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O Último Ano

Capítulo 1 – O Último Ano

O ÚLTIMO ANO

UM ANJO E UM DEMÔNIO NA ESCOLA

“Confesso que quando minha mãe foi recebeu a notícia que a empresa em que ela trabalha abriria um novo escritório no Maranhão e ela seria promovida a diretora regional e que, portanto, deveríamos mudar de cidade, eu não fiquei muito contente. Nasci em Brasília e nunca sai de lá senão para viagens de férias e nestas férias nunca viajei ao nordeste do país.  Fiquei receoso, afinal falam tanto do calor que faz por aqui. Mas eu tinha que apoiar minha mãe sem reclamar. Meu pai faleceu quando eu era criança, e desde então, ela tem sido mãe e pai ao mesmo tempo. Aquela promoção era muito importante para sua carreira profissional, eu não podia me comportar como uma criança birrando para ficar em Brasília. Tenho 17 anos e como um homem eu tenho que entender e apoiá-la. Sei que vai ser difícil não só para mim, como para ela também. Nova rotina, novo lugar, novos hábitos… E eu tenho sérios problemas com adaptar ao novo. Meu maior medo mesmo era a escola e os novos amigos. Quem eu encontraria pela frente?”

(Trecho do diário de Elvis Braga Melo)

São Luís do Maranhão, 27 de Março de 2012. O primeiro semestre de aulas no Instituto Educacional Daniel de La Touche já haviam começado a todo vapor. A todo vapor mesmo! O Instituto era conhecido pelo rigor quase que militar, e não obstante a isso sempre tinham aqueles que amavam burlar as regras. Sempre há. Diego Costa era um deles. Na verdade, o mais famoso deles. Estudava o último ano do ensino médio. Naquela manhã, logo cedo, ele fora levado pelo professor de Biologia para a sala do diretor.

O diretor Heitor de braços cruzados e de pé diante de Diego o encarava. O professor de Biologia a quem chamavam de Almeida do mesmo modo, de pé e braços cruzados no canto da sala. Diego, que não se intimidava fácil, revirava os olhos e afundava na cadeira sem olhar para nenhum dos dois, vagueando o olhar pelos quadros e troféus na parede.

HEITOR: Virou rotina você na minha sala não é Diego?

DIEGO: Eu odeio cair na rotina diretor. O senhor não sabe o quanto!

HEITOR: Eu odeio suas ironias Diego.

DIEGO: Ah que peninha, logo uma das poucas coisas que eu amo fazer!

O diretor senta e se debruça sobre a mesa ainda encarando Diego.

HEITOR: É a segunda vez que lhe trazem à minha sala, fora as inúmeras queixas prestadas por alunos aqui a respeito de você. E nós estamos apenas no segundo dia de aula, diga-se de passagem. E se formos somar com os dois últimos anos em que perdeu a graça, se é que se pode achar graça nisso, tê-lo aqui na minha sala, você se tornou recordista de reclamações. O que eu faço com você?

DIEGO: Sei lá, me condecorar com uma medalha talvez.

HEITOR: Quão bom seria se você usasse essa sua habilidade em ter resposta para tudo na ponta da língua outras áreas, nas aulas de redação, por exemplo, ah tenho certeza que as coisas seriam diferentes do que são. Porque pelo menos para mim já está ficando insustentável sua situação aqui. E você sabe o porque ainda toleramos você no nosso quadro de alunos?

DIEGO: Quem sabe seja porque minha mãe paga as mensalidades em dias. Acertei?

HEITOR: Não. Errou. A questão não é financeira meu filho. Se, por ventura, você deixasse de ser aluno do instituto continuaríamos muito bem de dinheiro, mas não é o caso. O fato é que nós não somos de nos render a um aluno igual você. Não. Aqui já passaram figuras que eram o triplo do que você é.

DIEGO: E o que eu sou?

ALMEIDA: Irritante! (Em seguida hesita) Desculpa diretor Heitor.

HEITOR: Acertou professor Almeida. E como eu dizia não nos renderemos. Talvez seja o que você quer não é? Sair daqui do nosso instituto como o aluno que os nossos métodos não conseguiram corrigir. E o indomável Diego Costa. Mas seria uma derrota para gente e não vamos entregar o jogo. Assim como outros ex-alunos, iremos entregar você para a sociedade como uma boa pessoa.

DIEGO: Olha vocês bem otimistas. Porque se não conseguiram fazer isso comigo em dois anos, como conseguirão fazer isso no meu último ano aqui no colégio? E vocês devem estar torcendo para que eu saia daqui.

