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A Santa e o Bruxo

Capítulo 2 – A Santa e o Bruxo

MARTA SANGUINETTI – Oh, que gozo ver o meu m’nino tão bonito vir visitar essa velha…
JESUÍNO – Ora, que isso, tia? A senhora não é assim tão velha.
MARTA – O sol do Brasil nos maltrata, filhinho. Apeia! Eu cá chamarei o negro pra dare água e comida para o teu corcel.

Ela fez um sinal para o escravo, um negrinho de 15 anos, que se aproximava, já sabendo o que deveria fazer.

MARTA – Mas dize-me cá, pequeno Jesuíno, que contas tu lá da Europa? Tens visitado a Terrinha?
JESUÍNO – Eu estive em Portugal uns quatro anos atrás, tia. Afirmo que continua a mesma coisa. Dom João V ainda acredita que sendo um déspota, ele poderá reinar por muito tempo.
ROBERTO – Jesuíno! –Advertiu
MARTA – Deixe, filho. Vamos, conta mais.

Marta Sanguinetti é casada com Ottone Sanguinetti, mas é portuguesa, tendo vindo morar no Brasil pouco antes de se casar.

JESUÍNO – Infelizmente não tenho muito que contar de Portugal. Foi uma viagem muito breve. Eu estive de estalagem em estalagem com um amigo…
MARTA – Não vais me dizere que andaste com aquele filho d’uma égua chamado Volteire, como tenho ouvido falarem das vossas peripécias na Europa, meu m’nino.
JESUÍNO – Se a senhora não quer que eu diga, titia, não direi…
MARTA – Meu filho, aquilo não é companhia pra ti. Já viste as coisas horríveis que ele escreve sobre a Igreja? Deus lhe perdoe alma, pois é certo que estará a arder no Inferno. Ele e aquele Marquês de Pombal aqui no Brasil.
JESUÍNO – O Marquês um bom homem…
MARTA – Um iluminista! Coisa de Satanás.

Ela fez menção de se levantar, e de repente, sentou-se novamente e pegou Jesuíno pelo braço, perguntando:

MARTA – Tu não te tornaste um iluminista, não é meu filho?
JESUÍNO – Bem, titia…
MARTA – Meu filho, queres que teu pai esteja a revirar no túmulo? Esses enviados de Satã estão corrompendo a religião.
JESUÍNO – Tudo bem, titia, eu irei rever os meus conceitos. Está bem assim?
MARTA – M’nino de ouro!
JESUÍNO – Faço pela senhora, que nem é da minha família, mas cujo amor eu lhe tenho tanto, que lhe tenho da conta de uma irmã da pessoa que mais amo, que é a minha mãe.
MARTA – Ora bolas, e não fomos cá criadas juntas? Somos mais que irmãs.
JESUÍNO – E aonde anda o tio Ottone?
MARTA – Ah, o Ottone! Com essa mania que querere retornar ao Rio, enche-me de cabelos brancos.
JESUÍNO – A senhora não quer deixar a fazenda, tia?
MARTA – De jeito nenhum, pá! Mas sabes como é: a esposa deve seguir o marido em qualquer lugar que ele vá, valha-se, ó Virgem!
JESUÍNO – E que súbito interesse é esse de retornar ao Rio de Janeiro?
MARTA – Sabe-se lá! Depois que a Santinha e aquele filho de Satã morreram, ele não fala em outra cousa.
JESUÍNO – E a senhora tem alguma suspeita de o motivo que alguém teria para matá-los?
MARTA – Para matar o bruxo, todo mundo tinha motivos? Ele amaldiçoa nossa vila. Mas a Santinha, pobrezinha. E estava de casamento marcado contigo, não é mesmo?
ROBERTO – Mãe, vamos para com essa conversa desagradável?
JESUÍNO – Espere, Roberto. A senhora disse que todo mundo tinha motivos para matar o bruxo? Por quê? Ele fez algo para alguém aqui?
MARTA – Sabes como é Satanás. Manda seus filhos usarem suas artes mágicas para implementar curas, e depois trazer almas inocentes para o seu lado.
JESUÍNO – Quem era esse bruxo?
MARTA–O nome del’ era Héctor Sammala. Ele veio da Espanha, e disse ter viajado todo o mundo. Ele chegou aqui a curar e a fazer maravilhas, a criare remédios, e a enganare a nossa gente com seus fenômenos baratos.
JESUÍNO –A senhora lembra do dia em que ele chegou aqui?
MARTA – Como se fora hoje…

