Capítulo 15 – Recomeçar
CENA 01. FACHADA DE RESTAURANTE. EXT. NOITE.
Continuação imediata da última cena. Davi acaba de rolar escada abaixo. Está desacordado no chão. Filipe em desespero, tentando reanimá-lo. Gilda nervosa.
FILIPE: – Davi!
CAM vai abrindo em dolly out. Corta para:
CENA 02. HOSPITAL. QUARTO. INT. NOITE.
Quarto de hospital particular. Vemos Davi em segundo plano, dormindo no leito, enquanto Filipe e Gilda ouvem o médico:
FILIPE: – E então, doutor, o que deu os exames?
MÉDICO: – Essa perda repentina de consciência, que chamamos de síncope, é provocada pela falta de fluxo sanguíneo no cérebro.
GILDA: – E…?
MÉDICO: – É um sintoma geralmente associado a doenças cardiovasculares, mas há uma série de causas. Muitas vezes, lamentavelmente, não é possível identificá-las.
GILDA: – Doutor, por favor, vá direto ao ponto.
DOUTOR: – Infelizmente, eletrocardiograma não apontou a etiologia da síncope do paciente.
FILIPE: – Como assim?
MÉDICO: – Como eu disse, nem sempre é possível identificar as causas desse sintoma. Mas vamos fazer uma bateria de exames amanhã logo cedo. Assim, teremos um diagnóstico preciso e completo.
FILIPE: (arqueja) – Eu posso ficar aqui? Posso passar a noite com ele?
MÉDICO: – Você é parente?
GILDA: – Namorado.
MÉDICO: – Pode sim. Mas só você.
Gilda afaga Filipe, que está abatido com tudo isso. Ele vai para perto do leito de Davi e acaricia seu rosto. Corta para:
CENA 03. CASA DE LORENZO. QUARTO. INT. NOITE.
Na cama, Lorenzo passa um algodão embebido em remédio nas costas nuas de Júlia, que ganhou alguns hematomas na surra de cinto. Ela sentada. Rosto molhado ainda de lágrimas. Lorenzo no papel de bom marido.
LORENZO: – Me perdoe, meu amor. Não tive intenção de te machucar. Prometo que não vai mais se repetir. (T) Mas você precisa entender que não pode afrontar o seu marido. Você tem que me obedecer, minha querida.
JÚLIA: – É assim que você diz que me ama? É dessa maneira que você demonstra o seu amor?
LORENZO: – O amor não é só poesia, não é apenas um sentimento que mexe com as nossas emoções… “Melhor é a repreensão franca do que o amor encoberto”, Provérbios 27:5.
JÚLIA: (levanta-se) –O que foi, virou cristão de uma hora pra outra?
LORENZO: – No hospital, a única visita que eu recebia era a de um pastor, além da minha mãe, claro. Foi uma experiência interessante.
JÚLIA: – Você é muito cínico, Lorenzo.
LORENZO: – Você fica ainda mais bonita assim, bravinha, sabia?!
JÚLIA: – Lorenzo, por favor, em nome dessa fé que você diz que tem agora, me deixa em paz, deixa eu seguir a minha vida. O nosso casamento acabou, fracassou, você tem que entender isso. Essa sua obsessão não é normal, você precisa se tratar, procurar ajuda, um grupo de apoio, sei lá… Mas não dá mais pra gente continuar juntos.
LORENZO: – Aí você vai correr pros braços do seu amante da luz vermelha, o fotógrafo filhinho da mamãe? Sabe quando isso vai acontecer? Nunca! Você é a minha mulher e continuará sendo até que a morte nos separe.
Júlia solta um pequeno berro de ira e desespero. Deixa-se cair sentada no chão, como se não tivesse mais forças.
JÚLIA: – Eu quero o meu filho. Eu preciso vê-lo. Ou pelo menos saber pra onde você o levou. Por favor?!
LORENZO: – Amanhã. Amanhã, meu amor. Vamos dormir, já é tarde e quero acordar bem cedo. Deite aqui ao meu lado.
Júlia levanta-se do chão e deita de costas para Lorenzo, que a abraça.
LORENZO: – Boa noite, querida.
Júlia muito triste. Corta para:
CENA 04. APART. DE ABEL. QUARTO. INT. NOITE.
Abel e Leonor estão deitados na cama. Acabaram de transar, mas algo deu errado. Ele olha pro teto, ela abraçada a ele.
LEONOR: – Relaxa, meu amor, isso acontece.
ABEL: – Tem acontecido mais do que eu gostaria.
LEONOR: – Stress, cansaço, preocupação… Essa história do filme, essa chantagem ridícula da Gilda, isso tudo tem te afetado muito.
ABEL: – É, poder ser.
LEONOR: (T) – A namoradinha do Carlos Eduardo sumiu depois do acidente.