HEITOR: Engano. Se quisermos você fora do Instituto posso nesse momento te entregar sua transferência e desejar boa sorte em outra escola.

DIEGO: Me expulsar? É isso?

HEITOR: Não só isso. Posso muito bem pedir para redijam uma bela carta de recomendações para todas as escolas da cidade relatando a adorável experiência de ter você aqui.

DIEGO: Mas os meus pais…

O diretor o interrompe com um sorriso irônico nos lábios.

HEITOR: Ah, os seus pais? Os seus pais sabem bem que filho eles tem. E confiam na credibilidade desta instituição. Sua mãe estudou aqui. E se bem me lembro da última vez que ela nos visitou, falou com minúcia de detalhes a respeito de você. Ela nos deu total liberdade para agir da maneira que fosse necessário senhor Diego. Sua mãe é uma pessoa maravilhosa, você sabe disso não é? E você sabe do lado de quem ela ficaria no fim das contas.

Diego ficou calado, mas não deixou de retribuir o olhar intimador do diretor.

HEITOR: Pois bem professor Almeida, acabei divagando, diga-me afinal o que ele aprontou dessa vez?

ALMEIDA: Se prepare porque é chumbo grosso. Nosso amiguinho extrapolou.

HEITOR: Se surpreender com o Diego é meio difícil.

ALMEIDA: Aula de Evolução das Espécies! E enquanto eu falava sobre os primatas o nosso amigo estava ocupado escrevendo isto em um papel.

O diretor pega o papel e lê quase sussurrando.

HEITOR: “Porque você não evoluiu macaco?”.

ALMEIDA: E jogou para o Jeremias. Você deve conhecer ele, aquele garoto…

DIEGO: Negro!

ALMEIDA: Eu ia dizer filho do desembargador do Estado.

O diretor franziu os lábios fazendo esforço para se conter.

DIEGO: Só falei a verdade.

O diretor soca a mesa com força, indignado.

HEITOR: O que você fez foi cometer uma injúria racial! Crime! Garoto…

Heitor fica vermelho, bufando de raiva.

HEITOR:… Você tem noção do que você fez? Eu estou exigindo muito. É apenas um pouquinho, assim, um mínimo de racionalidade para discernir o tamanho do absurdo que você fez. Você pode responder por isso. Aliás, você não, porque é menor de idade, mas o seus pais podem responder e não vão gostar disso. (Afastando-se da mesa) Meu Deus que absurdo! Isso vai render. O pai do Jeremias quando souber é capaz de fechar essa escola.

ALMEIDA: Calma diretor, calma.

HEITOR: Onde está Jeremias?

ALMEIDA: Lendo poesias é que ele não está, né? Ele saiu aos prantos da sala de aula. Sumiu. Os colegas o acharam trancado em uma das cabines do banheiro soluçando de tanto chorar.

Diego balbuciou.

DIEGO: Que veado!

HEITOR: O que disse?

DIEGO: Eu? Nada!

Heitor se afasta para o canto da mesa onde um microfone o espera. Ele aperta um botão e um chiado agudo invade os corredores com bastante eco.

HEITOR: Por favor, Jeremias do terceiro ano médio, compareça à sala da diretoria. Por favor, Jeremias Lemos do terceiro ano médio, compareça à sala da diretoria.

Heitor volta a encarar Diego.

HEITOR: Quanto a você Diego…

DIEGO: Posso pegar minha mochila e ir para casa?

HEITOR: Ah, olha o que ele quer! Não vamos nos render a você. De maneira alguma. Vai voltar para a sala de aula. Aguarde as péssimas notícias que você vai ter.

No mesmo instante que Diego levantou para sair da sala, Elizabete, a coordenadora pedagógica, entra na sala na companhia de um aluno novato. Era Elvis Braga.

ELIZABETE: Ah, Diego você por aqui? Nossa porque eu não estou surpresa?

Diego passa pela coordenadora lançando um olhar de desprezo a ela e o acompanhante novato.

ELIZABETE: O que trouxe ele aqui desta vez? Deixa-me adivinhar… Um convite para um chá das cinco com o diretor?

HEITOR: Antes fosse. E como seria icônico essa cena! Diego se superou. Injuria racial. E eu que pensei que ele não me surpreendia mais.

ELIZABETE: Aposto que foi com o Jeremias. Ele vive implicando com o garoto.

HEITOR: Logo com quem? O filho do desembargador.

ELIZABETE: Já não bastava ele ficar pegando no pé do menino só porque ele faz ballet, agora essa!

