INSÔNIA: último conto – Maria Tereza
Insônia: contos de horror e suspense
Série de
Gabriel Fonsêca
Escrita por
Gabriel Fonsêca
Quinto Episódio
Maria Tereza
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Baseado em fatos reais.
A vi pela primeira vez quando tinha sete anos, de começo eu sentia medo, mas com o passar dos anos fui me adequando e as passageiras visitas se tornaram um convívio uma grande amizade, em algumas noites a garota até deitava-se ao meu lado, dormíamos juntas e até conversávamos, aliás, eu conversava pois a menina nunca permitiu que eu visse seu rosto cinza que não mostrava olhos, nariz e nem muito menos boca, não sei o motivo só sei que ela tinha lindos cabelos pretos e usava apenas uma roupa branca, só não era anjo porque não tinha asas. Nunca havia comentado para ninguém sobre ela, um dos principais motivos era o medo de ser considerada louca por conversar e ver uma pessoa que somente eu sabia que existia. Quando completei dezessete anos a bela garota que nem seu nome eu sabia desapareceu da noite para o dia, eu a esperei como sempre com a cama de um lado destampado para que ela alí se deitasse, passaram-se horas, dias, semanas e meses e a garota nunca mais apareceu.
Mesmo sabendo que a nossa amizade não era convencional, dez anos não são como uma ou duas horas, em uma década você faz história, foi aí então que comecei sentir nos braços mutilados a sua falta, sentir nas noites em claro, sentir nos rabiscos de sua estatura física, qualquer psicólogo que me visse poderia dizer que estava eu com uma profunda depressão, mas se eu contasse dela eles diriam que isso era coisa da minha cabeça, uma forma de estancar a sangria da solidão de ser abandonada pela mãe e de ser criada por um pai ausente, mas eu tenho certeza que ela não foi uma projeção da minha cabeça, e eu vou provar que ela existe.
Meu pai e eu nunca tivemos uma ótima convivência, ele não era um pai presente e nem se quer notava quando sua filha estava doente, talvez isso tenha feito com que eu criasse maturidade ainda na adolescência, mesmo não tendo essa ligação afetiva, meu pai, Pedro, conseguiu enxergar algo de errado em meu comportamento, mas engana-se quem pensa que ele começou a me enxergar como sua filha, pois só começou a notar algo de errado em mim, quando esse “errado” começou o afetar. Primeiro, como alguém muito desconfiado, quem desconfia até da própria sombra, ele tentou uma conversa que não levou em nada, logo em seguida, permaneceu dias e dias tomando seu café preto e fumando sua calma enquanto me olhava de canto, sua última tentativa de resposta foi a que deu certo, meu pai me trancou no quarto, fechou a porta e passou a chave dizendo que só iria sair de lá se conseguíssemos conversar.
– O que tem com você? – Pergunta Pedro, meu pai.
Permaneci quieta.
– Carolina, olhe pra mim… Olhe pra mim pelo menos uma vez na vida! – Diz Pedro, segurando em meus braços.
– De que adianta olhar na sua cara?
– De que adianta você permanecer calada?
– Porque você quer conversar comigo, que parte do meu silêncio o atingiu? – Pergunto.
– Eu estou preocupado com você… Nunca te vi tão calada!
Permaneço em silêncio.
– Tudo bem… Se você não quer falar… Tudo bem! – Diz meu pai, virando de costas.
– Não, calma. Se você disser que não vai me crucificar, eu falo!
Meu pai me olhou como nunca antes havia, senti liberdade em falar pela primeira vez e então desabafei, sentei na cama e o fiz sentar também e entre soluços e lágrimas comecei a falar da bela garota, contei toda a história, mostrei meus braços cortados e mostrei desenhos que havia feito dela, e sabe qual foi a sua resposta?
– Eu vou te levar num psicólogo!
Demorei horas para digerir aquelas palavras, tanto tempo que na hora que as ouvi nem tive reação, a única foi de ficar ainda mais quieta. No outro dia, me acordei cedo, ainda estava quieta, meu pai pegou-me pelo braço e levou-me até o consultório da psicóloga, resolvi não acatar sua decisão para saber até onde ele seria capaz de ir com tamanha ignorância de entender sua filha.
