-lo. Se fui totalmente cruel, egoísta ou um completo babaca não importava, isso logo passaria, ele faria outros amigos e iria embora, era melhor assim. Voltei minha visão para Cecile que me encarava, seu olhar era tão afiado quando uma faca.

– Por que você fugiu – Perguntou o mais baixo possível – Você com certeza poderia ter ajudado.

– Quem quer que fosse embaixo daqueles escombros agora é somente uma estatística – Respondi mostrando um sorriso – Por que eu deveria me importar.

– Serio? E se fosse eu que estivesse lá embaixo – Sua voz era neutra, mas tinha um toque de curiosidade – E também me diga o porquê de você estar ajoelhado perto da Maria, você não parecia muito bem.

Retirei o doce que tinha sobrevivido ao teste da chuva intacto e o mordi, o gosto doce desceu pela minha garganta removendo todo aquele gosto ruim que me assombrava desde a loja, removeu todos aqueles gritos de angustia. Olhei preguiçosamente para Cecile que ainda me espetava com seu olhar.

– Que surpresa, o doce está intacto – Falei com uma falsa alegria – Tenho que me lembrar de elogiar o padeira, claro que se ele ainda estiver vivo – Mordi outro pedaço antes de voltar a encara-la – Você Ceci é uma garota crescida, sabe se cuidar sozinha, tenho certeza que não seria você lá embaixo – Lambi os dedos levemente azuis – Quanto a garota, apenas fiquei triste de não poder ter lhe dado uma última recompensa antes do fim, ela poderia ter ido para o paraíso sem nem mesmo ter morrido, mas agora é tarde.

Ela suspirou pelo nariz antes de encostar na parede e fechar os olhos não perguntando mais nada assim como Rodolf havia feito, deve ter achado que era inútil perguntar mais. O chão do lado de fora começou a ficar vermelho, as pessoas que estavam ajudando com os feridos começaram a ir embora preocupados com as próprias famílias, como haviam ficado até o final era um grande mistério para mim. Me sentei em um local totalmente vazio, fechei os olhos e tentei escutar somente o barulho da chuva, nisso minha cabeça foi tomada pelas cenas vistas hoje como um filme ruim, o doce havia perdido o efeito tão rápido que um viciado pediria reembolso devido ao produto defeituoso, ele alegaria que ao invés do efeito eufórico a droga o deprimia ainda mais lhe mostrando o peso da realidade. Suprimi um sorriso que por alguns instantes conseguiu me distrair, mas tal como a droga não durou muito tempo.

– Que belo dia.

** 2 **

Minha cabeça explodia a cada passo dado dentro do escritório como se alguém a estivesse usando como um tambor, as vozes de discussão pareciam mais altas do que normalmente eram, todos estavam em estado de frenesi desde os ataques. Peguei o copo de água e virei em um só gole, o gosto amargo do remédio desceu pela minha garganta, esse lugar estava me deixando ainda pior.

– Estou lhes dizendo, eles queriam nós mandar uma mensagem – Quem havia falado era um rapaz que havia sentado ao meu lado.

– Que tipo de mensagem Comandante Teodore. Você poderia compartilhar conosco.

– Claro que é a guerra! Isso claramente foi um ataque direto, uma provocação daqueles malditos “Demônios”.

Nesse momento até os que estavam quietos começaram a falar mais alto como se existisse alguma competição, cujo prêmio seria um belo nada. Dei um soco na mesa cessando as discussões, olhei para cada um deles esperando algum desacato, mas todos eram bem treinados e imediatamente ficaram em silêncio esperando alguma ordem. Os únicos que tinha permanecido calmos desde o início era o jovem sentado do meu lado juntamente com a jovem no lado dele.

– Chega dessa discussão desnecessária, se foi ou não uma mensagem não importa, o que importa e que tipo de contra medidas foram feitas – Fiz uma breve massagem nas têmporas, não tinha mais idade para esse tipo de coisa – alguém tem alguma sugestão.

– Devemos nos preparar para um novo ataque – Falou um dos comandantes levantando a mão – Preparar uma defesa mais robusta com mais inspeções.

– Entendo, alguém mais?

– Devemos mandar mensageiros para os nossos aliados – Falou o soldado que tinha ficado quieto até o momento – Não sabemos se foram os “Demônios” que fizeram esse ataque. Até onde sabemos as “bombas” eram humanos.