ABEL: – Sumiu? Como assim “sumiu”?
LEONOR: – Sumiu. Aliás, acidente provocado pelo marido – ou ex-marido – da fulana, o tal Lorenzo de que já te falei. Pelo menos foi isso que ouvi o Carlos comentando.
ABEL: – Então ela foi raptada pelo tal ex-marido argentino?!
LEONOR: – Um rapto bem providencial, diga-se de passagem. Espero que esse Lorenzo enjaule essa mulherzinha e jogue a chave fora. Assim eu me verei livre dessa marafona infeliz sem ter que fazer nenhum esforço.
ABEL: – Que coisa horrível de se dizer, Leonor! Será que você não pensa na felicidade do seu filho? O Kadu deve estar sofrendo muito com isso tudo.
LEONOR: – A felicidade do Carlos Eduardo é bem longe dessa mulher. Você sabia que ele ficou diferente comigo, desde que eu me opus a esse romance estapafúrdio? Não me trata mais com o carinho de antes, fala comigo com uma certa rispidez…
ABEL: – Também pudera. Você coloca um detetive no rastro da moça, levanta um verdadeiro dossiê sobre o passado dela, se coloca terminantemente contra o romance dos dois… Em que século você vive, Leonor? Francamente!
Corta para:
CENA 05. RIO DE JANEIRO. EXT. DIA.
Música: “Chega de Saudade” – Roberta Sá. Stock-shots do amanhecer no Rio. Takes clipados. Conclui na fachada da casa de praia de Lorenzo. Corta para:
CENA 06. CASA DE LORENZO. QUARTO/BANHEIRO. INT. DIA.
Júlia acorda. Abre os olhos lentamente. Olha para o lado e não vê Lorenzo na cama. Observa que há uma bandeja com café da manhã ali perto. Levanta e averigua se a porta está trancada. Está. Vai pro banheiro.
Corta descontinuamente para o banheiro. Entra música: “Kiss Me” – Ed Sheeran. Júlia nua e pensativa debaixo da ducha. Ainda com a música, entra flashback de alguns momentos românticos dela ao lado de Kadu. Clima de saudade. Volta pra Júlia no tempo presente. Ela chora. Corta para:
CENA 07. MANSÃO DE LEONOR.QUARTO DE KADU. INT. DIA.
Segue a música. Deitado na cama, Kadu admira uma foto de Júlia no celular. Triste. Saudoso. Tempo nisso. Corta para:
CENA 08. HOSPITAL. SALA DE MÉDICO. INT. DIA.
Abre em imagens de um exame no computador. Vemos que um médico está analisando-o, dando uma última olhada. Davi e Filipe, sentados do outro lado da mesa, aguardam o médico dizer alguma coisa.
FILIPE: – Estamos esperando, doutor. Dá pra dizer o que deu nos exames?
DAVI: – Não é nada de mais, meu amor. Eu confesso: tenho me alimentado mal. Dificilmente almoço. É tanto trabalho na produtora, acabo esquecendo, deixando pra depois… Ou vai ver é coluna. Essas dores nas costas só pode ser isso/
MÉDICO (corta) – É um tumor.
DAVI: – Oi?
MÉDICO: – Não há outra maneira de dizer isso, Davi: você está com um tumor alojado na espinha dorsal. É um glioma, que está crescendo em caráter infiltrativo e destruindo os tecidos/
DAVI: (corta) – Como assim? Isso não tem cabimento! Eu sou uma pessoa saudável, pratico atividades físicas, me alimento bem… Tudo bem, não tenho me alimentado como deveria esses dias, então pode ser que eu tenha no máximo uma anemia…
FILIPE: – Calma, Davi.
DAVI: – Como “calma”? Como é que você me pede calma?
MÉDICO: – Tudo bem, essa é uma reação natural, compreensiva… Davi, nós estamos falando de um tumor maligno, isso não tem nada a ver com hábitos alimentares, atividades físicas, nada disso… Ainda vamos fazer uma biópsia, mas a partir de agora você precisa começar a lidar com o fato de que está com um câncer.
Davi sente aquele choque, como se a ficha caísse. Deixa cair uma lágrima. Estremecido, Filipe pega a mão de Davi sobre o braço da cadeira, dando força. Corta para:
CENA 09. PRAIA. EXT. DIA.
Música: “Eternity” – Robbie Williams. Sobre uma grande pedra, vemos Davi sentado, triste, olhando o mar, as águas que batem nas pedras… Filipe, lá atrás, o observa. Chora em silêncio. Tempo nisso. Corta para:
CENA 10. PRODUTORA GALVÃO. ESTÚDIO. INT. DIA.
