Black Tears – Capítulo 2
Pelo o que Lutamos.
Vivemos pela gloria.
Nascemos para governar.
O destino dos fracos é
a morte.
Sejamos fortes.
Sejamos temidos.
O mundo é somente nosso.
O céu sem nuvens estava tão deslumbrante que quase me fez esquecer meu corpo dolorido, a sensação das gotas de suor que desciam suavemente pelo meu rosto calmamente se misturavam ao orvalho da grama.
– Levante-se criança.
Uma risada amarga tentou sair pela minha boca, mas nem isso era possível. O último resquício de energia havia sido usado no treino com o vovô que animadamente se apoiava em seu machado duplo.
– Admito que não tenho mais forças. Está feliz agora -.
Ele levantou sua sobrancelha esquerda enquanto movia sua mão até uma das tranças em sua barba. Sua resposta demorou um tempo até que ele me ofereceu sua mão – Terminamos por hoje então -.
No exato momento em que segurei sua mão o tempo ficou mais rápido e o mundo começou a dar voltas até que uma dor enorme se espalhou pelas minhas costas. Algo quente começou a escorrer pela minha boca manchando minha blusa feita de pele de sabre, olhei para o vovô que em um piscar de olhos tinha se afastado.
– Quando você for enfrentar um inimigo ele não vai perguntar ou mesmo se importar se você tem energia -.
Ele se aproximava tão devagar que tive a impressão que o tempo tinha ficado mais lento, segundos depois uma fumaça cobriu minha visão juntamente a um som muito alto que tão semelhantemente se parecia um instrumento quebrado. Como se estivesse participando do treino o vento arrastou a nuvem de poeira deixando apenas duas pessoas e uma marreta de batalha cravada na parede espalhando rachaduras em forma de teia.
– Pelos meus cálculos você morreu quatro vezes desde que começamos. Você sequer está tentando – O sarcasmo em suas palavras perfurava minha pele como agulhas.
O ar puro da manhã entrou com dificuldade em meus pulmões me permitindo sair da parede que por sorte não havia desmoronado até então. Limpei o suor misturado com o pó causado pela colisão e então me curvo o suficiente para pegar uma adaga escondida na bota só para então ficar em posição de luta.
– Ainda não desistiu. Pelo o que vi até agora você vai morrer na sua primeira missão -.
Com um simples salto seu machado já estava perto do meu pescoço e imediatamente um som estridente surgiu entre a colisão da adaga e o machado que tinha sido levemente desviado para cima mudando sua antiga trajetória para os meus olhos. Flexionei meus joelhos o suficiente para escapar do machado só para um joelho vir em direção ao meu abdômen, com a mão esquerda o desviei para o lado contrário em um movimento fluido ao mesmo tempo em que dirigia um chute frontal aproveitando o impulso. O chute foi defendido só com a pura força de seu abdômen me fazendo dar um mortal para trás tomando alguma distância.
Sentindo um perigo rolo para o lado só para desviar de um ataque vertical forte o suficiente para abrir uma cratera. O machado sem descanso algum me seguia como um cão de caça que tinha farejado sua presa me fazendo ter que se adaptar a situação.
– Se você não atacar vai acabar morrendo -.
As provocações apesar de não ser tão recentes eram usadas nos momentos certos visando me desmotivar, mas não teriam efeito nenhum, não comigo. Aproveito a poeira feita pelo impacto para desferir um golpe a sua perna de apoio visando sua velocidade. Apesar de ter sucesso fez apenas um mísero corte no couro de leão me fazendo estalar a língua.
– Seu jeito de segurar a lamina e bem peculiar Bear – falou um pouco surpreso – Nunca tinha pensado em segura-la de ponta cabeça -.
Não sei se já tinha ficado louca ou o cansaço tinha me afetado, mas uma súbita vontade de rir me dominou.
– Já que você está animada vamos continuar -.
Mesmo me arrependendo de ter rido o sentimento ainda permaneceu enquanto tomava distância. Fui ensinada que o inimigo sempre tem um ponto fraco, mas isso só serve para os fracos.