ALMEIDA: Ele não tem jeito. Eu desisti há muito tempo. São dois anos de dor de cabeça nessa escola por conta dessa criatura.

ELIZABETE: É a idade gente. Uma hora esse menino toma jeito na vida.

HEITOR: Pais ausentes! Vivem viajando. Ele foi criado praticamente pelos avós. Estes também já não sabem o que fazer com ele.

ELIZABETE: Vamos deixar de falar de Diego porque senão o novato aqui vai pensar que temos o próprio demônio matriculado na escola.

ALMEIDA: O demônio não. Mas talvez um primo próximo.

ELIZABETE: Que pena que não somos uma escola religiosa. Qualquer coisa a gente faria uma sessão de exorcismo.

Todos riem menos Elvis assustado com as informações.

ELIZABETE: Mas vamos parar de falar nele e vamos falar deste anjo aqui.

HEITOR: Esse é o novo aluno?

ELIZABETE: Ele mesmo. Elvis Braga Melo.

HEITOR: Esperamos por você ontem rapaz.

ELVIS: Tive um probleminha. Como o senhor deve saber estou de mudança para cá. O clima daqui me pegou de jeito. Mas eu trouxe um atestado médico.

HEITOR: Hum que bom. Um aluno que desde já se mostra bem responsável. Eu gosto disso.

ELIZABETE: Precisa dar uma olhada nas notas deles. A colégio em que ele estudava em Brasília  já mandou o histórico escolar e pelo que vi temos um menino prodígio agora conosco.

ELVIS: Que nada! Assim eu fico sem jeito.

Ele ri envergonhado. Almeida olha o histórico meneando a cabeça positivamente.

ALMEIDA: Multiplica Senhor! São de mais alunos assim que precisamos.

HEITOR: Como é seu nome mesmo?

ELVIS: Elvis.

HEITOR: Seja bem vindo Elvis. Espero que continue assim em nossa escola. Elizabete vai te acompanhar até a sua sala.

ELVIS: Obrigado diretor.

ELIZABETE: Então vamos lá. No caminho lhe apresento as dependências do nosso Instituto.

Ao saírem, Jeremias entra na sala chorando.

Elizabete conduz Elvis pelos corredores debaixo do olhar curioso de alguns alunos. Pelo caminho algumas alunas olham para ele e outras assoviam. Alguns alunos também fazem o mesmo.

ELIZABETE: Não fique envergonhado. Bonito do jeito que você é eu dou razão a eles.

Elvis era um rapaz muito bonito mesmo. Tinha altura mediana, mas com um porte atlético, embora um tanto magricela. Os cabelos castanhos bem claros, os olhos também castanhos e amendoados. Era de sorriso largo e que revelavam covinhas nas bochechas. As meninas estavam cobertas de razão com seus assédios à medida que ele avançava pelo corredor. Se não quisesse ser engenheiro, Elvis teria uma promissora carreira de modelo fotográfico.

Enfim, os dois chegaram à sala de aula. O professor Almeida ainda estava na diretoria, por isso Humberto, o inspetor escolar, estava na sala de aula tomando de conta da turma do terceirão.

ELIZABETE: Humberto, com licença. Vim trazer o aluno novo. Elvis esta é sua sala.

A sala inteira o encarou. Ele ficou corado de vergonha.

HUMBERTO: Pode entrar campeão.

Elvis entrou na sala com as pernas trêmulas. Avançou sala adentro tentando encontrar uma cadeira desocupada debaixo dos olhares de todos.

HUMBERTO: Você não vai se apresentar meu jovem?

Elvis paralisou. Estava imensamente nervoso. De repente uma voz…

JOÃO PEDRO: Será que ele é mudo?

Elvis olhou para o dono da voz. Mas o que chamou atenção dele foi o rapaz do lado. Era o mal encarado que passou por ele na sala diretoria. Diego. A pouca coisa que ouviu sobre ele na diretoria o deixou travado. Medo.

HUMBERTO: Venha aqui para frente e se apresente, por favor. Não precisa ter medo. Ninguém morde aqui.

SAMARA: Só o Diego!

Diego atirou uma bola de papel em Samara enquanto Elvis, vermelho de vergonha, caminhava para a lousa, respirando fundo. Encarou todos por um instante e forjou um sorriso sem graça. Por fim falou.

ELVIS: Meu nome é Elvis…

DIEGO: Você não tinha morrido?

Todos riram. O coração de Elvis quase sai pela boca.

