Capítulo 6 – A Santa e o Bruxo
JESUÍNO(gritando) – Eu fui quase morto por causa desse baú, e o senhor estava com ele o tempo todo?
OTTONE – Você não foi quase morto por causa dele. Pelo que me contaram, Celson Canavieira queria te matar porque alguém pagou ele para isso. Jesuíno, você sabe que eu tenho você como um filho. Esqueça esse baú. Seu pai morreu por causa dele…
Jesuíno se levantou.
JESUÍNO – Mas eu quero saber por que o meu pai morreu, e porque dois amigos inseparáveis, se tornaram inimigos ferrenhos. Eram dois homens simples, não brigariam por qualquer motivo. Se fosse um tesouro que tivesse lá dentro, tenho certeza de que dividiriam. Sempre dividiram tudo. Sempre foram sócios.
OTTONE – Está se vendo que você não conhece o seu pai. Nunca conheceu.
JESUÍNO – Do que é que está falando? Claro que eu conhecia o meu pai. Passei a minha infância do seu lado. Era um homem simples, um homem da terra. Talvez um dos únicos homens do Brasil a lidar com bois, porque todo mundo aqui prefere cana-de-açúcar ou café, ou o raio que o parta. O que você sabe sobre o meu pai que eu não sei.
OTTONE – Jesuíno, escute…
MACHULLA – O que nós vai fazer, seu Ottone.
OTTONE – Aquiete-se, velha. Vamos pensar nisso.
Voltou-se para Jesuíno.
OTTONE – Jesuíno, meu filho, sente aqui. Vou lhe contar uma história. Aconteceu antes do Bruxo morrer:
FLASHBACK(dois anos antes)<>
Jesuíno Teobaldo, estava ordenhando uma das vacas, quando Ottone se aproximou.
OTTONE – Bom dia, Jesuíno…
JESUÍNO VELHO – (…)dia! Como vai?
OTTONE – Bem. Ainda insistindo em vacas, heim?
JESUÍNO VELHO – E tem trem mió pra fazer do que isso, por aqui?
OTTONE – Realmente não tem não. Mas eu sei que você tem dinheiro, Teobaldo. Major Cipriano está vendendo uma de suas propriedades perto de Nossa Senhora do Jequitaí. É terra com muito diamante. Eu lhe proponho uma sociedade…
JESUÍNO VELHO – Se tivesse tanto diamante assim lá, ele num estaria vendendo, num acha?
OTTONE – Você está errado. Ele está vendendo porque quer se desfazer de algumas fazendas, pois está cansado demais.
JESUÍNO VELHO – Major Cipriano, cansado? Mais fácil vaca voar. Mas num foi para falar disso que ocê veio aqui, foi?
OTTONE – Não. Estou aqui para falar do baú…
Jesuíno ficou transtornado.
JESUÍNO VELHO – Não! Não! Não!
Ele deixou a vaca e saiu correndo. Ottone correu atrás.
OTTONE – Jesuíno, espere! Por favor.
Jesuíno corria com todas as suas forças, mas numa certa altura, ele se cansou e parou.
JESUÍNO VELHO – Não chega perto. Não chega perto ou eu me mato.
Ele puxou uma faca e a encostou no próprio pescoço.
OTTONE – Não faça isso! Por favor. Não se precipite. Se tem alguma coisa te atormentando, eu posso ajudar. Você confiou a mim o baú, mas eu preciso saber por que o Malheiros não pode ficar com ele. Eu preciso saber.
JESUÍNO VELHO – Tem coisa que não vale a pena ficar sabeno. Além do mais, ocê prometeu que nunca ia nem olhar lá dentro, e nem perguntar o que era aquilo. Ocê prometeu.
OTTONE – E eu estou cumprindo. Mas é um fardo pesado demais, Jesuíno. E você precisa dividi-lo com alguém, senão vai morrer.
JESUÍNO VELHO – Eu tô perto da morte mesmo. Só que eu num vou esperar.
Jesuíno segurou a faca ameaçadoramente virada para a própria barriga. Ergueu, e ia esfaquear-se quando uma litania começou a ser cantada lá perto. Ottone olhou para o lado, e lá estava o homem vestido com trajes espanhóis e uma capa negra, com um capuz jogado nos ombros. Ele estava com as mãos estendidas, de forma bem teatral, e seus olhos estavam vidrados. Era o Bruxo.
HECTOR – Larga a faca…
Jesuíno apertava a faca contra o seu ventre, mas a força psíquica de Hector impedia que ele fizesse o pior. O Bruxo movimentava as mãos como se fossem duas serpentes, e com os olhos vidrados em Jesuíno, ele repetia pausadamente:
HECTOR – Largue a faca agora!
Lágrimas caíram dos olhos de Jesuíno.