FLASHBACK

“Foi numa tarde de domingo uns dois anos atrás. Estava a chovere muito e uma enchente horrível a se levantare nos dois rios e a inundare todo o nosso pasto. Muitos animais morreram naquela época. O Bruxo chegou em um barco pelo rio, atracando-o na parte do rio das Velhas, e a subir até a margem, que naquela ocasião já estava a transbordare. A água turva a entrare em nossas casas. Quando ele saiu do barco, estava a caire uma chuva bestial, e todos achavam que aquele homem tinha algo a ver com tamanha desgraça. Poucas vezes vimos uma chuva como aquele ano.
O bruxo deixou o barco, e estava a trajare uma capa preta com capuz, e tinha com ele alguns escravos, que estavam a levare a sua volumosa bagagem. Ele ia morar no velho casarão perto da Igreja. “Um casarão que já devia estare lá há mais de um século…”
Eia pois que ele foi morar naquela casa. Era realmente uma casa muito grande e luxuosa, diferente das que tinham por aqui. E depois que ele entrou, raramente se via el’ a andar por aí. Era um homem bem estranho, e quase nunca era visto sair durante o dia. Falava-se até que ele era um Incubo.

MOMENTO PRESENTE

JESUÍNO – Um o que?
ROBERTO – Incubo, um vampiro. Uma lenda romena.
JESUÍNO –Ah, claro!

FLASHBACK

Pois. Ele parecia ser muito rico, pois tinha muitos escravos, que lhe compravam as coisas, os víveres da casa, cuidavam muito bem do jardim e dos animais que el’ adquiriu.
O fato de el’ ter chegado em um dia como aquele, por si já foi uma curiosidade sem par na Barra. Todos ficaram a olhare de suas janelas, aqueles que podiam, pois como podes ver, casas pequenas não têm varandas. Mas os que podiam, estes sim, ficaram a futricare pela janela, o bruxo a chegare em casa. Ele dava ordens muito calmamente e parecia ter bom trato com os escravos, todos muito bem vestidos e a julgar pela chuva, pareciam andar limpos também.
Era um gajo alto e muito garboso. Bronzeado como todos os espanhóis. Nos dias seguintes é que vimos os seus cabelos rebeldes e seus olhos azuis maravilhosos. Naquele dia, raios caíam e parecia mesmo que o mundo estava prestes a acabare. Muitos animais morreram, atingidos por coriscos, afogados ou famintos, pois que só havia água em todos os lugares. Muitas casas caíram também, e muitos pobres ficaram sem lar. Eu mesma acolhi alguns desses desgraçados no paiol lá atrás.
E esse gajo, depois de ter se acomodado, saiu para a frente da casa, a trazere consigo o que parecia ser uma pequena adaga, brilhante que só. O cabo parecia ser feito de osso. E de fato, viemos a saber, mais tarde que era sim feito de osso. Osso humano. Ele ergueu essa adaga e falou algumas palavras que parecia ser latim, e para a nossa surpresa, e horror ao mesmo tempo, a chuva parou de uma vez. O céu se abriu e ficou tão azul, de forma como há muito tempo nunca foi visto. Aquele homem usou de poderes sobrenaturais para dominar a natureza.

MOMENTO PRESENTE

JESUÍNO – A senhora quer me dizer que ele parou a chuva apenas usando palavras mágicas e um amuleto?
MARTA – Ora pois! E não foi o que eu disse?
JESUÍNO – Desculpe-me, titia, mas isso é difícil de acreditar!
MARTA – Pois tu podes perguntar a qualquer aldeão. Pergunta e terás a mesma resposta. Esse homem usou os poderes de Satanás para dobrar uma força de Deus.
JESUÍNO(Murmurando) – Voltaire adoraria ver isso.
MARTA – É o que?!
JESUÍNO – Nada, tia. Continue, por favor.

FLASHBACK

Pois. Esse homem ficou tão famoso aqui em Barra do Rio das Velhas, que muitas pessoas se acorriam a ele com as mais variadas moléstias. E te digo com toda certeza, todos eles saíram da sua casa curados.
E um dia a Santinha sentiu-se muito mal. O velho Malheiros chamou um médico do Rio de Janeiro, mas não havia recursos, e o médico havia condenado a Santinha à morte. Veja bem, uma menina de Deus. Recatada, religiosa, um verdadeiro partido para um homem de bem. Mas o médico não podia curá-la. O médico retornou ao Rio de Janeiro, pesaroso pela inevitável morte da criança. Mas não dona Conceça. Ela não aceitou e pediu a Malheiros que autorizasse levá-la ao bruxo.
MALHEIROS(Aos berros) – Minha filha na casa daquele servo de Satanás? Nunca. Prefiro vê-la morta.