Com o canto do olho observo o muro que agora estava alguns passos atrás, o martelo preso naquela teia de aranha clamava por batalha. Sentindo um arrepio me inclino para trás evitando uma brisa certamente mortal.
– Você não deve ter apanhado o suficiente para desviar os olhos, mesmo que por alguns segundos -.
Aproveito a oportunidade uso seu corpo como apoio para pegar distancia, mas assim que meu pé encontrou apoio em sua barriga senti um aperto enorme na canela.
– Não use o mesmo truque duas vezes, você só tem uma vida – ao mesmo tempo em que seu tom era amável era tão firme quando uma rocha.
O mundo tinha ficado de cabeça para baixo e o machado que me caçava com tanta avidez descansava no chão. Usei a perna livre para chutar seu rosto que foi defendido por sua mão direita me dando tempo para cumprir o próximo passo. Sem perder tempo retirei minha bota o que me fez cair e acabar rolando para perto do muro onde com firmeza segurei o cabo do martelo que imediatamente me passou uma sensação de calma. Guardo a adaga na bota remanescente e então puxo o martelo da parede a fazendo ruir em um estrondo. Senti o frio da grama se espelhar pela minha perna antes de chutar o chão e desferir um ataque com todo o poder que restava. Sempre fui ensinada a não ter misericórdia com ninguém, nunca pegar leve mesmo com a família.
– Vamos ver como você se sai com esse ataque – seus olhos brilharam quebrando totalmente a tensão de alguns momentos atrás.
Uma onda de choque correu pelos meus braços, a pressão varreu toda a área circundante assim como o resto das minhas forças. Ar pesado saiu pela minha boca, meu único apoio era o martela que ainda estalava pela eletricidade. Vovô por outro lado sorria de orelha a orelha parecendo algum animal das antigas lendas, não pude deixar de soltar uma risada seca para o idoso em perfeito estado na minha frente.
– Ótimo Bear. A única coisa que te falta agora é experiência de como se tratar um idoso.
– Claro, porque você é um idoso comum.
– Mais ainda sim sou um idoso, então trate de me tratar com gentileza.
Suspirei sem forçar para retrucar. A sensação de peso do corpo só piorava a situação e o caminho até a parte de cima da cratera parecia maior do que eu pensava. No topo uma garrafa quase atingiu meu rosto poucos segundos antes que minha mão automaticamente a pegasse, seu liquido gelado só fez lembrar do estado que estava.
– Você tem três minutos para descansar -.
Segurei firme minha marreta enquanto esvaziava o conteúdo da garrafa sem ao menos respirar. A sensação de frescor das gotas que faziam seu caminho pelo meu rosto até chegar no peito era maravilhosa. Retornei a garrafa vazia para o vovô que arrumava o acampamento diligentemente. Fiz o mesmo caminho que antes para um pequeno lago.
– Tratar ele como um idoso – murmurei retirando uma folha do cabelo – Ele que deveria me tratar como um humano e não um saco de pancada.
Ninguém a não ser o vazio da floresta poderia escutar minha reclamação. Um sentimento enorme de alivio percorreu meu corpo vendo o pequeno lago que era tão transparente que refletia o que estava no fundo dando a impressão que era rasa. Joguei a marreta que pousou pesadamente perto de uma arvore a fazendo tremer.
– Bem que essa água poderia ser quente – pensei depois de tocar a água e ver que não seria tão facil tomar um banho quente, tive um espasmo no canto da boca antes de começar a tirar a roupa dispersando pensamentos inúteis.
Observo rapidamente o lago e vejo uma garota de cabelos loiros quase marrons de tanta sujeira parecendo uma mendiga.
– Então é por isso que me chamam de Bear e eu achando que era um apelido carinhoso -.
Chuto uma pedra que ao cair dispersou temporariamente o reflexo agitando as águas.
** 2 **
A sombra sobre a arvore misturada ao barulho dos pássaros era perfeita para se aproveitar os dois minutos e meio que restavam do intervalo. Meus olhos ficaram tão pesados que em questão de segundos fui levada para o reino de Gnyyr tão suavemente como uma larva num casulo.