HUMBERTO: Diego, por favor. Você voltou agorinha da sala do diretor. Quer retornar? Pode continuar Elvis.

ELVIS: Tenho 17 anos. Sou natural de Brasília. Estou em São Luís há três dias.

SAMARA: Que Brasília abençoada. Se lá tiver mais garotos assim eu me mudo pra lá agora.

Todos riram novamente.

HUMBERTO: Porque trocou Brasília por São Luís?

ELVIS: Bom, não fui exatamente eu. Foi minha mãe. Ela foi promovida a diretora da empresa em que trabalha e veio cuidar do escritório regional no nordeste.

HUMBERTO: Entendo.

Eduarda, uma aluna pergunta.

EDUARDA: Você está gostando de São Luís?

ELVIS: Bom, ainda não conheci quase nada. Somente o prédio onde fica nosso apartamento. Temos uma vista muito bonita do mar.

EDUARDA: Onde você mora?

DIEGO: Virou coletiva de imprensa foi?

Mais risos na sala.

SAMARA: Pinta de galã de cinema ele tem viu!

ELVIS: Acho que o nome é Ponta d’Areia, se não me engano.

JOÃO PEDRO: Puta que pariu! O cara é rico!

Todos, inclusive Humberto, riem.

DANIELA: Posso fazer uma pergunta?

HUMBERTO: Desde que seja realmente importante pode.

DANIELA: Oh funcionário, eu não falei com você.

ELVIS: Pode fazer sim.

DANIELA: Você tem namorada?

A sala volta a cair em gargalhada. Elvis fica mais envergonhado ainda e ri sem jeito.

ELVIS: Bom, terminei um relacionamento recentemente.

DANIELA: “@DaniCat” me segue no Insta. Vou adorar seguir de volta.

Ninguém na sala resiste e cai na gargalhada.

JOÃO PEDRO: Perdeu Diego. Daniela dando bola pra outro na tua frente cara? Não acredito!

DIEGO: Não tenho nada com Daniela.

DANIELA: Não tem, mas quer, né gato?

HUMBERTO: Elvis não dê ouvidos para essas meninas. Pode sentar.

A campainha toca anunciando o intervalo. Todos saem da sala.

Elvis senta em uma cadeira do lado de Eduarda que arrumava seu material na mochila. Ele começa a tossir.

ELVIS: Desculpa.

EDUARDA: Sem problemas.

ELVIS: O clima de São Luís está sendo cruel comigo.

EDUARDA: Rapidinho você se acostuma amigo.  Temos duas estações bem definidas. Aquela que faz calor durante o dia e o que faz calor o dia inteiro. Prazer, meu nome é Eduarda.

ELVIS: Meu nome você já deve saber. Sou o Elvis.

EDUARDA: Não vai ser difícil decorar. Adoro músicas do Elvis.

ELVIS: Nem preciso dizer que minha mãe ama também.

EDUARDA: Olha deixa eu te falar, não liga para essas meninas. São todas umas assanhadas. Mas a proposito, você está solteiro mesmo?

Elvis ri.

EDUARDA: Mas pelo amor de Deus, não me interprete mal. É uma pergunta a título de curiosidade. Desprovida de qualquer má intenção.

ELVIS: Sim, eu estou solteiro.

EDUARDA: Legal. Me fala mais de você. O que faz da vida? Mas por favor, não me leve a mal.

ELVIS: Bom, no momento só estudo. Mas tenho um blog, gosto de esportes também e amo ler.

EDUARDA: Ah que legal. E você escreve sobre o que em seu blog?

ELVIS: Webnovela. Conhece?

EDUARDO: Claro, eu também escrevia. Minhas novelas fizeram maior sucesso. Mas aí precisei parar porque os estudos não me deixaram mais ter tempo para escrever.

Elvis retira cadernos na mochila e coloca sobre a mesa.

EDUARDA: Deixa eu ver sua letra!

Daniela pega o caderno sem que Elvis tenha tempo de reagir. Ela abre. Na contra capa há um texto em letras miúdas. Ao final há um coração e o nome PIETRO.

EDUARDA: Quem é Pietro?

Elvis fica sem jeito.

ELVIS: É meu irmão menor.

Ele toma o caderno e guarda o caderno no mesmo ímpeto em que lhe foi tomado. Samara entra na sala.

EDUARDA: Vocês devem se amar não é? Eu tenho um irmão e vivo em pé de guerra com ele. Nome no caderno com um coraçãozinho? Nem pensar! O nome dele está é na minha lista negra.

Os dois riem. Samara se aproxima dos dois.