Mas ele não estava em seu perfeito juízo. Essa foi a ocasião em que ele e o velho Jesuíno, vosso pai ficaram inimigos por causa de um segredo, como bem sabes a história. Uma situação até hoje inexplicada. E dona Conceça, já sabendo disso, à noite, deu um chá para o esposo beber, e este adormeceu profundamente, e ela então me pediu que a acompanhasse até a casa do Bruxo. Que o sangue de Jesus lave minha alma e proteja meus olhos pelo que eu vi lá dentro. Imagens de Satanás: uma espécie de bode com corpo de mulher, seios à mostra e sentado com as pernas cruzadas.”
JESUÍNO – Havia algo escrito?
MARTA – Sim, havia. Algo como “Solve Coagvla”. Que Deus me perdoe por eu citar essa fórmula satânica, que nem mesmo sei o significado.
JESUÍNO–(Murmurando)Bafomé!.
CONCEÇA – Senhor Bruxo, por favor, a minha filha irá morrer. Podes curá-la? Pelo amor de Deus.
BRUXO – Ella no va a morir. No se preocupe. Lanzar allí.– Apontou para um desenho no chão

Era um desenho no meio de uma sala. Uma estrela de cinco pontas dentro de um círculo. Um símbolo do Demônio. Eu quis pegar a m’nina e correndor, mas a mãe estava disposta a qualquer sacrifício pra que ela não morresse. Depois, era só consagrá-la à Virgem Maria, e ficava tudo bem.
Eis então que ele disse a cabala de palavras incompreensíveis, que deve ter aprendido lá na Europa, ou no Oriente, vai-se saber. E nesse momento, em que ele ergueu a mão, segurando a tal adaga, e foi neste instante que um trovão ribombou de tal maneira, que parecia que o mundo estava a cair. Juro-te, meu pequeno, que não estava a chover. O céu estava límpido como tal, e as estrelas de tão grandes, parecia uma noite de junho, mesmo não sendo. E isso não foi tudo. Obedecendo às palavras mágicas, havia algumas velas nas pontas das estrelas, que se acenderam sozinhas. O Bruxo então cortou seu próprio dedo mindinho com a faca afiada, ele pingou seu sangue na menina e disse:
BRUXO – Vamos ahora a la vida, chica! Yo te lo ordeno!
E assim foi, que estrebuchando, a santinha começou a tossir desesperadamente, sendo preciso que o Bruxo a levantasse. A fazê-lo, pudemos notar que a pobrezinha vomitava uma massa vermelha, que parecia ser um animal esmagado em seu ventre. A coisa mais nojenta que meus olhos já se permitiram ver. A ao botar tal coisa disforme para fora, ela ficou curada.
Dona Conceça abraçou a filha aos prantos, e depois, se colocando de joelhos diante do Bruxo, beijou-lhe a mão e falou:
CONCEÇA – Estou em dívidas com o senhor, senhor Bruxo…
BRUXO – Podes me chamar de Héctor, Madame.
CONCEÇA – O senhor fala a minha língua?
BRUXO – Eu falo sete idiomas.
CONCEÇA – Pois bem, meu senhor. Peça o que quiser. Eu sou rica, tenho muitos bens, e quero quitar os meus débitos pelo senhor ter salvo o meu maior bem.
BRUXO – Não fui eu quem a salvei, senhora. Foi a sua vontade. Agora volte para casa em paz, e a mantenha afastada das pessoas por três dias.
–Sim, senhor.
E foi o que presenciei.”

MOMENTO PRESENTE

JESUÍNO – Isso é realmente difícil de acreditar…
MARTA – Podes perguntar a qualquer pessoa da Vila. Aconteceu exatamente isso que eu disse.

Mesmo assim, Jesuininho não acreditou muito na história, e respirou fundo, de frustração. Ele já conhecia bem a cabeça meio desvairada de dona Marta Sanguinetti. Quando ela saiu para buscar mais bolinhos, Jesuíno cochichou com Roberto:

JESUÍNO – Tem algum propósito isso que ela está falando?
ROBERTO – O pior é que sim. Muita gente conta a mesma história.
JESUÍNO– Me desculpe, mas eu não creio.
ROBERTO – Vindo de você, isso não é surpresa.
JESUÍNO – Eu precisava ter conhecido esse Bruxo.
ROBERTO – Muita gente o conheceu. Você conseguirá informações com muitas pessoas da vila. Depois da cura da Santinha, muitos outros desesperados o procuraram.
JESUÍNO – E o Visitador do Santo Ofício? Não soube disso? Não houve retaliação da Igreja?
ROBERTO – Você vai ter muita oportunidade de saber disso. Vamos falar agora de você, da sua viagem à Europa.
JESUÍNO – Eu vou lhe contar um segredo, que irá ficar apenas entre nós dois. As pessoas da Vila não podem ficar sabendo.
ROBERTO – Prometo.
JESUÍNO – Eu fui iniciado na Franco-Maçonaria…
ROBERTO – Como é que é?!!!