Me encontrei olhando para cima cujo o reflexo de uma garota de cabelos tão loiros quando ouro branco me encarava, seu corpo nu flutuava no rio infinito com os braços estendidos com uma santa. Não pude me mover, algo me pressionava para baixo o suficiente para que não afogasse, mas tão pouco me permitia qualquer movimento mesmo o mais sutil deles. A única coisa permitida a se movimentar foram meus olhos que mesmo ao passar pelo local só notavam o reflexo juntamente com um mar negro. Meu corpo que flutuava sem rumo colidiu com alguma coisa macia que acabou dispersando a força invisível que me prendia a água. Era uma pequena ilha com areias negras, dela se poderia ver pontos luminosos um mais intenso que o outro começando a surgir criando um enorme espetáculo. Sai lentamente da água que em momento algum fez qualquer som ou ondulação.
-…- Tentei dizer algo, mas a voz não deixou minha garganta, ou melhor dizendo, ela se recusou a sair como se algo a tivesse travando. Minha mente era a única coisa nessa imensidão que poderia me escutar.
Mesmo molhada a sensação de frio nunca chegou, nem mesmo a sensação das gotas que fazia seu caminho pelo meu corpo eram sentidas. Sentei a margem da ilha, abracei meus joelhos enquanto observava as luzes que ficaram mais intensas formarem desenhos de guerreiros batalhando. No meio daquele mundo silencioso uma garotinha caminhou pela areia até se agachar nem tão perto, mas também não ficou muito longe. Seus dedos pálidos delicadamente faziam desenhos na areia enquanto um manto negro deslizava pelas suas costas como um vel. Não consegui ver seu rosto ou muito menos seus olhos.
– Quando ninguém se importa com você – sua voz era melancolicamente artificial, como se fosse um eco de um tempo que a muito havia se perdido – Se todos te evitam como se uma doença lhe acompanhasse. Qual é o significado de existir. Por que devo continuar a viver.
Seu reflexo era seu único ouvinte naquela imensidão onde apesar de não ser frio também estava muito longe do calor que ela precisava, ou queria. A garota balançou a cabeça creio eu tentando esquecer de algo ou de alguém. Nesse mesmo segundo minha pergunta foi totalmente negada quando uma coisa negra emergiu do mar.
– Quem lhe disse que não é necessária – Ele parou na sua frente. Sua voz era muito profunda, como se viesse das profundezas daquele mar – Oh! Criança, não se importe com aqueles que te desprezaram. Eles não são nada mais do que tolos em seu próprio mundo.
A coisa então estendeu o que parecia uma mão cujo o destino era o seu pequeno rosto, ela por sua vez o levantou para encará-lo.
– Posso lhe dar algo pelo o que viver. Ofereço a você o direito a vingança. Só peço sua lealdade como pagamento -.
Ele se afastou alguns passos da garotinha e então estendeu sua mão. Ela por alguns segundos o encarou antes de dar um passo para frente e pegar sua mão resultando no enfraquecimento de algumas estrelas nós mergulhando em uma escuridão parcial cuja a única luz solida provinha somente do meu corpo. Antes que eu percebesse aquela coisa me encarava ou parecia estar me encarando o que causou um frio enorme que subia minha espinha – Esse não era suposto ser o meu sonho ou pelo menos um sonho agradável – pensei ao dar alguns passos para trás, mas aquilo em hipótese alguma desviou seu rosto sem forma de mim. O mais intrigante ou estranho era que a sensação de estar sendo observada permanecia, mas ele também parecia estar olhando para a garotinha.
– A partir de hoje minha querida criança – Seu entorno começou a ficar mais negro do que já era ao ponto de engolir todas as estrelas a sua volta – Sua alma é minha.