SAMARA: Oi Elvis-Que-Não-Morreu, vai rolar uma partida de vôlei no pátio. Homens contra mulheres. Vamos lá. Os meninos estão precisando de reforço.

ELVIS: Ah, que legal.Vamos lá Eduarda. Ela pode ir?

SAMARA: Pode. Mas vai ficar na torcida porque o time já está completo. E nem que não estivesse. Eduarda toda vez arremessa a bola por cima do muro e uma vez causou um acidente na avenida.

EDUARDA: Ela tem razão. Eu sou um desastre nos esportes mesmo!

SAMARA: Ela não sabe a diferença de vôlei para arremesso de disco!

EDUARDA: Ok, engraçadinha ele já entendeu.

Os três saem da sala. Chegando ao pátio Samara chama a turma toda.

SAMARA: Galera, pronto, consegui a pessoa que estava faltando! Vamos Diego, a partida já vai começar. Se posiciona do lado do seu time.

Os jogadores começam a tomar suas posições. Diego estava a certa distancia conversando com João Pedro.

DIEGO: Galera coloca o Chaminé no meu lugar. Vou ficar de fora dessa. Vai lá Chaminé.

Elvis sussurra para um colega do lado, Charles.

ELVIS: Quem é Chaminé?

CHARLES: É aquele esquisito ali com um gorro nas cores da Jamaica. O nome dele é Gustavo.

ELVIS: Porque chamam ele assim?

CHARLES: Quer mesmo saber? Vai na casa dele quando ele faz festinhas. Vai ser fácil localizar.

ELVIS: A única casa que tem chaminé em São Luís?

CHARLES: É. Só que a chaminé é a própria boca dele.

ELVIS: Ah, entendi.

CHARLES: Você gosta também?

ELVIS: Minha asma me mataria!

O jogo começa.

Sentados em um canto da quadra Diego conversa com João Pedro.

JOÃO PEDRO: E aí, o que achou da Barbie de porcelana novata?

DIEGO: O Elvis? Nem fede, nem cheira. Mas é bom a gente nem procurar aproximação. Tem cara de chato pra caralho, de moleque certinho… Não vacilando com a gente pra mim tá de bom tamanho. Mas o negócio é o Jeremias.

JOÃO PEDRO: Ih Diego tu pegou pesado com o pequeno! Cara a piada foi até engraçada, mas tipo não caiu bem. Tu saca todo esse lance de respeitar as minorias e tal, você sabe como é. Isso pode pegar pro teu lado. Se ele denunciar… Você tá fudido, meu parceiro.

DIEGO: É, eu sei. Minha mãe vive ameaçando de me mandar ir estudar num internato na Suíça. O mesmo internato que o chato do meu irmão estuda. Se isso cai nos ouvidos dela, vish, ela me arranca daqui aos pontapés!

JOÃO PEDRO: Pois pode ter certeza que se o Jeremias fizer uma denuncia, você vai terminar o ano juntos com as Suecas. E você está pensando de fazer o que?

DIEGO: Vou esperar ele na saída e vou tocar o terror. Vou ameaçar de transformar a vida dele em um inferno nessa escola se ele contar para os pais e me denunciar.

JOÃO PEDRO: Você vai bater no cara?

DIEGO: Se for preciso sim. Afinal ele não vai estar mais na escola. E coisa de rua a gente resolve é na rua!

Na sala do diretor…

Heitor tenta acalmar Jeremias.

HEITOR: Jeremias, você é um rapaz inteligente e sabe que pode denunciar Diego por injúria racial não é?

JEREMIAS: Sim, eu sei diretor.

HEITOR: Você pode relatar a seus pais e eles vão tomar as devidas providencias. Nós da escola estamos do seu lado e daremos todo o apoio necessário. O ato que Diego cometeu é repulsivo. Nós abominamos qualquer ato dessa natureza.

ELIZABETE: Gente isso é tão absurdo. Só de imaginar que o Diego não é o único no mundo a cometer isso… Tão mesquinho, nojento, desprezível. Se eu fosse a mãe dele daria três bofetadas e colocava-o na linha.

ALMEIDA: Calma Elizabete, bater também não resolve nada. A solução para Diego se chama educação. Coisa que falhou na criação que ele recebeu.

HEITOR: E então Jeremias, vai denunciar?

JEREMIAS: Não sei. Tenho medo. Tenho vergonha de contar isso para meus pais.