– Então quer dizer que desde os seus seis… – Resolvo interromper a psicóloga.
– Sete!
– Isso, sete… Sete anos, você vê e dorme com uma garota que nunca mostrou seu rosto e nem nunca falou. Você acha que ela é real? – Diz a psicóloga.
– Eu não acho nada, porque eu tenho certeza!
– Muito bem… E você, nunca… Nunca, assim… Sentiu alguma coisa diferente por outras garotas que podemos chamar de carne e osso? – Pergunta à psicóloga.
– Eu não sou lésbica!
– Não é lésbica… Muito bem… Eu sei da sua história, sei da separação de seus pais, do abandono de sua mãe! – Diz a psicóloga tentando adentrar na história da minha vida.
– Tudo bem… Eu tenho todos os motivos do mundo para projetar uma pessoa, fui abandonada e meu pai nunca realmente me deu a atenção que deveria dar, mas ela, a garota, existe sim e ela fez o mesmo que minha mãe… Abandonou-me e me deixou sozinha com meu pai, mas eu irei provar que ela existe… Eu juro que vou! – Digo eu, levantando da cadeira e saindo pela porta do consultório.
Sai do escritório da psicóloga sem nem olhar para trás, deixei meu pai a me olhar e a psicóloga pasma, resolvi não seguir para casa, mas sim para a casa de um amigo meu que entendia da sociedade do outro lado. Chegando à casa desse meu amigo fui logo adentrando a porta, não o deixei nem falar nada que pudesse me parar ainda na porta e cheguei ao seu quarto, Beto me seguiu e logo perguntou.
– O que houve Carol?
– O que me assombra desde sempre, o abandono… Mas agora… Agora foi ela…
– Ela quem, de quem você fala? – Pergunta Beto.
– Dela, daquela garota que aparecia para mim, que dormia comigo!
– Como assim ela te abandonou? – Pergunta ele.
– Ela simplesmente sumiu, da noite para o dia, eu nunca mais a vi!
– Mas no que posso lhe ajudar? – Pergunta curiosamente, Beto.
– Eu quero saber… Eu quero saber por que ela não me visita mais… Preciso da sua ajuda!
Beto olhou-me com um olhar de quem sabia o que fazer, mas que algo o impedia. O rapaz sentou-se a cama ao meu lado, pegou em minhas mãos e logo disse o que meus ouvidos não queriam ouvir, não poderia me ajudar, pois não estava em bons tempos, insisti e coloquei nossa amizade em jogo, Beto foi firme mas dei minha última jogada, se ninguém me ajudasse o que me restaria seria um galho de árvore ao cemitério, Beto então resolveu me ajudar. Levantou-se rapidamente da cama, abriu a porta e conferiu se nada poderia nos atrapalhar e então trancou a porta, puxou as cortinas, abriu uma gaveta, pegou uma vela de cor azulada, puxou uma pequena mesa e pôs a vela em cima dela seguida pelo acendimento da mesma. Beto pegou duas cadeiras, uma para mim e outra para ele, em instantes estávamos sentados e ele segurando em minhas mãos, mandou que eu pensasse em coisas puras e fizesse desaparecer todo o conflito que existia em meus pensamentos, fechamos os olhos e ele começou a falar.
– Estamos na terra somente de passagem, mas essa passagem serve para fazer o ser humano evoluir completando sua missão e reparando erros das vidas passadas!
– Quem é a garota, o que ela quer comigo e porque ela sumiu? – Pergunto.
– Ela não é nada diferente de você, sua vida terrena não foi diferente da sua realidade, ela sofreu, chorou, foi abandonada e o sopro da vida a levou, o que ela quer é o que você quer, é incrível a ligação de ambas, uma ligação forte, e um grande vinculo! – Responde Beto
– Mas porque ela sumiu? – Pergunto.
– Ela não sumiu, ela continua a ver tudo o que você faz!