A garota se virou me permitindo ver o seu rosto que de todas as formas parecia ser feito de porcelana, mas seus olhos eram da mesma escuridão daquela que se projetava da “coisa”, a mesma que engolia tudo. Tentei fugir mais minhas pernas não se moviam, meu corpo novamente fora atacado pela força invisível de antes. Seus olhos não desviaram de mim mesmo dizendo aquelas coisas. A garota havia vendido sua alma ao demônio sem que eu pudesse fazer nada para impedir me fazendo sentir uma mistura de culpa, cautela ou dúvida de que aquilo era um sonho. Infelizmente a resposta nunca seria respondida.
– Bear já está na hora de acordar. Bear!
Abri os olhos tão rápido que vovô tomou um susto o fazendo recuar. Respirei por alguns segundos antes de me acalmar. Aquele tinha sido um sonho muito estranho, estranho até demais. Vovô me vendo trouxe água gelada que por alguns instantes pensei que tinha sido pego do lago onde tomei banho, mas esse pensamento sumiu tão rápido quando veio antes do liquido desaparecer pela minha garganta.
– Vamos, está na hora de irmos.
Meu corpo inteiro estava coberto de suor frio o que me fez sentir que foi inútil ter tomado banho antes de ter ido dormir. Dei alguns tapas para tirar a poeira, peguei minha marreta a colocando em minhas costas e então comecei a seguir o vovô que já tinha montado seu cavalo e então partimos para nosso destino, Alberon.
O tempo tinha ficado mais quente indicando a mudança de estação ou possivelmente uma chuva.
– Você está bem bear? -.
– Estou, só tive um sonho estranho – me virei para encarar o vovô que parecia bem preocupado.
Ele passou sua mão na barba antes de segurar sua trança – Talvez Gnyyr queria lhe mostrar algo, os Deuses são bem misteriosos. Fique atenta -.
– Pode deixar vovô. Ninguém vai brincar com a minha mente, não curto muito esses joguinhos de adivinhação.
– Conheço bem seu descontentamento bear – Retrucou – Mas prevenção nunca é demais, lembre-se disso.
Assenti antes de desviar meus olhos para a floresta, nosso caminho em baixo do sol escaldante havia acabado de nos dar um tempo ao entrarmos na floresta que nos recebia alegremente sobre sua sombra. O vento fresco passou levando consigo minhas preocupações e apesar de escura tinha algumas lacunas onde a luz passava iluminando os musgos crescendo em troncos caídos. Movimentos eram visíveis dentro dela, mas eram apenas pequenos animais como lebres ou raposas tentando não se encontrar.
– Em quanto tempo devemos chegar em Alberon? – vovô ponderou por um tempo antes de responder – Devemos demorar duas horas sem imprevistos, alguma coisa te incomoda.
– Minha bunda vai ficar dolorida por ficar andando nessa coisa – Apontei para o cavalo.
– Deixe de reclamar – Falou parecendo aturdido – Mesmo sofrendo essa tortura nunca reclamei e também veja pelo lado bom, você não tem bolas.
– E desde quando precisa ter bolas para se sentir desconfortável em cima de um cavalo – Perguntei enquanto me ajeitava.
– Se está tão desconfortável levante essa bunda e ande. Vou esperar você lá.
– Velho desgraçado – murmurei olhando para a floresta – É por isso que você não arruma uma mulher. Você não é diferente de um ogro.
Ele deu de ombros ao olhar para a frente, sua mão inconscientemente foi para sua trança enfeitada por uma pequena argola dourada.
– E não pretendo mudar minha cara neta. Além do mais se eu quiser uma mulher vou a um prostíbulo, lá elas são pagas para gemer e eu para ser um ogro. Todo mundo sai ganhando -.
Sua risada ecoou pela floresta dispersando qualquer animalzinho nos arredores, suspirei ao perceber que seria uma perda de tempo argumentar com ele. A única coisa que impedia o ambiente de ficar em um silêncio completo foi o farfalhar das arvores e o barulho que fiz procurando algo na bolsa, depois de um tempo retiro uma faca juntamente com um toco que tinha pego pelo caminho. Começo a raspa-lo deixando o controle do cavalo totalmente a mercê do destino.
– Vamos lá seu velho, cantemos para espantar esse terrível silêncio, estou ficando com tedio -.
Largando as rédeas do cavalo ele começou a bater palma simultaneamente entrando no ritmo.