Abre em Jojô, um tipo afetado, cheio de tiques, vestido excentricamente. Uma figura por volta dos 30 anos. Ele enxuga o suor da testa, cansado de esperar. Está no meio de uma multidão de rapazes alvoroçados. Alguns no mesmo estilo dele. Cada um com uma senha pendurada no pescoço como um crachá. Uma drag queen de peruca verde por nome Mary Shiva se aproxima:
MARY SHIVA: – Também veio pra entrevista?
JOJÔ: – Pois é.
MARY SHIVA: – Prazer, Mary Shiva.
JOJÔ: – Jojô.
Cumprimentam-se com beijo no rosto.
MARY SHIVA: – Trabalhar como assistente dessa Gilda Lazarotto não deve ser nada fácil. Soube que ela tem um gênio fortíssimo, mandona, intolerante… Eu só estou me prestando a isso porque preciso juntar uma grana pra passar uma temporada em Las Vegas. Meu show vai lacrar e conquistar a América, meu bem! ‘Mary Shiva para Maiores’!
JOJÔ: – Ô Mary Shiva do Pantanal, acho que você terá de recorrer a outros meios para conseguir os seus dólares, porque esse emprego aqui já é meu. Dá licença.
Jojô vê que chegou a sua vez de ser entrevistado. Vai até a mesa onde está Gilda Lazarotto. Alguns funcionários da produtora por perto. Movimentação. Gilda analisa o currículo dele, que acaba de sentar numa cadeira, um pouco emocionado. Ela vai lendo:
GILDA: – José Evancleison do Nascimento…
JOJÔ: – Ninguém é perfeito, não é mesmo?! Nossa, que emoção estar diante de você!
GILDA: – Formado em Artes Cênicas…
JOJÔ: – Curso à distância.
GILDA: – Já trabalhou pra Marieta Severo… Muito amor pela Marietinha!
JOJÔ: – Sim, ela é maravilhosa, minha madrinha, uma pessoa/
GILDA: (corta, alterada) – Maria Zilda?!?!
JOJÔ: – Bethlem!
GILDA: – Você trabalhou pra essa essa mulher?!
JOJÔ: – Sim, porquê?!
GILDA: – Essa lacraia de asas, essa urutu do rabo amarelo teve a audácia de roubar o meu papel em ‘Guerra dos Sexos’. Me passou a perna, jogou sujo, fez um teste melhor que o meu… Frustrou o meu sonho de fazer televisão. Você não serve pra trabalhar pra mim. Dá licença. (alto) Próximo!
JOJÔ: – Mas/
GILDA: – Dá licença!
JOJÔ: – Eu sou muito seu fã, Gilda! Você pra mim é a melhor. Deusa suprema do cinema. Já vi todos os seus filmes, tenho todas as revistas com você na capa, meu quarto é todo forrado com fotos suas… Por favor, me deixe pra trabalhar pra você, é o sonho da minha vida!
GILDA: – Hummm… é mesmo?
JOJÔ: – Juro! Olha só…
Jojô levanta e mostra uma tatuagem escrito ‘Gilda Queen’ abaixo do umbigo.
JOJÔ: – Você é tudo pra mim!
GILDA: – Nossa! (pensa rápido) Você tem uma carta de recomendação da Marieta? Se tiver, tá contratado.
Jojô vibra. Os outros candidatos revoltados ao fundo, inclusive Mary Shiva. Corta para:
CENA 11. APART. DE GILDA. SALA/COZINHA. INT. DIA.
Jojô deslumbrado por estar no lar da estrela que tanto admira. Gilda acaba de preparar dois drinks. Jojô admira um enorme quadro na parede de uma pintura belíssima de Gilda.
GILDA: – Lindo, não?
JOJÔ: – É a primeira vez que vejo a imagem de Deus!
GILDA: (ri e dá um drink a ele) – Ganhei de um fã. Achei tão fantástica que decidi colocá-la aqui, embelezando a minha humilde sala.
JOJÔ: – Eu tô tremendamente extasiado!
GILDA: – Mas vamos deixar de conversa fiada. Eu te trouxe aqui pra gente dar início imediato aos trabalhos.
JOJÔ: – Claro! Eu tô louco pra começar a lhe servir, Miss Laza.
GILDA: – Hã? Tá, tá, tudo bem… Bom, você será um assistente pau para toda obra. Será bem pago pra isso. Vai me ajudar a decorar texto, cuidar da minha agenda, me acompanhar nas gravações etc. Entendido?
JOJÔ: – Perfeitamente.
Gilda pega um caderno bastante volumoso na mesinha de centro e entrega a ele:
GILDA: – Isto é o roteiro. A sua primeira missão é decorar isso tudo.
JOJÔ: – Mas eu pensei que/
GILDA: (corta) – Você tem que estar por dentro de tudo, criatura. Tem que estar por dentro de todas as desilusões de Olívia Watterson. Vou tomar um banho e volto pra gente começar a passar o texto. Eu quero estar afiadíssima nos ensaios.
