Capítulo 1 – A Santa e o Bruxo
CAPÍTULO 1
Num sertão daqueles, polícia nunca foi. A maior autoridade que eles conheciam era o tenente-coronel Cipriano Medeiros Lima, que na verdade, nunca teve patente oficial. Mas era prática do império conceder patente a grandes proprietários de terra, para que eles tivessem poder de polícia, e ajudassem o imperador a governar as terras onde o Estado não podia ir, era normal. Por isso, existiam muitos coronéis, majores e tenentes. Cipriano Medeiros Lima, apesar de possuir a patente concedida por El Rei, de Tenente-Coronel, entregue pelo próprio Marquês de Pombal, na verdade, todos o conheciam como major. Major Cipriano, Barão de Jequitaí. Grande produtor de diamantes, cana-de-açúcar e peixe-seco. E apesar de ser mulato, era o maior proprietário de escravos de todo o sertão Norte.
Pois foi o Major Cipriano, com seus comandados é que chegaram para apurar o caso. Desceu com a dignidade que lhe cabia, do seu cavalo, e foi prontamente atendido por um negro que o seguia por todos os lugares. O negro tinha que adivinhar quando o Major tinha sede, e geralmente ele o fazia, e já lhe servia logo com a chamada “bota espanhola”, de água da cacimba da sua fazenda em Jequitaí. Único local onde ele retirava água para beber. A sua presença era tão temida e respeitada, que ninguém sequer lhe olhava nos olhos. Ele desceu do cavalo, e não houve sequer uma pergunta, ou murmuração, ou sequer um comentário.
Major Cipriano era alto, e tinha a pele escurecida pelo sol, e escura pelo fato de ser mulato. Tinha os cabelos agrisalhados e um olhar cansado, de tanto ter que percorrer as suas vinte e duas fazendas, cujos capatazes eram apenas mulheres, todas mães de filhos seus. Ele andava bem trajado, de paletó e gravata à moda do imperador, com um fino laço preto, e uma abotoadura de diamante bem no meio. Os dedos eram enfeitados com anéis de ouro, incrustados de diamantes, e dois dentes da frente reluziam ao sol, por serem feitos de ouro. Os demais dentes eram cariados. O olho era azul. Herança do anterior Barão de Jequitaí, de quem herdou o título, as terras e o poder. Homem, que o adotou, pois era um moleque órfão, que lavrava madeira para ganhar a vida, e que somente mais tarde, perto da morte, o então moribundo Barão de Jequitaí confessou que o mulatinho era filho seu. Menino de sorte, tornou-se um dos homens mais ricos e poderosos da Colônia.
A voz era grave como um trovão.
MAJOR CIPRIANO – Desamarrem os pobres desgraçados. Vamos dar um enterro cristão pAra moça. O cabra é consagrado a Satanás, então, se ninguém tiver nada contra, vamos jogar ele no rio.
PADRE VITAL – O senhor me desculpe, coronel…
O padre não terminou de falar, e já teve perto da sua garganta o afiado facão de um escravo, e os dois canos da sua espingarda bem na sua fronte.
MAJOR CIPRIANO – Eu não sei quem deixou um padre negro fazer o serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo aqui nas minhas terras, mas sei que aqui o senhor não apita, padre. Jogue o bruxo imundo no rio!
Os escravos fizeram menção de obedecê-lo, mas, mas outra voz de trovão os fez parar:
JESUÍNO (FILHO)–Não! Vamos investigar primeiro!
Todos olharam para a origem da voz. Era de um homem bonito, alto, que usava os cabelos cortados à moda dos ingleses. Usava uma fina barba e roupas européias, apesar do calor infernal. A pele era muito branca, o olhar impetuoso, que fitou Cipriano à altura.
MAJOR CIPRIANO – Ocê quem é?
JESUÍNO – Jesuíno. Filho do velho Jesuíno..