Todos ficaram quietos por alguns instantes com rostos sérios, outros balançavam as cabeças negativamente. O ar em torno havia ficado pesado, todos apesar dos pensamentos controversos tinham a mesma expressão de dúvida. Peguei um Jarro de água aproveitando o silêncio e derramei no copo, gotas de água desciam levemente até tocarem na mesa de madeira. No meio daquele silêncio uma única mão se levantou, era a outra pessoa que havia ficado quieta no meio daquela selvageria.

– Fique a vontade para falar Annabeth – Balanço a mão tentando aliviar a tensão – Estamos entre oficiais aqui, todas as opiniões são validas e também sou o único que vai decidir se elas são boas ou não.

– Obrigado – Ela fez um som com a garganta – Dei a ordem de enviar os mensageiros a Alvared, Republica Alberon e nosso recém aliado Império carmesim depois que os ataques terminaram, um deles deve ter chegado em Alvared, os outros iram precisar de algum tempo.

– Muito bom. Como está a comunicação entre vocês?

– Eles enviam códigos a cada 1 hora, assim podemos saber se estão bem ou não e pensar em contra medidas. Também os instrui de que se algum ataque surgisse eles deveriam largar tudo o que estavam fazendo e voltar para um relatório, caso isso não seja possível uma câmera está constantemente filmando.

– Ótimo – A cadeira rangeu – Até sabermos se eles são mesmo nossos aliados devemos reforçar nossas defesas. Com relação a nossa defesa vou deixar em suas hábeis mãos Senhor Philip já que a ideia foi sua. Alguém tem mais alguma coisa a dizer?

– Os corpos das “bombas”, pelo menos os que ainda estavam inteiros por alguma falha foram diagnosticados com várias marcas de tortura tendo até alguns metais inseridos em suas peles.

– Como foi feito o diagnosticado – Perguntei apoiando os cotovelos na mesa – Poderia me explicar Senhorita Rose.

Ela arrumou seu uniforme, ajeitou a postura e respondeu com um simples – Claro que sim general -, sua naturalidade me fez pensar que ela esperava que eu perguntasse, ou pelo menos que alguém o fizesse.

– Nós a princípio tivemos algumas dificuldades em descobrir, mas após algumas investigações nos corpos descobrimos manchas acinzentadas e detectamos alguns metais por dentro da pele. Uma explosão deixa algo muito mais “visível” do que uma cicatriz, então presumimos que seja devido a algum acidente sofrido ao decorrer da vida ou algum método de tortura.

– Entendo. Continue com o ótimo trabalho. Alguém mais – Esperei alguns instantes antes de continuar – Ótimo, podemos passar para o próximo tópico.

– Sim – Todos responderam ao mesmo tempo.

– Nós últimos relatórios pude identificar que alguns raptos ocorreram perto da fronteira, mas no relatório em questão não diz a data que os sequestros ocorreram e muito menos o que foi feito para impedir isso – Olhei para todos até parar na pessoa que estava no lado oposto ao meu na mesa – Poderiam me iluminar quanto ao porquê?

– Permita-me esclarecer esse fato General – Acenei com a cabeça para que ele continuasse – Os envolvidos foram “presos” alguns dias depois do relatório, o local foi perto das montanhas, seus veículos estavam quebrados e a maioria do pessoal estava morto, os sobreviventes não conseguiam falar devido ao estado choque. Somente alguns dos sequestrados ficaram desaparecidos, mas uma coisa interessante era que as vítimas não lembravam, ou melhor, não queriam se lembrar de nada que havia ocorrido, mesmo se aquilo ajudasse a encontrar seus entes queridos.

– Que caso curioso, já começaram alguma investigação?

– Sim. Devido a cooperação da divisão de inteligência rastreamos eles até a fronteira. Enviamos algumas cartas para os reinos que fazem fronteira conosco, mas não obtivemos qualquer retorno, seria rude da minha parte dizer isso, mas fomos completamente ignorados. As vítimas foram levadas até uma instituição de tratamento psicológico, algumas delas conseguiram voltar a suas vidas diárias com dificuldades, porém outros ficaram completamente loucos e tiveram que ser sedados devido ao excesso de violência.

Pelo o que parecia não fui o único a não saber desse fato, alguns tinham expressões perturbadas, surpresas e imaginativas. Não fui capaz de culpa-los devido aos fatos relatados, para algo traumatizar alguém no nível de não querer lembrar mesmo que fosse para salvar algum ente querido deveria ser algo muito terrível. Minha cabeça deu uma pontada logo quando achei que tinha melhorado, olhei em volta e a única pessoa com o rosto serio era Annabeth, como comandante do 6 exército ela devia estar a par com as coisas ditas. A chuva que havia caído tinha parado, a única coisa vista pela janela era um brilho vermelho indicando que já tínhamos passado muito tempo aqui. Todos deviam estar preocupados com suas famílias.