Gilda sai. Jojô fica com o roteiro nas mãos, com cara de quem segura uma batata quente. Corta para:
CENA 12. APART. DE DAVI. QUARTO. INT. DIA.
Davi deitado na cama. De lado, com o rosto virado pro criado-mudo. Triste. Filipe entra e deita. Carinhoso.
FILIPE: – Vai ficar tudo bem. Você ouviu o médico dizer: a quimioterapia vai reduzir o tumor ao máximo e depois você se livra dele de uma vez por todas numa cirurgia de nada. (T) Não fica assim, eu tô aqui contigo, a gente vai enfrentar isso juntos.
Filipe faz cafuné na cabeça de Davi, que segue na mesma posição. Corta para:
CENA 13. RIO DE JANEIRO. EXT. NOITE.
Música: “Waiting For Love” – Avicii. Imagens clipadas do entardecer para o anoitecer no Rio. Corta para:
CENA 14. MANSÃO DE LEONOR. QUARTO DE KADU. EXT. DIA/NOITE.
Abre em Kadu arremessando um vaso com tudo na parede. Ira. Horácio entra em seguida.
KADU: (berro) – Droga!
HORÁCIO: – O que tá acontecendo, Kadu?
KADU: – Liguei agora pra delegacia, pela milésima vez hoje, e eles não têm nenhuma novidade. Nada da Júlia, nada do Javier… Eu não tô mais aguentando isso!
HORÁCIO: – Caramba. E a perícia no seu carro, não deu em nada?
KADU: – Nenhum sinal. Desgraçado!
HORÁCIO: – Ele não deve ter levado a Júlia e o menino pra muito longe. É bem provável que nem tenha saído do Rio. A menina que veio da Argentina com ela, a babá, ela não sabe dizer se esse Lorenzo tem residência aqui?
KADU: – A Belita já foi à delegacia, já disse tudo que possa servir de pista… Mas ela não sabe dizer se esse infeliz tem casa aqui no Rio. (chora e abraça Horácio) Ah, pai, eu tô ficando com medo, eu tô com muito medo do fim dessa história.
HORÁCIO: – Calma, meu filho. Tudo vai se resolver.
Corta para:
CENA 15. CASA DE LORENZO. QUARTO. INT. NOITE.
Júlia deitada no tapete. Está vestida num roupão. Triste. Lorenzo destranca a porta e entra. Traz uma sacola de loja e deixa sobre a cama.
LORENZO: – Amor?! O que você faz aí no chão? Está triste? É saudade de seu maridinho? Vamos, levante-se, me dê a mão.
Júlia levanta sem dar a mão para Lorenzo. Não olha na cara dele. Ele a abraça pelas costas.
LORENZO: – Não gosto de te ver assim, meu bem. Você não tem motivos pra isso… Você é linda, tem um marido que te ama, um filho que só te dá alegrias, dinheiro, conforto… uma vida de rainha.
JÚLIA: – Me solta. Não encosta em mim. (sai do abraço)
LORENZO: – Mas o que é isso? É assim que você me trata? É assim que você trata o homem que é louco por você, que te faz feliz, que te cobre de mimos… (pega a sacola) Olha só, comprei pra você. Mais um presente. Não vai abrir pra ver o que é?
JÚLIA: – Me deixe em paz.
Lorenzo tira um vestido branco da sacola. Longo e bonito.
LORENZO: – Veja só. Vi numa vitrine e achei a sua cara. Você gosta?
JÚLIA: (olha de lado) – É horrível.
LORENZO: – Vista. Experimenta pra eu ver.
CORTE DESCONTÍNUO. Júlia já dentro do vestido. Totalmente infeliz.
LORENZO: – Sublime! Tá vendo só como eu conheço todas as suas medidas, meu amor?! Caiu perfeitamente em você. Branco, pra combinar com a paz de espírito do nosso casamento.
Júlia pega um copo de suco de frutas vermelhas que ficou do café da manhã e entorna no vestido, manchando-o. Lorenzo se enche de ódio. Aquela pausa tensa. Ele dá um sonoro tapa no rosto de Júlia, que não se deixa humilhar.
LORENZO: – Sabe o que você merece?
JÚLIA: – O quê? Vai me espancar outra vez?
LORENZO: – Não, essa brincadeira já perdeu a graça. Vou fazer uma muito melhor.
Lorenzo tira um canivete do bolso da calça. Encosta a lâmina no rosto de Júlia. Alta tensão.
LORENZO: – Vamos fazer uma visitinha ao passado, meu amor!
De repente, com brutalidade, ele corta o vestido com o canivete na altura das coxas de Júlia. No pavor dela, efeito e corta para:
FINAL DO CAPÍTULO 15