– Oh! Guerra que amamos e tanto esperamos – Uma batida rítmica – Mortes honrosas– batida – Vidas perdidas – batida – Pelo o que, lhes pergunto!
– Gloria! – Batida – Gloria! (Grito fraco)
– Antepassados olhando – Batida – Corvos voando – Batida – Soldados em prantos – Batida – E eu vou celebrando – batida – Pelo o que, diga meu velho!
– Gloria! – Batida – Gloria! (Grito fraco)
– Cidades em brasas – batida – Guerreiros caídos – Batida – Machados voando – Batida – Cabeças caindo – Batida – Pelo o que, não ouvi!
– Gloria! – Batida – Gloria! (Grito Médio)
– Deuses gritando – batida – Mortais reagindo – Batida – Descrentes zombando – Batida – Valquírias sorrindo – Batida – Pelo o que, lhes pergunto!
– Guerra! – Batida – Guerra! (Grito Médio)
– Irmãos se abraçando – Batida – Viúvas chorando – Batida – Filhos brincando – Batida – Caminho vazio – batida – Pelo que eles buscam!
– Gloria! – Batida – Gloria! (Grito alto)
– Comandante avançando – Batida – Flechas zunindo – Batida – Escudos quebrando – Batida – Soldados fugindo – Batida – Pelo o que eles avançam!
– Gloria! – Batida – Gloria! (Grito Alto)
– Muros caindo – Batida – Trombetas tocando – Batida – Vitoria surgindo – batida – Heróis retornando – Batida – Trazendo o que!
– Vitoria! – Batida – Vitoria! (Grito Alto)
Sem perceber o som ficou mais alto do que duas pessoas poderiam produzir. Retirei meus olhos de um semi-lobo de madeira só para encontrar vários tipos de pessoas batendo palmas e dançando ao redor. Vovô tremia segurando sua barriga vendo minha reação – Não quis te interromper. Você parecia tão animada – disse o velho com os olhos marejados. Quando viram que parei de cantar todos os olhares se voltaram para mim esperando a próxima canção, alguns deles tinham rostos de expectativas enquanto suor descia pelos seus rostos até se perder nas roupas. Crianças que antes brincavam animadamente dentro de carroças colocaram suas pequenas cabeças para fora como filhotes de cachorro pedindo mais comida. Suspirei antes de limpar a garganta, todos percebendo a ação começaram novamente a bater palmas, naquele momento percebi que devia ter ficado quieta esculpindo quando pude.
– O paraíso em festa – Batida – As musas dançando – Batida – Servos correndo – Batida – Almas vibrando – Batida – Pelo o que, lhes pergunto!
– Gloria! – Batida – Gloria!
– Canecas batendo – Batida – Cantoria aumentando – Batida – Valquírias voltando – Batida – Soldados Chegando – Batida – Pelo o que eles esperam!
– Gloria! – Batida – Gloria!
– Liras tocando – Batida – Almas rugindo – Batida – Deuses olhando – Batida – A recompensa está vindo – Batida – Mais uma vez!
–Oh! Guerra que amamos e tanto esperamos…
** 3 **
No final tive que cantar mais quatro vezes antes de todos se cansarem, minha garganta estava seca pelas poucas vezes que pude parar antes de retornar há cantoria. Vovô animadamente conversava com alguns comerciantes e suas escoltas ignorando totalmente a culpa – Esse velho me paga – murmurei em meu coração. Já havíamos deixado a sombra fresca da floresta para voltar ao sol quente do meio dia. A grama que farfalhava como ondas fazia com que o silencio fosse ainda melhor, no horizonte muros de pedra já eram visíveis com soldados andando de um lugar para o outro sempre vigilantes.
– Vamos garota, temos que fazer a entrega – falou ao se despedir de todos.
Guardei o lobo de madeira que agora estava completo só para pegar as rédeas do cavalo.
– Mal posso esperar por isso – meus murmúrios se perderam no vento quando aceleramos até a cidade onde uma fila enorme aguardava os viajantes.