– E porque ela não aparece para mim? Eu sinto tanto a falta dela!
– O que ela podia fazer já se foi feito, o que são provas senão o momento de provar que você aprendeu? – Diz Beto.
– O que ela pode fazer já foi feito? Ela me deixou sozinha, me abandonou, era isso que ela queria?
– A garota é benévola, sem maldade que existe aqui nessa terra de gente hipócrita… Ela é evoluída, já perambulou por anos e anos e nunca achou ninguém que a confiasse a amizade até se deparar com você, Carolina a pessoa que ela sempre procurou!
Quando Beto me chama pelo nome sem apelidos, minha ficha cai, não era ele em seu corpo, mesmo assim insisto.
– Ainda não me respondeu o que eu quero saber… Quem é a garota? Porque ela sumiu?
Beto então abre os olhos, respira fundo e cai, sofreu um desmaio. Ao se acordar avisa que não poderá mais me ajudar, que a partir de agora teria eu de agir sozinha. Parti então para minha casa onde meu pai me esperava mostrando certa preocupação tentou conversar comigo, mas não lhe dei chances e tranquei-me ao meu quarto. O que seria de mim se ninguém acredita no que eu falo? Se ninguém me entende? Se todos me abandonam? Pensei profundamente em me matar e prorrogar minha chegada ao outro lado, mas isso seria mostrar fraqueza e o que eu menos queria era mostrar que eu era fraca, resolvi então deitar-me e tentar dormir. Fechei os olhos e logo cai no profundo mundo dos sonhos.
Sonhei com um lugar muito branco onde gotejava a todo instante, dei meus primeiros passos e as nuvens brancas começaram a se dissipar e mostrar a entrada de um grande cemitério, até deu para ver seu nome, “Cemitério, o último descanso”, quando me aproximo para abrir o grande portão, uma mão gélida toca em meu ombro, paraliso e meus batimentos aceleram, lembro-me daquele toque e logo descubro a quem pertencia aquela mão, era a dela, a garota que voltava a me visitar ou eu a visita-la. Ela pegou em minha mão direita, olhei em sua face e ainda não conseguia ver seu rosto, mesmo assim sorri e uma lágrima escorria, ela me leva, passamos por grandes mausoléus e enfim chegamos a um túmulo quebrado, onde a lápide estava rachada e não tinha foto alguma, a garota aponta com seu dedo para a pequena casinha recoberta de flores murchas, a vi se ajoelhar e impor-se em modo de oração, resolvi fazer o mesmo, ajoelhei-me, fechei os olhos e um sopro me vez abri-los novamente e não vendo mais a gélida garota, comecei a correr perdidamente por entre aqueles mausoléus, com esculturas enormes, mas quanto mais corria, mais escuro tudo ficava até me acordar.
Ao acordar, tive de trocar de roupa, pois o suor havia molhado toda minha roupa, após isso, resolvi pesquisar sobre o “Cemitério, o último descanso”, e acabo por descobrir que ele ficava em minha cidade, copiei o endereço, juntei minha mochila, pus um casaco e sai a procura do cemitério. Já era quase três da manhã e enfim consigo encontrar o cemitério do sonho, a entrada era exatamente como nele, um arco enorme que chamava muita atenção, logo na entrada, grandes estátuas e mausoléus apareciam, o cemitério era gigantesco e não fugia muito do sonho, caminhei por entre muitos túmulos até desistir e sentar-se ao chão, talvez tenha sido somente um sonho, abri a mochila e tirei o desenho da face da garota e um vento repentino soprou a folha para cima de um túmulo que aos poucos vou descobrindo, era o de meu sonho. Tirei a lanterna da minha mochila e tive a conclusão verídica, era sim o túmulo do sonho, ajoelhei-me e comecei a chorar e entre soluços passava a mão sobre a laje até que a luz da lanterna revela uma placa com um nome.
– Maria Tereza… Maria Tereza é seu nome!
Acabo por descobrir o nome da garota que há dez anos aparecia para mim, parece que as pedras existentes dentro de mim haviam caído, uma a uma e a cada uma um novo sentimento de alívio, deitei minha cabeça sobre aquela laje e disse seu nome três vezes mas não obtive resposta alguma até que uma mão puxa meu braço.