– Por hoje chega, não podemos fazer mais nada. Vão para casa e fiquem com seus familiares, verifiquem se eles estão bem, tenham uma bela noite de sono, amanhã vamos começar o verdadeiro trabalho.

Mesmo não querendo admitir todos tinham um certo alivio quando relaxaram os ombros quando pronunciei essas palavras, mesmo eu queria ter algum descanso. As cadeiras rangeram quando todos se levantaram, antes de sair todos olharam para mim e fizeram uma continência, então começaram a se dirigir para a saída. A porta se fechou me deixando com os barulhos das páginas sobre a mesa e o leve vento que entrava pela janela. O telefone tocou, seu barulho soou pela sala espantando o seu breve silêncio.

– Quem é – Perguntei me esquecendo das tantas divisões que existiam.

– Aqui quem fala é o soldado 5578, divisão da fronteira. Gostaria de informar que um mensageiro está pedindo permissão para entrar, ele diz ter sido enviado pelo Rei Argos, devo deixa-lo passar?

– Não há necessidade – Tirei uma lista para verificar o número do soldado e vi que ele batia – vou ir imediatamente para a fronteira, já terminei todos os assuntos por aqui.

– Entendido senhor.

– Ao que parece não vou poder descansar tanto quanto pretendia, espero pelo menos que o remédio faça efeito – Murmurei para ninguém em particular.

O vermelho do céu foi pouco a pouco perdendo a batalha para a escuridão que se aproximava no horizonte, o caminhão balançou ao passar por algum buraco na rua – Droga! Mordi minha língua -, olhei pelo retrovisor só para encontrar dois soldados rindo enquanto outro tinha lagrimas nos olhos. Já havíamos saído a algum tempo da reunião, logo estaríamos perto da fronteira.

– Calem a boca seus idiotas! – Minha visão chegou a ver estrelas com o grito – O general não está se sentindo bem, fiquem quietos.

O caminhão que havia sido preenchido por risadas agora era tão silencioso quanto um cemitério, agradeci pela consideração ao mesmo tempo em que lhe pedia para não gritar daquela forma novamente. Fiquei um tempo com os olhos fechados até que a dor resolveu me dar uma trégua, maldito dia para ter uma dor de cabeça. Outro solavanco sacudiu me fazendo abrir os olhos, uma densa floresta negra se abriu a nossa frente pelo brilho dos faróis que iluminavam o caminho. A nossa frente uma fortaleza se erguia como uma montanha, o barulho de água ficava mais forte conforme nos aproximávamos do portão traseiro, fechei meu casaco devido ao frio causado pela cachoeira antes de descer do caminhão e ir em direção ao portão. Com algumas batidas uma pequena brecha se abriu revelando olhos castanhos, pude sentir alguns ameaças ao redor.

– Sou o General Vicente Lichtenstein.

O guarda não pareceu nem um pouco surpreso, apenas abriu uma pequena abertura sem fazer mais perguntas. Coloquei meu cartão de identidade dentro e em poucos segundos a abertura se fechou, o homem havia sumido junto com as ameaças ao redor. Os soldados ficaram tão nervosos que seus rostos tinham um tom vermelho, eles estavam tão distraídos que nem perceberem que haviam pessoas no meio do mato nos observando. Suspirei já programando um novo treinamento, pelo visto foi a coisa certa trazer eles para cá, talvez aprendam alguma coisa. Um som veio do portão indicando que estava se abrindo lentamente, seu rangido ecoava pela floresta inteira afastando algumas corujas nas arvores próximas. Dentro estava um homem que provavelmente era a pessoa da abertura se aproximando, quando percebi ele já estava bem na minha frente batendo continência enquanto pedia desculpas pela forma descortês de algum tempo atrás.

– Não se preocupe rapaz – Respondi colocando o cartão no bolso de dentro da blusa – Você cumpriu o seu trabalho, não importa quem seja deve apresentar o cartão.

Fiz um sinal para todos irem na frente, o vento tinha aumentado ao ponto de balançar as arvores – Que ótimo, vou acabar pegando algum resfriado – murmurei enquanto acendia um charuto para tentar me aquecer. As únicas duas pessoas aqui eram apenas eu e o homem do portão que me observava atentamente, tornando o clima muito bizarro.