Sem ao menos parar fomos direto ao posto de comando fazendo os guardas circundantes ficarem em guarda chamando atenção das pessoas que com medo recuaram em murmúrios. No meio dos guardas um homem claramente descontente caminhou em nossa direção com a mão erguida.
– O que vocês estão fazendo, entrem na fila -.
Paramos suficientemente longe para ficar fora do seu alcance, mas perto o suficiente para uma conversa amigável.
– Leia isso – Vovô jogou uma carta para o guarda que pegou por reflexo – Na carta diz que temos passe livre.
Desconfiado o guarda abriu a carta e vasculhou tão rápido que duvidei que ele realmente soubesse ler.
– Certo, aqui tem a assinatura do Conde. Pode passar -.
Com passos calmos ele retornou a carta para o vovô antes de abrir caminho. Olhei brevemente antes de sair e seu rosto distorcia o que só aumentou meu sorriso.
– Passar bem, “soldadinho de brinquedo” -.
Não pude aproveitar a sua reação, já estava muito longe. A cidade era preenchida de uma aparente alegria, cidadãos sorriam enquanto caminhavam pelas ruas e ocasionalmente paravam para olhar alguma vitrine ou mesmo chegando a entrar na respectiva loja. Havíamos deixado os cavalos em estábulos logo na entrada da cidade, vovô tinha dito que conhecer a cidade a pé seria interessante. Caminhamos no mar de pessoas que nos percebendo recuaram ou seguraram seus filhos, claro que isso era por causa do velho. Pelos cantos da cidade mendigos rastejavam em suas últimas forças, seus braços magros tremiam por estarem levantados mostrando seu aparente esforço, sua recompensa por aguentarem por tanto tempo era o desprezo dos transeuntes. Nunca gostei de ficar muito tempo em uma cidade, ou muito perto de hipócritas, isso tudo me sufocava. Agarrei um garoto que passava, joguei uma moeda só para ignora-lo novamente. Estar bem informado era necessário principalmente sobre a situação política do mundo – Risos -, as pessoas em volta me lançaram um olhar estranho, mas quem se importa com elas.
– Alguma coisa engraçada no jornal Bear?
– Nada demais só uma piada veio em mente, aquela do anão -.
Olhei devagar pelo ombro só para ver vovô quase engasgar com um pedaço de maça – Nunca mais conte uma piada dessas, principalmente perto de anões -.
Caminhamos pela rua principal até virarmos em um beco envolto em sombras, o conde foi bem especifico na carta dizendo que não queria nos ver em sua amada mansão. Dentro do beco alguns homens descansavam no meio daquele fedor proveniente deles mesmo e do chão.
– Vocês devem estar esperando o pacote, se sim vamos logo, esse lugar fede – falou vovô balançando a mão -.
Os homens então começaram a andar entre aquele labirinto de casas, no caminho várias crianças tentaram pedir dinheiro e mulheres com vestidos tão curtos que chegaria a ser um insulto dizer que estavam com frio, realmente não sei se foi bom ou ruim fazer uma negociação nesse tipo de lugar. Sem dizer quaisquer palavras os homens fizeram um sinal com a cabeça e então seguiram reto desaparecendo.
– Para que tudo isso, seria mais prático se ele aparecesse – suspirei olhando para o prédio seminovo com uma placa em neon escrita ” Bar do Norte “.
Deixamos para trás um céu azul para entrar em uma espelunca que rangia ameaçando quebrar a cada passo, olhamos procurando algum sinal até que um homem no canto acenou com a mão nós chamando.
– Você deveria ir Bear, ele é jovem então podemos ganhar mais se você for delicada – Comentou vovô com um sorriso -.
A música que soava pelo local cobriu a maior parte das minhas palavras me fazendo tomar um tapa nas costas. – Achei que seria essa sua resposta. Tente não matar ninguém – e então saiu calmamente em direção ao homem que segurava uma caneca cheia em uma mão e na outra ele abraçava uma mulher. Ignorando a situação deixei minha marreta no chão enquanto me sentava de costas para o barman que limpava um copo em silêncio, cruzei as pernas só para usa-la como apoio do braço que por sua vez apoiei meu rosto enquanto observava as pessoas que riam, bebiam e subiam até o segundo andar para terminar de festejar com mulheres tão bêbadas quanto eles. Volto minha visão para o barmen que agora servia algumas bebidas, sua barba mal feita, cabelo despenteado e um traje cuidadosamente sujo era totalmente proporcional ao local, tanto que deixava muito obvio.