– Carolina, agora você passou dos limites! – Diz Pedro, meu pai.
– Pai, o que você faz aqui?
– O que você faz aqui… Num cemitério Carolina, cemitério! Isso foi à gota da água! – Diz meu pai.
– Pai, eu descobri o nome dela!
– Dela quem Carolina?
– Dela, a garota que aparecia para mim, mas que havia desaparecido… Maria Tereza! Foi ela quem me trouxe até aqui… Ela mostrou-me seu túmulo pelo sonho!
– A é? E o papai Noel trouxe você até aqui em suas renas?
– Pai, acredita em mim pelo menos uma vez na vida! – Digo eu, apertando nas mãos de meu pai.
– Vamos Carolina, em casa vamos conversar!
– Não eu não vou! Vá você… Vá para o inferno! – Digo eu que volto e pego um pequeno rosário que no túmulo de Maria se encontrava.
Meu pai puxa meu braço e gruda um tapa em meu rosto, saio correndo daquele cemitério e ele me segue a gritar por meu nome.
– Carolina… Carolina espere!
– Já disse para você ir para o inferno!
Ao terminar as últimas palavras, um carro atropela meu pai o atirando metros de distância.
– PAI! – Digo eu correndo até seu corpo estirado.
Pedro estava totalmente ensanguentado e até a chegada do socorro, muitos espíritos o cercavam inclusive Maria Tereza que pela primeira vez revela seu lindo rosto de olhos pretos, de nariz não muito longo, de boca com uma pequena cicatriz, mas isso não roubou muita a minha atenção. Meu pai foi levado inconsciente para o hospital e eu o acompanhei a todo o momento. Quando recebi a notícia do seu coma nada foi fácil, teria eu de amadurecer minha responsabilidade para cuida-lo e até mesmo trabalhar. A cada dia que se passava e mesmo com seus olhos fechados eu sentia algo muito forte por ele, um amor profundo, algo que nunca antes havia sentido, mas eu não estava sozinha, ela, Maria Tereza me acompanhava, só não falava nada. Passaram-se longos oito meses, e eu nunca havia perdido a fé de tê-lo novamente ao meu lado para aproveitar o tempo perdido, até mesmo o pequeno rosário de Maria que eu havia colocado em sua mão, não havia caído, certa noite seus olhos começaram a se abrir.
– Carol? – Diz ele.
– Pai, você acordou!
Maria Tereza sorri e eu abraço meu pai.
– Pai… Perdoa-me, por favor, me perdoa!
– Não, sou eu que devo pedir desculpas… Desculpas por nunca ter acreditado em você!
– O que está falando?
– Eu vi… Eu vi meu corpo do outro lado, eu vi você, eu vi aquela garota ao seu lado…
– Maria Tereza?
– Sim, ela… Eu vi mais pessoas que vestiam roupas brancas e traziam muita luz sobre você e sobre mim!
Meu pai ainda com poucas forças conseguiu descrever mais coisas, conseguiu descrever um túnel de luz onde corria, descreveu muitas pessoas e suas mais variadas feições e tudo com muita sinceridade e amor nunca antes demonstrado.
Beto é o primeiro a visitar meu pai após ele ter acordado, tivemos então uma longa conversa pelo corredor daquele hospital.
– Tudo na vida é um mistério, o inicio o meio e o grande final, e às vezes o que queremos nem mesmo nós sabemos!
– Como assim?
– Você não me disse que naquele dia em meu quarto a entidade havia lhe dito que a garota… Maria Tereza… Queria o mesmo que você? Então, o que sempre faltou para você?
– Amor?
– Você queria a encontrar novamente e ela queria que você ganhasse amor, amor qual nem você acreditava existir, por isso ela lhe levou até o cemitério sem interferir em seu destino… O que acontece de ruim, nem sempre é realmente ruim e às vezes é o que falta em sua vida.
Continuamos a caminhar, eu, Beto e Maria Tereza.