HECTOR – Tú não tens mais forças nessas mãos.
Jesuíno abriu a mão e a faca caiu. O Bruxo continuou o encantamento, fazendo com que Jesuíno se ajoelhasse. Enfim, ele se sentou sobre suas pernas.
OTTONE – Obrigado, senhor Bruxo.
HECTOR – Podes me chamar de Hector.
OTTONE – Hector. Muito obrigado.
HECTOR – Teu amigo precisa de descanso. Minha casa é logo ali. Insisto que o levemos para lá, para que ele descanse, e a ti também. Pareces muito cansado.
OTTONE – Não precisa, senhor Hector. Acho que dou conta de levá-lo daqui.
HÉCTOR – Não dá. Muito longe. E cem metros daqui fica minha casa, olha lá. Eu tenho uma carruagem, e tu podes usa-la sem problema algum. Não vou te fazer mal, nem a ti, nem ao teu amigo, não obstante acreditem que eu seja um pactuado com o Demônio.
OTTONE – Certo.
Corta para o interior da casa do Bruxo.
Era um luxuoso casarão em estilo vitoriano. Na sala de estar não havia nada de anormal, a não ser por uma tela em óleo imensa na parede principal, retratando um homem que se parecia muito com Héctor Samalla, mas com trajes bem mais antigos. Ottone ficou observando.
HECTOR – É meu tataravô Juan Samalla, grande mago. Somos herdeiros de uma tradição milenar que remonta aos Celtas.
OTTONE – Nunca houve cristãos na sua família?
HECTOR – Os cristãos não sabem, mas praticam magia também. Sobretudo católicos, que se utilizam de amuletos como rosários, imagens, relíquias. É a mesma coisa. Mas não, nunca houve católicos entre nós.
O bruxo serviu um pouco de vinho para Ottone. Jesuíno Velho parecia aéreo, desacordado.
HECTOR – É de uma ótima safra. Mas me conta. Eu não pude deixar de notar que falavam de um baú…
Ottone levantou-se de um salto.
OTTONE – me desculpe, mas é um segredo de família. Tenho que levar logo o meu amigo.
HECTOR – Acalma-te. Não há motivos para te exaltares. Onde está o baú? Eu posso interpretar o seu conteúdo.
Nesse instante, Jesuíno velho despertou.
JESUÍNO – Talvez você possa! Talvez possa sim…
Ottone achou estranho. Jesuíno não parecia ser ele. Estava eloquente, falando com ótima dicção, diferente do velho Jesuíno que falava tudo errado. Mas ele parecia em transe.
Jesuíno se levantou, e com os olhos vidrados, agarrou o colarinho de Ottone.
JESUÍNO – Traga ele aqui, Ottone! Traga o maldito baú, pois esse bruxo vai decifrar, e vai tirar o pesadelo que me corrói a alma todos os dias, como se a a minha alma já estivesse no inferno. Meus companheiros morreram por causa daquilo! Meus companheiros!
De repente, ele desabou mais uma vez, e enfim, despertou do seu transe.
JESUÍNO – O que nós tá fazendo aqui, Ottone?
OTTONE – Esse senhor nos acolheu. Você estava passando mal, e ele lhe deu um remédio, não se lembra?
JESUÍNO – Não me lembro de nada. Vamo embora, porque se o padre sabe que eu to aqui, ele vai me entregar para o Visitador.
HECTOR – Da minha boca, ninguém saberá que vós estivestes aqui. Eu juro. Vou mandar meu escravo levá-los até a sua fazenda, senhor Jesuíno.
JESUÍNO – Carece não, senhor. Vamos “bora”, Ottone.
Fim do FLASHBACK
JESUÍNO – Então quando ele falou, não tinha sotaque campesino?
OTTONE – Não. Nem um pouco. Parecia outra pessoa. Era outra pessoa. O que seja que há dentro desse baú, ele traz à tona alguém que seu pai quis esconder no passado.
JESUÍNO. – Vou perguntar para a minha mãe. Ela deve saber de alguma coisa. Você acha que o Bruxo chegou a conhecer o conteúdo do baú?
OTTONE – Não. Porque o baú sempre esteve comigo desde que o seu pai e o Malheiros ficaram brigados.
Ottone se voltou para a velha.
OTTONE – Volte para a sua casa. Quem quer que tenha pegado o baú, não vai se atrever a olhar. Pelo menos por enquanto.
Corta para a Fazenda Jequitaí Velho.
MAJOR CIPRIANO – Então quer dizer que ocê mijou para trás…
CELSON CANAVIEIRA – Não vou matar ninguém se não me disser o que tem nesse baú que muita gente deseja.
CELSON – Eu num sei! Eu num sei! E quando eu descobrir, vou dar um jeito de tirar proveito disso. Ah, se vou.
Fim do capítulo 6