– Você poderia me levar até a pessoa no comando, tenho assuntos urgentes para discutir – Perguntei antes de colocar o charuto recém acesso na boca.

– Claro senhor, venha por aqui.

Com uma certa distância o segui para dentro de um prédio cinza escuro – Ele está mais animado ou sou eu que fiquei velho -. Caminhamos por algum tempo em um longo corredor, as paredes eram enfeitadas por retratos das antigos de pessoas que receberam esse perigoso trabalho, nem todos aguentavam. A nossa frente estava uma porta de madeira muito bem detalhada, em seu centro as palavras “Escritório” se encontravam, ele bateu e logo em seguida uma voz neutra nos chamou para dentro. Soltei uma grande fumaça pela boca antes de entrar na pequena sala, o local era bem organizado com somente as coisas necessárias então não era tão luxuoso, na sala havia 3 pessoas, uma mulher impecavelmente arrumada, um jovem sentado no meio de alguns papeis e outro sentado perto da parede lendo alguma coisa.

– Obrigado Ted, pode ir agora – Falou a secretaria com um sorriso gentil.

Tendo terminado o que estava fazendo o rapaz se juntou aos dois que faziam continência, não repreendi ele por ter demorado, mas teria feito se ele tivesse prestado continência antes de terminar seus deveres, ninguém gosta de um puxa saco.

– General é uma honra conhecer o senhor – Disse me apontando uma cadeira – Meu nome é Rafael Santiago.

– Minhas maiores simpatias Rafael – Após me sentar ele fez o mesmo – Mas vamos deixar a formalidade de lado, vim aqui por causa do “Mensageiro”.

O semblante alegre no rosto dele rapidamente desapareceu, retirei um cinzeiro do bolso e o coloquei em cima de alguns papeis, bati algumas vezes antes de retornar o charuto ao seu devido lugar.

– Providenciei que ele fosse para a prisão – Seus cotovelos se apoiaram na mesa – Não o torturamos ou fizermos qualquer pergunta, estávamos esperando a sua chegada.

– Quantas pessoas?

– Somente duas.

Segurei o máximo possível antes de soltar a fumaça pelo nariz – Então o que estamos esperando, quero acabar logo com isso -. Rafael concordou, se levantou e então pediu para os seus assistentes mostrarem o caminho até a prisão. Joguei o cinzeiro no lixo pouco antes de segui-los pelo mesmo corredor de antes só para parar perto de um quadro – Então não é na prisão convencional, interessante -, olhei ao redor e o corredor estava tão vazio, deveria ter mais pessoas andando por aí. A parede rangeu antes de ir um pouco para trás e subir liberando o caminho.

– General primeiro – sorri antes de seguir pelo novo corredor.

O corredor era muito amplo, o suficiente para quatro pessoas andarem confortavelmente lado a lado. Nossos passos ressoavam pelas celas vazias, não havia ninguém, nem mesmo os resquícios dos guardas. Parei em frente a uma cela só para observar o que tinha dentro, a escuridão me impedia de enxergar seu conteúdo, seu silencio não era natural, voltei minha visão para meus acompanhantes que olhavam para mim de maneiras diferentes, a secretaria sorria de orelha a orelha, Rafael dava a impressão que estava distraído e finalmente o rapaz usando um manto negro, seus olhos não haviam saído do livro desde a nossa curta reunião. Expeli uma grande quantidade de fumaça contida em meus pulmões, o charuto já estava perto do seu fim.

– Sabe Rafael, adorei a sua recepção e principalmente o modo que você deu mais atenção ao trabalho do que ao seu superior.

– Muito obrigado general – Respondeu mostrando um sorriso.

– Mas fumar dentro de estabelecimentos regidos pelo serviço militar é contra a lei – Falei olhando fixamente em seus olhos – Me admira alguém que presa tanto seu trabalho não me apontar esse fato.

Uma câimbra passou tão rápido pelo seu rosto que pareceu uma ilusão, a secretaria que até então escutava atentamente começou a remexer em alguns papeis rapidamente procurando onde a lei estava, o rapaz havia guardado o livro.

– Me perdoe pelo inconveniente – Respondeu antes de se curvar – Sou novo por aqui então não conheço todas as leis, preciso estudar mais.

– Vamos lá – Digo abrindo os braços, minha blusa estava aberta deixando o vento gelado abraçar meu corpo – Todos cometemos errados na vida – Coloquei as mãos atrás da cabeça – Mas não em território inimigo.