O nome causou rebuliço. Ninguém o estava reconhecendo, pois ele havia saído molecote da Barra. Agora era um homem feito.
ANA – Jesuininho! –.
JESUINO – Mamãe…
ANA – Jesuininho. Você É um homem feito. Seu pai teria muito orgulho de vê-lo assim.
Ana teve uma fina educação do Rio de Janeiro, freqüentando inclusive o Palácio do Marquês de Pombal, onde ela conheceu Jesuíno, em um baile.
JESUÍNO – Perdoe por eu não ter vindo no velório do meu pai, mamãe. Eu tive muitos impedimentos…
Nesse momento, um breve passado veio à tona, e Jesuíno se viu na Alemanha, ao lado de um homem que se tornaria um temerário conspirador contra o sistema vigente: Adam Weishaupt(personagem real – famoso maçom do século XVII, fundador real sociedade secreta Iluminados da Baveira, ou simplesmente Illuminati) . Eles haviam acabado de lutar com espadas, e Weishaupt demonstrava ser um ótimo esgrimista. Depois da luta, Weishaupt, muito bem relacionado, havia acusado Jesuíno de ter-lhe roubado. E Jesuíno foi preso, tendo passado várias semanas no cárcere, até ser visitado por um importante advogado do reich, que o libertou.
De volta ao presente, seus devaneios foram interrompidos por Major Cipriano.
MAJOR CIPRIANO – Então ocê é o filho do maluco do Jesuíno velho…
Essa expressão fez o sangue ferver nas veias de Jesuíno e nesse momento ele sacou sua pistola para o major, e gritou:
JESUÍNO–Você vai retirar essas palavras, seu desgraçado!
Mas ao olhar ao seu redor, viu que tinha outros seis negros, todos armados e apontados para a sua cabeça. Cipriano sequer piscou.
MAJOR CIPRIANO – Ocê pode me matar, mas não vai sair daqui vivo, e vai dar mais tristeza pra sua mãe. Pode escolher, moleque.
ANA – Meu filho, baixe essa arma, por favor.
Ele baixou. E respirando fundo, se aproximou bem de Cipriano, sentindo-lhe o hálito de tabaco e cachaça. E falando, bem rente ao seu rosto, Jesuíno disse:
JESUÍNO–Eu enfrentei bandidos piores que você na Europa. Portanto, você não me mete medo nem um pouco. –E depois se voltando aos escravos da sua mãe, falou: –Vamos enterrar os dois. O Bruxo e a senhorita.
Cipriano montou seu cavalo, e saiu a galope, seguido de seus escravos.
Mais uma vez a sua mãe o abraçou. E em seguida, ele se agachou bem próximo aos cadáveres e os tocou. O rigor mortis ainda não os havia atingido por completo.
JESUÍNO–Devem ter sido mortos por volta das cinco da manhã.
CONCEÇA – Impossível! Ela estava dormindo nessa hora. Sempre acorda às oito…
JESUÍNO – Bem, minha senhora. Ela está aqui morta. E não foi às oito que ela morreu.
CONCEÇA–Quem será que foi o desgraçado que fez isso com a minha filhinha, meu Deus? Uma santa…
Levaram o corpo de Mariana para a igreja. O corpo do Bruxo foi colocado em um barracão atrás da igreja. Não sendo cristão, o padre não achou direito coloca-lo junto à defunta consagrada. Na encomenda da alma, havia pranto geral, pois que Mariana era verdadeiramente adorada pela população. Ensinava as crianças e os adultos a ler e escrever. Lia livros para as pessoas, ajudava na igreja. Era uma raridade de menina.
No fim da tarde, depois do velório, estava quente e Jesuíno foi tomar banho de rio. Aquela região era abençoada por um fenômeno fluvial que chamou a atenção inclusive dos Bandeirantes: o encontro de dois grandes rios. O Rio das Velhas e o Rio São Francisco. Este último, navegado por Américo Vespúcio, que foi quem deu o nome ao Rio, por ter navegado nele no dia 04 de outubro de 1501, juntamente com o navegante André Gonçalves.