HEITOR: Não, por favor, não. Não se sinta assim meu filho. O Diego não pode ficar impune e isso passar batido, ficar esquecido como se fosse algo natural, uma mera brincadeira de escola. É denunciando que a gente impede que isso volte a acontecer. Não só a você, como a outros alunos.

JEREMIAS: Diretor Heitor, eu vou pensar tá? Não quero criar mal estar na escola, nem problemas com os pais de Diego.

HEITOR: Mas meu filho…

JEREMIAS: Eu prometo. Vou pensar direitinho. Agora só quero aproveitar o intervalo e relaxar um pouco.

HEITOR: Ok então. É uma situação delicada sendo seu pai quem é. Isso poderia causar uma situação um tanto desconfortável para a reputação do Instituto, mas seria necessário. Contudo, eu entendo você e vou respeitar sua decisão. É critério seu levar adiante e apresentar uma denuncia contra o seu colega. Mas estamos do seu lado. Por enquanto, até que você pense, tomarei providência para punir o Diego dentro do que me permite o regimento interno. Ele não vai se safar dessa. Professores, temos que arranjar um bom corretivo para o valentão.

ELIZABETE: Sabe Heitor, eu estou achando o muro da quadra da escola muito desbotada.

ALMEIDA: Você está falando de colocar o Diego para pintar o muro? E quando os pais deles souberem?

HEITOR: Acho que vão nos dar os parabéns! Ademais, dentro do contrato há uma clausula de adesão absoluta ao regimento do Instituto. E uma delas diz que podemos aplicar medidas socioeducativas aos alunos rebeldes. Pintar o muro seria uma boa.

JEREMIAS: Diretor, vamos negociar então. Mande Diego pintar o muro da quadra. Se ele negar, eu denuncio para polícia. Vai ser divertido o ver pintando o muro.

ALMEIDA: Será uma espécie de lição.

HEITOR: Não acho um acordo muito justo. Com ou sem muro pintado você deveria denunciar. Mas se você prefere assim e prometer que vai denunciar caso ele se negue, tudo bem. E pelo que sei, ele vai se negar e mais… Vai fazer um escândalo.

JEREMIAS: Eu prometo que denuncio.

HEITOR: Pode ir usufruir o intervalo. Ah, e não deixe comentários assim como de Diego te deixar para baixo. Você é um garoto exemplar. Tem um futuro brilhante.

JEREMIAS: Obrigado.

Jeremias sai da sala.

HEITOR: Elizabete minha querida, traga Diego até minha sala. É hora de negociar.

Elizabete sai da sala em direção ao pátio.

De volta ao pátio. Os alunos brincam de vôlei. Há um grupo de meninas jogando cantadas para Elvis.

JOÃO PEDRO: Esse cara vai se achar o gostosão do pedaço se as meninas continuarem babando ele assim.

DIEGO: E ele nem dá bolas para elas. Muito metido.

JOÃO PEDRO: Talvez ele não seja nem por ser metido que ele não tá dando bola pra elas.

DIEGO: E porque então?

JOÃO PEDRO: Talvez ele nem curta a fruta! Pode ser que ele só curta as bolas, se é que você me entende.

DIEGO: Será? É, tem cara de veadinho.

Os dois riem. Elizabete se aproxima.

ELIZABETE: Diego querido, o diretor Heitor está chamando você na sala dele.

DIEGO: Surpresa!

ELIZABETE: Surpresa é o que você vai ter quando conversar com ele.

Os dois se dirigem à sala do diretor. Elvis se distraiu olhando para Elizabete saindo com Diego, quando levou uma bolada.

DANIELA: Um cirurgião plástico, por favor! Eu vou matar quem atirou a bola se o rosto do anjinho tiver machucado!

De volta à diretoria… Diego ouve a proposta do diretor Heitor.

DIEGO: Pintar o muro da quadra?! Era só o que me faltava! Isso é uma humilhação.

HEITOR: E o que você fez com o Jeremias foi o que?

DIEGO: Uma brincadeira galera! Uma brincadeira aquilo!

HEITOR: De muito mau gosto, diga-se de passagem. Isso servirá de lição para você pensar bem antes de sair ofendendo os colegas. Aliás, sair ofendendo qualquer pessoa por conta da cor da pele.

DIEGO: Eu não vou pintar muro nenhum!

HEITOR: Bom, fiz um acordo com o Jeremias. Se você não pintar o muro ele vai denunciar. Aí o negócio fica mais sério não acha? Vai ser caso de polícia, os pais de Jeremias vão querer abrir um processo, seus pais não vão gostar nem um pouco… E pela influencia do pai dele, digo logo que desista de defesa, porque você vai perder o caso.