Sua resposta foi tão lenta que a própria pessoa só percebeu quando desmoronou impotente no chão gelado, só havia sobrado 3 pessoas em pé no corredor que agora era manchado de vermelho. Acendi outro charuto e o coloquei na boca, seu breve calor passou pelo meu pulmão antes de sair pelo nariz, das duas facas que tinha nas costas somente uma aguardava ansiosamente seu alvo em minha mão esquerda.

– Que coisa trágica – Murmurei para ninguém em particular – Pensei que ele ia ser defendido.

A secretaria e o rapaz estavam totalmente calmos apesar de que seu “chefe” estar pintando o chão com seu próprio sangue. Minhas suposições estavam erradas até um ponto, esse cara não passava de um mero peão, o rei inimigo deveria estar rindo em seu palácio desfrutando do momento. Retirei o charuto da boca entre dois dedos como se fosse um cigarro, olhei fixamente para ambos.

– Não posso deixar que vocês saiam daqui assim, a noite e bem perigosa nesse tipo de lugar – falei dando um passo para frente.

Sempre gostei de xadrez, mas nunca pensei que eles pensariam em atacar o rei inimigo com todas suas peças ainda inteiras, seria um movimento inútil, só se fosse para mandar um recado. “Rafael” estava deitado no chão segurando sua perna enquanto chiava com tudo o que tinha direito, em sua cabeça dois chifres se projetavam para frente como uma seta. A secretaria que até então tinha um rosto amável mostrou uma expressão de puro nojo, seu colega ao lado ainda tinha uma atitude de desdém para a situação.

– Você é um completo inútil – cada palavra que deixava a sua boca continha o mais puro escarnio. Assim que ela tirou o acessório, imediatamente seus olhos ficaram totalmente negros, a única cor neles era o dourado da íris – A única coisa que você tinha que fazer era ler as leis e ainda falhou miseravelmente nisso.

– Mas senhorita – dor era evidente em seu rosto – Por favor me de outra chance, e..e..eu imploro.

O belo rosto que até então se distorcia em nojo havia mudado para um sorriso elegante.

– Mon coeur (meu coração), que homem – murmurou colocando o dedo em seu lábio vermelho enquanto me observava, as suplicas tinham sido completamente ignoradas.

Ela retirou um bloco de notas e começou a anotar alguma coisa, em nenhum momento deixei minha guarda baixa, eles estavam calmos demais. Foi a primeira vez que notei o olhar do rapaz, eles eram tão dourados quanto ouro, mas não havia nenhuma vida neles, provavelmente o livro era só um enfeite para uma boneca sem vida. Terminando de escrever ela sussurrou algo no ouvido do rapaz e então me olhou uma última vez antes de dar uma piscadela e sair pelo mesmo local em que estávamos vindo. Ele que havia ficado para trás apertou um pequeno anel dourado em sua mão direita, no instante seguinte uma espada dourada se formou, o brilho emitido por ela foi suficiente para iluminar as celas que agora mostrava pedaços de pessoas, agora o fato de não ter guardas estava explicado. Começamos a andar simultaneamente, a espada que arrastava pelo chão deixava sua marca pelo metal.

Por alguns segundos pude escutar apenas o doce som do silencio antes do choque ocorrer, faíscas voaram pelo ar a cada defesa, cada ataque como um show de luzes, se alguém que entendesse de esgrima estivesse observando aplaudiria nossa performance. Não tive o luxo de poder desviar meus olhos dele, procurei aberturas onde só existia solidez, pela primeira vez amaldiçoei a minha mesmo por ser velho. Havíamos trocando golpes por algum tempo, tive até a impressão que ele queria que ficássemos em um empasse, queria tempo. Os golpes vinham de todos os lados eram tão fluidos que por vezes pensei que estava lutando com um mestre, até que tudo aquilo terminou quando ele simplesmente recuou ficando parado uma certa distância, seu dever tinha sido cumprido e como se para encerrar nossa pequena festa ele se curvou colocando a mão no peito, levantou a espada dourada e a enfiou diretamente no coração sem sequer hesitar ou mudar a expressão, não havia sangue, a espada que antes era dourada ficou vermelha e se quebrou em pequenos pedaços que se espalharam pelo chão. Guardei a faca nas costas, a luta havia acabado com a minha derrota completa.

– Parece que eles te deixaram para trás – Comentei olhando para “Rafael” que gemia de agonia com um sorriso irônico.

– Vai se foder.

– Muito irônico vindo de alguém sangrando – Falei agarrando seu braço – Vamos lá camarada, tenho algumas coisas para perguntar.