Jesuíno tomava banho na parte do Rio das Velhas. Usava calção branco, feito de puro algodão português. No barranco da Igreja de Pedras, uma pessoa o observava. Uma mulher. Matilda, irmã mais velha de Mariana. Assim como a irmã, ela possuía rara beleza. Olhos azuis, como os da mãe, cabelos imaculadamente negros e macios, estes, herdados do pai. A pele, a despeito de ser aristocrática, era bronzeada, em virtude da relutância que ela tinha de usar chapéu. Ao vê-la, Jesuíno saiu da água e enrolou-se em uma toalha, e em seguida, vestiu roupas decentes. Ela, ao notar que ele a havia visto, virou o rosto, fingindo constrangimento.
JESUÍNO – Pode olhar, já estou vestido.
Ele lhe sorria, e ela lhe devolvia um sorriso maior e mais iluminado.
MATILDA – Posso lhe dar um abraço?
JESUÍNO – Quantos quiser.
Ela correu em direção a Jesuíno e lhe abraçou de tal modo apertado, que ele podia ouvir seu coração batendo aceleradamente. Mais que o normal.
JESUÍNO – Parece nervosa…
MATILDA – E estou. Por muito tempo sonhei com isso.
JESUÍNO – O que?
MATILDA – Poder lhe abraçar. Eu nunca tive coragem por causa da minha irmã, que era prometida a você.
Eles passaram a andar lado a lado. Jesuíno, arrumando o seu chapéu na cabeça.
JESUÍNO – Eu não entendo como uma moça linda como você, pode ter ficado tanto tempo sem nenhum pretendente.
MATILDA – Tenho muitos pretendentes, Jesuíno. Mas não quero esses caipiras daqui. Eu peço a meu pai todos os dias para voltarmos para a capital. Ah, que saudades da minha infância, quando íamos nos bailes Rio de Janeiro. Agora eu sou uma adulta e a minha idade requer homens de fino trato. Mas a verdade maior ainda Jesuíno, é que… –Ela parou.
JESUÍNO – Sim…
MATILDA – Desculpe-me, eu não queria… –Saiu correndo.
Jesuíno ficou olhando ela desaparecer na estrada.
ROBERTO – Ela te ama… –Disse uma voz que veio por trás.
JESUÍNO – Roberto! –
Correu em direção ao seu amigo de infância para poder abraçá-lo.
JESUÍNO – Roberto, meu amigo…
Roberto era filho de um conhecido fazendeiro da região. Sanguinetti. Seus avós vieram da Itália devido a uma promessa da Família real portuguesa de conceder títulos de nobreza a burgueses que se aventurassem nos sertões do Brasil. Eles eram amigos do imperador, e haviam ganhado uma generosa porção de terras para produzirem.
ROBERTO – Quando soube que você tinha chegado, corri para vê-lo. Eu tinha uns negócios na fazenda Pedra Brígida, mas isso pode esperar.
JESUÍNO – Eu não sei como você consegue lidar com aquele asqueroso do Cipriano Medeiros Lima.
ROBERTO – Bem, ele é o homem mais rico que conheço, e quer comprar umas terras do meu pai, perto da Bahia. Então, infelizmente, tenho que lidar com ele, sendo asqueroso ou não. Mas vamos para a minha casa. A minha mãe está doida para vê-lo.
Eles foram a cavalo, conversando sobre todos os tipos de assunto, até a fazenda Bananal, onde Roberto morava.
ROBERTO – Você viu os corpos da Santinha e do Bruxo?
JESUÍNO – Sim, eu vi…
ROBERTO – Oh, me desculpe. Havia me esquecido que a Santinha ia casar com você.