DIEGO: Eu prometo que isso não vai se repetir diretor.

HEITOR: Eu também prometo que não vou te dar outro muro para pintar. Mas como você já ofendeu você tem que quitar a dívida e pintar o muro equivalente a essa ofensa a Jeremias.

DIEGO: Acho isso uma falta de respeito. Meus pais pagam essa escola.

HEITOR: Jeremias também acha uma falta de respeito e os pais deles também pagam essa escola. E aí, o muro ou polícia?

DIEGO: Está pensando que sou idiota?

HEITOR: Claro que não. Não mesmo. E por isso você vai fazer a escolha certa.

DIEGO: Só se for depois das aulas.

HEITOR: Bom, eu pretendia que fosse durante os intervalos. Mas como você não pode perder aula, tudo bem. Vai ter todo o tempo do mundo para ficar pensando sozinho no que fez enquanto pinta o muro. Você começa amanhã.

Diego se levanta enfurecido.

HEITOR: Ah, eu quero o muro muito bem pintado. Ou vai ser preciso aplicar ou demão de tinta.

Ao sair da sala Diego balbucia.

DIEGO: Droga!

O intervalo termina e todos retornam para a sala de aula. Aula de Língua Portuguesa. Professora Keila. Diego conversa na aula com João Pedro.

DIEGO: Eu vou acabar com a raça do Jeremias.

JOÃO PEDRO: E o que foi da vez cara?

DIEGO: Ele fez um acordo com o diretor. Eu tenho que pintar o muro da quadra, se não fizer isso ele vai prestar queixa de injúria raciali na delegacia.

JOÃO PEDRO: Caramba! E você vai pintar o muro?

DIEGO: É o jeito. Pois se ele denunciar eu estou frito. Meus pais me mandam ainda hoje para a Suíça. Mas na hora da saída esse pretinho me paga. Vou seguir ele até sumir da vista de qualquer um e vou dar uma surra nele.

JOÃO PEDRO: Medo de você seu malvado.

Os dois riem. O tempo passa e horas mais tarde…

…Enfim termina a última aula. Muitos alunos ficam na porta da escola. Elvis se despede de alguns colegas novos que fizera no decorrer do dia. Então ele vai se despedir de Eduarda.

EDUARDA: Elvis o convite ainda estar de pé?

ELVIS: Ah sim claro. Já lhe dei o endereço e o meu número de telefone. Sete horas te espero em minha casa.

EDUARDA: Quero que você me mostre o trabalho dessa cantora… Como ela se chama mesmo?

ELVIS: Enya. Você vai gostar muito tenho certeza.

EDUARDA: Foi muito bom conhecer você amigo.

ELVIS: Eu digo o mesmo.

Um carro se aproxima.

EDUARDA: Minha mãe chegou. Não quer uma carona?

ELVIS: Já chamei um taxi. Obrigado.

Os dois se despedem, Eduarda entra no carro e vai embora. Jeremias passa por Elvis e dá um breve sorriso. Elvis retribui e olha o rapaz se afastar. Quando, porém, decidiu atravessar a rua para esperar o taxi, ele vê Diego passando com João Pedro em passos largos seguindo Jeremias.

DIEGO: É agora que ele me paga.

JOÃO PEDRO: Ih cara, meu pai chegou. Vou poder te acompanhar não. Depois me conta tudo.

João Pedro entra em um carro que parou próximo à calçada. Diego caminha seguindo Jeremias. Elvis fica inquieto. No decorrer do dia ele soube da atitude preconceituosa de Diego. Seu instinto falava que Diego não estava com boas intenções. Elvis começa a seguir Diego a certa distancia. Eles caminham pela Avenida Beira Mar em direção à Avenida Pedro II, subindo a rampa de acesso ao Palácio dos Leões, a sede do governo do Estado. Diego corre em direção a Jeremias e o agarra. Elvis corre para impedir.

ELVIS: Solta ele!

DIEGO: Não se mete cara! O negócio é entre ele e eu.

JEREMIAS: Me solta Diego! Eu não te fiz nada cara.

DIEGO: Cala a boca caralho! E fez sim! Que ideia foi essa de me obrigar a pintar o mudo da quadra?

JEREMIAS: A ideia não foi minha!

DIEGO: Foi sim. A ideia foi tua!

ELVIS: Diego cara, deixa ele em paz.

Elvis fica extremamente nervoso. E começa a passar mal.

ELVIS: Vamos resolver isso de outra…

Diego solta Jeremias e encara Elvis. Jeremias corre sem pensar duas vezes. Diego empurra Elvis que cai no chão.