Seus gritos ficaram ainda mais altos quando o arrastei pelo corredor, mesmo que fosse inútil esse cara deveria saber de algo, pelo menos o nome da mulher. Não sei o que deveria esperar quando abri a porta, talvez uma sala preenchida com nada mais do que escuridão, mas a realidade queria contar outra história. Abri lentamente a porta deixando um fraco raio de luz entrar dando alguma vida para o local, ou foi assim o planejado, no centro da sala um rapaz de cabelos castanhos que se encontrava sentado em uma cadeira com os pulsos e pés amarrados com uma corda, seu corpo estava inclinado para frente. Joguei o impostor no canto da sala antes de me aproximar, sua boca estava coberta com uma bola cheia de furos. O corpo nu tinha marcas de cortes, chicotadas e marcas de queimaduras, as genitálias foram cortadas e agora enfeitavam seu pescoço como um colar bizarro, no chão se encontrava uma coroa de dentes brancos, sua boca tinha sido costurada. Não pude fechar seus olhos pela última vez, os mesmos haviam sido arrancados deixando um rastro de lagrimas vermelhas que a muito tempo haviam secado, notei que na parede uma mensagem tinha sido escrita cuidadosamente usando o sangue da vítima.

Pois ele gritou até sua garganta sangrar, chorou até as lagrimas secarem.
Clamou aos deuses em que acreditava pedindo
pelo doce toque da morte.
Mas seu único presente foi a dor, seu único
companheiro era a constante agonia.
Seus gritos haviam se tornado uma bela
melodia cujo o som me cativou. ♥

Apertei tão forte a minha mão que ela começou a sangrar manchando o chão com alguns pingos, olhei para “Rafael” que contemplava aquela terrível cena com um sorriso nos lábios. Não pude controlar minha raiva, quando percebi já havia acertado o rosto dele várias vezes o fazendo assumir um tom roxo esverdeado. Por mais que imaginasse não consegui ver o motivo daquilo, eles tinham ido tão longe, feito essa profanação para o que, pelo o que.

– O que vocês queriam aqui – Perguntei o levantando pelo uniforme – Pelo o que procuravam?

– Não perca seu tempo me perguntando essas coisas – Tossiu cuspindo um pouco de sangue – Para alguém que foi ordenado a morrer, não tenho motivos para viver, só queria estar vivo o suficiente para ver os humanos sofrerem tanto quanto ele.

– Desgraçado – Peguei a faca que ainda estava cravada em sua perna e a torci o fazendo sorrir – Qual era o nome dela? Para quem ela trabalhava? Responda.

– Mesmo que você me perguntasse. Não tenho obrigação nenhuma de dizer algo, meu amor por ela não me permitiria tal traição.

Levantei sua mão direita só para cravar a minha faca no centro dela, ele não esboçou qualquer reação de dor, apenas se limitou a fazer cara feia. Mais uma vez ele abriu um enorme sorriso, minha raiva só aumentava.

– A sua dor não me diz nada “General” – disse ao passar a língua no sangue que escorria da boca – A verdadeira dor só pode ser aplicada pela minha amada.

– Então foi ela que fez isso? – Levantei a outra mão, mas dessa vez foi bem mais lento que a primeira, não teve nenhum resultado.

Ele me olhou como se eu fosse algum tipo de idiota, como se ele tivesse que ditar cada palavra. Mesmo ficando com a cara pálida pela falta de sangue ele não mudou a atitude, nem um pingo de medo poderia ser visto.

– E quem mais poderia ter feito tal obra de arte – Sua voz era tão apaixonada que me dava calafrios, ele tinha ignorado completamente o fato de ter sido abandonado para morrer – Somente minha amada tem esse dom, esse lixo deveria ter ficado grato – Risada – Qualquer um daria o que for pela oportunidade de ser esculpido por ela, ser morto pelas suas belas mãos era o meu sonho, infelizmente não será possível.

Ele tossiu violentamente soltando uma grande quantidade de sangue, mesmo as portas da morte ele ainda a seguiria apaixonadamente. Pude ver ela gargalhando onde quer que estivesse, uma mistura de raiva, pena e arrependimento lutavam dentro de mim pela predominância, não pude dar o luxo de ceder para nenhum dos lados. Tentei fazer uma última pergunta, mas seu corpo tinha ficado frio, seu único apoio eram suas mãos cravadas na parede, olhei para o seu rosto e pude ver um sorriso tão feliz que quase duvidei da minha sanidade. O corredor de repente começou a ficar barulhento, gostaria muito que os novos recrutas não vissem uma cena dessa, mas toda aquela preocupação foi em vão.