JESUÍNO – Bem, ela morreu, não é? Então, vamos tocar a vida. Fale-me de você.
ROBERTO – Não sei se você sabe, mas meu pai vai se mudar para a capital. Eu vou ficar tomando conta da fazenda.
JESUÍNO – Meu amigo então vai virar coronel, quem diria?
ROBERTO – Não é o tipo de título que eu iria preferir. Prefiro o de doutor, mas enfim, alguém tem que tomar conta das terras do meu pai, e como eu sou filho único…
JESUÍNO – Bom filho, aliás. Quisera eu ser tão bom quanto você. Fui estudar fora, e acabei descambando pela Europa.
ROBERTO – Eu soube que você andou se metendo que iluministas na França, e que estava conspirando contra o rei.
JESUÍNO – Não estávamos conspirando. As pessoas estão insatisfeitas com os preços dos alimentos, e o rei é um palerma que deixa seus conselheiros tomarem conta de tudo. Mas isso era segredo, como chegou aqui.
ROBERTO – Bem, meu caro, já dizia sabiamente Voltaire: “Um segredo pode ser facilmente mantido entre três pessoas, se duas estiverem mortas.”
JESUÍNO – Grande Voltaire. Eu o conheci na Inglaterra. Um homem espetacular, com uma prodigiosa inteligência. Recentemente ele estava de viagem a Portugal, quando eu lá estive.
ROBERTO – É, mas ele não teria tanto sucesso aqui no Brasil. Dizem que ainda existem visitadores do Santo Ofício por aí.
JESUÍNO – Eles estão cada vez mais escassos. No mundo iluminista não haverá mais espaço para essas antiguidades.
ROBERTO – Pobre do meu amigo. Seu deus agora é uma vela acesa.
JESUÍNO – E o dos católicos não é?
Eles gargalharam
ROBERTO–Eu o aconselho a não adotar esse tom agnóstico lá em casa. A mamãe anda cada vez mais religiosa.
JESUÍNO – Eu sei… eu sei…
Eles andaram mais alguns minutos em silêncio, até chegarem à fazenda, e ao longe, Jesuíno vislumbrou a casa-grande, com lágrimas nos olhos. Boa parte da sua infância ele havia passado ali, na companhia do seu antes inseparável amigo Roberto Sanguinetti. A sua mãe, Marta Sanguinetti estava perto do portão, e já os havia avistado. Uma mulher com seus cinqüenta e poucos anos e com rara beleza para aquele local, circunstâncias e idade. Portuguesa de nascimento, ela tem a pele muito branca, que acaba ficando avermelhada ao forte sol do Norte Mineiro; e possui dos olhos tão azuis que reluzem como pedras preciosas. Ao ver Jesuíno, dona Marta Sanguinetti correu para cumprimentar o “m’nino” que não saía da sua fazenda.
Corta para o meio da floresta.
Um casebre feito de barro estava lá perto do rio a anos. O teto era de palha, e uma chaminé deixava escapar uma fumaça que nunca se acabara. Lá dentro morava uma mulher. Muito velha. O rosto completamente enrugado parecia ser feito de cera. Os cabelos grisalhos, e os olhos afundados nas órbitas. Na boca faltavam quase todos os dentes. E trajava um vestido negro e surrado, como que estivesse a um século em luto. Seu nome era Machula. Uma velha feiticeira, que segundo a lenda, morava lá mesmo antes da chegada dos Bandeirantes. Dizem até que os Jesuítas tentaram evangelizá-la, mas não conseguiram. Machulla estava sentada em frente a uma mesa bem rústica, e em cima da mesa um objeto encoberto por um pano negro. Ela tirou o pano, e lá estava o baú que fora encontrado por Malheiros e Jesuíno. Como foi parar com ela, ninguém sabe. Machula abriu o baú, e a visão do seu conteúdo, pela centésima vez a assombrou:
MACHULLA – Valha-me Deus!
Fim do Capítulo 01