DIEGO: Qual é a tua meu irmão? Vai querer apanhar no lugar dele é? Então tudo bem.

Elvis não consegue mais falar. As palavras não saem. Apenas um chiado do peito. Com as mãos no pescoço Elvis ficar arfando, desesperado. Diego hesita observando a cena com estranheza.

DIEGO: Que foi cara? Que ceninha é essa?

Elvis tenta abrir a mochila a procura de algo. Diego observa confuso.

DIEGO: Ei cara, o que foi? Tá tudo bem. Não precisa ficar assim se cagando de medo!

ELVIS: As.. Asm… Asma.

DIEGO: Que?!

ELVIS: Crise de asma!

Elvis não encontra o que procura na mochila.

DIEGO: Caralho!

Diego se preocupa. Rapidamente ele procura algo na mochila também. Elvis abre os braços, puxando o ar. Diego encontra o que procurava.

DIEGO: Eu tenho uma bombinha!

Diego então agarra Elvis pelo braço e o apoia em suas pernas, coloca a bombinha na boca dele e aperta. Diego aspira fundo. Ele aperta mais uma vez e ele volta a inspirar debilmente. Elvis não reage com esperado.

Tudo apaga para Elvis. Escuridão. Ele perde a noção do tempo. Quando, enfim, acorda percebe que está em um lugar de claridade sobrecomum. As imagens vão se definindo e rostos aparecerem. Sua mãe se aproxima chorosa.

ELIS: Meu filho! Que bom que você acordou? Como está se sentindo? Está bem?

Elvis tenta se apoiar, mas está sem força, uma grande moleza.

ENFERMEIRA: Calma, fique deitado. Não force. Senhora, ele está grogue por conta da medicação que aplicamos, mas ele está bem. Não teve nenhuma lesão grave, embora estivesse exposto a um grande risco. Mais um pouquinho de tempo sem oxigênio poderia ter causado lesões irreversíveis no cérebro. Mas graças ao amigo dele isso não aconteceu.

ELIS: Cadê esse amigo? Eu preciso agradecer muito a ele por ter salvo meu filho.

ELVIS: Amigo? Que amigo?

ENFERMEIRA: Ele já foi embora. Um fortinho de cabelos espetados. Muito bravo e com resposta para tudo. Mas foi graças a ele que está tudo bem agora.

ELVIS: Diego?

ENFERMEIRA: Justamente. Esse era o nome dele. Pelo que relatou, o seu filho teve uma crise gravíssima de asma. Algo súbito. Por ironia do destino o rapaz tinha uma bombinha e o mais curioso é que a medicação fez efeito, abriu o pulmão, mas o paciente apagou. Por sorte, o rapaz correu até o prédio da Capitania dos Portos, que fica ali perto, e pediu ajuda. Os enfermeiros da Marinha cuidaram dos socorros e trouxeram-no para cá, tudo muito rápido. Se seu filho tivesse ficado mais um minuto sem os socorros, como falei, estaria em uma situação delicada agora.  O grande fator foi a aplicação que ele fez do medicamento através da bombinha que ele tinha, pois também sofre de asma. E também foi o tal Diego que ligou para a escola e conseguiu o seu contato. Só assim conseguimos falar com a senhora. Assim que soube que a senhora estava a caminho, ele foi embora.

ELIS: Esse Diego é um anjo, meu Deus!

ELVIS: O Diego?

ENFERMEIRA: Ele ainda está sob o efeito de remédios.

Tudo apagou novamente.

 

 

“Ao fim daquele dia eu já tinha boas respostas para minha pergunta inicial “Quem eu encontraria pela frente?”. Encontrei gente maravilhosa, gente boa, gente ruim, gente péssima e o Diego. Parece que o destino da gente estava confusamente entrelaçado. Assim que coloquei o pé na escola eu já ouvi falar dele. E o que ouvi não foi nada animador. No entanto,  ao fim do dia ele salvou minha vida. Quem diria que aquele menino tão diferente de mim tivesse algo em comum comigo. Mesmo sendo uma doença, asma. Mas era algo em comum. E foi esse algo que nos colocou frente-a-frente. Ele poderia ter me deixado morrer com falta de ar. Mas o destino de alguma maneira deve ter soprado no ouvido dele que não deixasse aquilo acontecer. Diego não sabia, assim como eu também não sabia ainda, pelo menos não com muita clareza, mas ali começava uma grande história!”

(Trecho do diário de Elvis Braga)

 

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