Soldados entraram na sala com espadas em mãos, alguns tinham cortes em toda parte do corpo, os números tinham diminuído. Quando eles perceberam o corpo no meio da sala alguns começaram a vomitar, aquilo tinha sido demais mesmo para os soldados que já haviam visto muita coisa durante seus anos de serviço.

– General – O homem que havia gritado no caminhão se aproximou, não lembrei do seu nome, nunca fui bom nisso – Você está bem? Depois do ataque viemos o mais rápido possível.

– Tirando meu orgulho estou inteiro. Vejo que vocês foram atacados também, foi o porteiro?

– Sim – Senti um leve tom amargo de suas palavras – Só conseguimos sair vivos porque ele parou seu ataque do nada e se matou – Ele fez uma pausa para olhar para ambos os corpos – Então foram mesmo os “Demônios” que atacaram a cidade.

Ao ouvir essa frase consegui entender o que eles queriam, tudo foi muito bem planejado, havíamos caído na armadilha de uma aranha. Minha dor de cabeça só iria aumentar a partir de hoje.

– Quando souberem quem atacou esse lugar não vão querer explicações e teorias – Respondi batendo em seu ombro – Pouco se importaram com eles, suas atenções vão estar focadas em como tudo se pareceu.

** 3 **

– Aaaaahh!

– Oh! Mon chéri (Meu querido) você consegue gritar mais alto que isso – Uma unha vermelha vagou pelo rosto do homem parando em seus lábios que tinham um leve tremor – Você não está nem tentando.

Ela olhou para cima ao mesmo tempo em que jogava os cabelos para trás, sua risada era pura insanidade. Ela inspirou tão fundo que parecia querer gravar o cheiro de medo que pairava pela sala.

– Converse comigo meu precioso pigeon (Pombinho) – Uma agulha delicadamente fazia seu caminho pela pálpebra do olho direito como pinceladas em um quadro – Me disseram que a conversa lhe permite manter a sanidade.

– Ahhh!

– Não consegui entender

– Sua vadia – dor era presente em cada letra -.

– Você é muito rude – Ambos os olhos do rapaz estavam costurados, seu corpo lutava tentando se libertar – Fiz isso com tanto cuidado e é assim que você me trata. Bom, pelo menos você ainda consegue falar.

Sem olhar para trás ela pega uma pinça que aguardava ali perto, no instante seguinte outro grito explodiu dentro da pequena sala, perto de ambos uma unha cheia de sangue caiu, deixando apenas um dedo quebrado para trás.

– Une. (Som de algo quebrando)

– Deux. (Som de algo quebrando)

– Trois. (Som de algo quebrando)

A própria pessoa se contraia de dor ao decorrer da contagem, os números martelavam em sua cabeça como pregos, a raiva era a única coisa que não o permitia sucumbir a doce loucura. O mesmo poderia ser dito da mulher, cada expressão que ele fizesse, cada grito ou xingamento a deixava ainda mais excitada, mais violenta.

– Allons-y (Vamos), cante para mim meu querido pássaro.

– Ahhh! Eu vou t.. ma…t…r.

Não demorou muito para que todas as unhas da mão direita fossem arrancadas, também não demorou muito para que o próprio rapaz desmaiasse de dor. Mas nem tudo é tão simples, a mulher o acertava com um jato de álcool a cada apagão prolongando sua agonia. Ao redor da sala vários espelhos refletiam cada ângulo possível de ambos, não deixando passar um detalhe sequer.

– Não durma sem permissão – Disse colocando ganchos para manter a boca do rapaz aberta – Mas como sou gentil foi perdoa-lo por isso, mas como agradecimento quero que você coma minha comida, estou tentando melhorar.

– N…o….P..fa…v..r

Em sua mão estava uma colher contendo pequenas quantidades de carne que segundos depois desceu pela garganta dele se perdendo de vista. Ela rapidamente fechou a boca dele com uma máscara.

– Como está o gosto?

– …….

– Achei que deveria estar salgado. Carne humana é difícil de temperar.

O barulho da porta se abrindo se misturou ao vomito que saia pelo nariz do rapaz, a situação não era nada além de grotesca. Com uma careta o rapaz que surgia pela porta parou uma certa distância para não ser pego pelo cheiro. Escutando o barulho a mulher inclina o pescoço para trás enquanto segurava no corpo do homem. Seu rosto estava manchado de vermelho, mas mesmo assim ela conseguia irradiar uma grande beleza.