Corta para um cenário no matagal.
Era pleno mês de agosto, quando o sol esturricava todas as plantas, formando uma paisagem com diversos tons de cinza. Cavalos aproximavam da cabana de Machulla. A fumaça que dali emanava tinha um cheiro forte de algo podre se queimando.

CELSON CANAVIEIRA – Que raio de “sinagoga” é essa que essa véia tá cozinhano lá “drento”
CARCARÁ – Ela deve de tá é cuzinhano gente, meu capitão! Então o senhor num sabe que ela come gente?
CELSON CANAVIEIRA – Bobage!

Celson Canavieira é um cangaceiro. Veio do Sul da Bahia, atraído pelo ouro da Barra e pelos diamantes de Jequitaí. E ficava na região, saqueando aqui e alí. Poderia ser um homem bonito, não fosse os “enfeites” extravagantes que ele usava e a pele muito queimada de sol. Era algo e tinha bom porte. Apesar de baiano, poderia se passar por um europeu, por causa dos cabelos acaramelados, bem claros, o nariz pontudo, diferente dos nordestinos. Os dedos eram cheio de anéis. Na cabeça, um chapeuzinho feito de couro, e um par de óculos de aros circulares e bem pequenos.

CELSON CANAVIEIRA – Ô, de casa!

A velha Machulla apareceu, o que fez com que os homens de Celson se enchessem de temor.

MACHULLA – Que é que ocê quer?
CELSON CANAVIEIRA – Voismercê sabe muito bem o que eu quero, num carece de ficar falano. Carcará, manda os home aí e pegar o baú.

Carcará fez o sinal da cruz.

CARCARÁ – Cruz em credo,meu Capitão. Essa muié é casada com um “Cramunhão”.
CELSON CANAVIEIRA – Eu vou mandar é voismercê encontrar com o Cramunhão, se num fizer o que eu mando agora, num sabe?

Tremendendo de medo, Carcaré fez sinal aos homens que avançassem, mas Machulla ficou na frente e olhava Carcará nos olhos, o que fez com que ele a temesse ainda mais. Ele então, mais uma vez parou.

MACHULLA – Eu juro pra ocê, Capitão. Num tem baú nenhum aqui “drento”. Mas ocê vai arrepender se seus home continuar avançando.

Celson Canavieira desceu do cavalo e ficou de pé diante da velha.

CELSON CANAVIEIRA – Ele num tá aqui então…
MACHULLA – Tá não!
CELSON CANAVIEIRA – E eu posso entrar, para ver?
MACHULLA – Apea…

Machulla se afastou e Canavieira entrou na frente. Realmente, com apenas dois cômodos, não dava para esconder muita coisa, e o baú não estava mesmo lá.

CELSON CANAVIEIRA – Me deram a certeza de que o “tar” de baú ia tá aqui. O que foi que voismercê fez com ele?
MACHULLA – Capitão. Quem põe a mão naquele troço é amaldiçoado…

O capitão sacou seu bacamarte e apontou bem no pescoço de Machulla.

CELSON CANAVIEIRA – eu sou protegido de meu “padim” Padre “Ciço”(Cícero), e da Virge Santíssima, Mãe do nosso Senhor, pra quem já mandei foi muitas alma. E posso mandar a de voismercê agora mermo, se num me falar bem claramente o que foi feito com a merda do baú.
MACHULLA – Capitão…
CELSON CANAVIEIRA – Eu num to brincano, Machulla.
MACHULLA – Os índio… Eles tão tomando conta pra mim, porque eu sabia que mais cedo ou mais tarde, ocê ia aparecê. Eu num tenho medo de cangaceiro não, Capitão. Se quiser atirar, atira, mas vai ser perseguido pelos espírito mais “trevoso” pelo resto da sua vida.
CELSON CANAVIEIRA – Eu num acredito nessas imundiça.

Celson Canaveira deixou a cabana da velha Machulla. Quando eles saíram uma outra pessoa saiu do seu esconderijo.

MACHULLA – O sinhô acha que eles vão na aldeia?
OTTONE SANGUINETTE – Nem Celson Canavieira seria tão burro…

Fim do 2º Capítulo

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