– Finalmente decidiu aceitar meu convite para uma festa, irmão?

– Pas question, mon petit chat (Fora de questão, minha querida gatinha). Vim informar que os “pombinhos” caíram na armadilha. Os mandamos para o cozinheiro, eles devem ficar prontos para serem servidos em breve.

– Devo pedir algumas dicas para eles depois. Ainda estou muito longe da perfeição.

– Imagino – Respondeu indiferente – Agora coloque uma roupa e acaba com esse lixo. Não devemos ficar muito por aqui.

– Não me diga que não sentiu nada me vendo assim – Mãos passearam dos seus seios até os quadris a fazendo soltar um breve gemido, suas pernas abraçaram o quadril do homem a impedindo de cair – Você ainda tem chance de participar.

– Claro que senti cara irmã – Se virou indo em direção a porta – Mas não é algo para se dizer sem insultar a outra parte, agora se me dá licença.

A porta se fechou bruscamente deixando para trás gemidos e um rosto descontente. Tentando melhorar o clima ela se dirige até um aparelho descansando em cima de uma mesa só para apertar o botão fazendo o som explodir. A sala que antes era preenchida com gemidos agora fazia com que o próprio espelho vibrasse, a mulher se dirigiu até o homem devagar enquanto dançava.

– Que pena não é – Falou sentando novamente no colo do homem – Não vou poder brincar com você tanto quanto pretendia.

Ela começou a remover a blusa do homem expondo seu peito, pegou novamente a agulha e furou os mamilos dele o fazendo tremer – Não grite, não temos tempo para isso – disse enquanto ria. Sua mão começou a descer parando em um volume que havia se levantado.

– Não importa o quanto os seres vivos digam que odeiam a dor – Abriu o zíper da calça lentamente – Os homens sempre se entregam ao prazer que ela oferece depois de passar algum tempo comigo. Mas infelizmente não vou poder fazê-lo um de meus bichinhos, isso me parte o coração.

A linha da agulha traça seu caminho que começava nos mamilos, ia até o estomago e finalmente parando perto da virilha, ela olhou de longe só para levantar o seu dedão verificando se estava tudo certo, como se fosse uma pintura. Ele havia parado de gritar a muito tempo, tinha percebido que não valia a pena, pelo menos até o próximo ato, o grande final. Com o zíper aberto e seu membro ereto saindo pela abertura ela por sua vez cuidadosamente o segurou, fechou um dos olhos e introduziu a pequena agulho pela uretra ao mesmo tempo em que fazia movimentos giratórios deixando uma leve gota de sangue escorrer. A música se misturou aos gritos do homem que tentava de todas as formas se libertar, mas quanto mais ele se mexia mais dor sentia. De vez em quando ela com as mãos acompanhava a música fazendo gestos que somente maestros conheciam, seu público era seu próprio reflexo, sua orquestra era o próprio torturado, tudo havia se misturado em uma única coisa.

– Consegui! – Exclamou triunfante – Isso é mais difícil do que aparenta ser, tive que usar toda a minha experiente para inserir a agulha sem perfurar, se isso acontecesse ia parecer um espetinho.

– ……

– Oh! Me desculpe – Removeu a proteção da boca – Me diga o que se passa nessa menta.

– Me mate logo – Gritou.

– Estamos chegando lá senhor apressadinho, tem que ter um romance primeiro ou você acha que sou uma qualquer que vai direto ao ponto. Bom, dessa vez não poderei chegar ao fim da nossa pequena festa, tenho que ir. Mas não fique triste, preparei algo especial.

No exato momento em que a música parou para que a próxima viesse a mulher se aproximou do rosto dele, segurou os dois lados de seu rosto e então beijou a sua testa deixando uma marca de batom vermelho. O choramingo feito pelo homem se perdeu devido a próxima música que começou, o fim da festa estava próximo, o convidado logo teria que partir assim como seu anfitrião. Ela se levantou, colocou seu uniforme lentamente antes de se dirigir para a saída segurando as mãos atrás das costas.

– au revoir (Adeus), aproveite até o fim – O estralar de saltos foi ficando cada vez mais baixo -.

Logo em seguida a porta se fechou dando apenas um vislumbre do peito do homem, as palavras escritas eram tão bem-feitas que pareceu algo feito por um profissional.

“Estou na estrada para o inferno, abram caminho”.

Em seguida a porta se fechou e dentro um vapor quente saiu pela fresta inundando o corredor com o pungente cheiro de carne queimada.

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