– Você deveria se disfarçar melhor senhor barman, seu modelito é tão obvio nesse lugar que dói até os olhos de alguém treinado – ouvindo meu murmúrio ele ergue as sobrancelhas -.
– Fui contratado para servir de guarda para o homem na mesa ali, não quero problemas – ele apontou para o cara junto com o vovô -.
– Já foi direto ao assunto. Não ofereceu nem uma bebida antes – com um sorriso deslizo o copo até o barman que o pega habilmente – Notamos isso na hora que entramos, assim como seus amigos -.
Acenei para o homem sentado com duas mulheres uma em cada coxa, outro perto da escada tentando ganhar favores de uma das garçonetes e outro sentado na última cadeira no bar em silencio. Todos esboçaram um sorriso sarcástico ao serem notados tão rápido.
A música havia ficado mais alta ao mesmo tempo em que os dançarinos aumentaram seu ritmo girando as mulheres de um lado para o outro que por sua vez faziam todos baterem palmas em admiração. No canto dois bêbados discutiam fervorosamente ao ponto de ficarem vermelhos, sem esperar um convite uma terceira pessoa se envolveu na discussão só para levar um soco que havia sido a fagulha para que o fogo se alastrasse. Desviei antes que uma garrafa explodisse na parede fazendo o barman suspirar em desgosto. O mais divertido era que mesmo as mulheres que faziam companhia a eles começaram a brigar chegando ao ponto de quebrar uma cadeira nas costas de alguém.
– Isso é um belo passatempo -.
A briga que tinha começado a tomar proporções muito altas foi dispersada pela segurança do bar – Agora que a coisa estava ficando animada – disseram os espectadores que animadamente faziam apostas entre si. Soltei o ar que estava segurando antes de parar no meio do caminho e cheirar a bebida que tinha um aroma delicado, porém muito convidativo. Mexi o copo fazendo o conteúdo girar em um pequeno redemoinho, suspirei novamente antes de olhar para o barman que distraidamente atendia um cliente, as bebidas em seus copos transparentes estavam em perfeita ordem em cima do balcão, voltei minha visão para o público.
– Tem algo errado com a bebida senhorita? – seus passos faziam o velho piso ranger -.
– O gosto estava meio estranho – parei de girar a bebida. Não pude ver sua expressão, mas seus passos haviam parado a uma certa distância – Mas tirando isso estava muito boa.
Um fraco suspiro se perdeu em meio ao barulho da música. Calmamente me virei para observa-lo, apesar de seu rosto serio uma leve gota de suor descia pela sua testa. Com um sorriso, encostei no balcão enquanto retornava a olhar para as pessoas dançando e seus admiradores que expeliam fumaças da boca.
– Sabe senhor barman, gosto muito de flores. Elas são tão bonitas. – O chão rangeu – Algumas mais do que outras, posso te dar um exemplo das minhas preferidas – A música ficou mais alta -.
– Veratrum, suas pétalas brancas são tão bonitas quantos os cumes gelados de uma montanha. Uma flor belíssima, geralmente conhecida como “a flor do sono eterno” -.
– Cebera Odollam. Tão delicada quando um floco de neve. Você sabe o nome técnico dela senhor barmen? -.
A resposta veio tão fraca que parecia mais um sussurro – Não…-, Inclinei meu pescoço um pouco para o lado fazendo meu cabelo deslizar pelo ombro.
– Não se preocupe, não esperei muito de você. Bom, o nome dela é “A santa” por ser muito gentil com seus admiradores -.
– Adenium obesum, o perfeito exemplo de beleza e resistência das que conheço, suas pétalas que vão de um rosa escuro à rosa claro terminando por fim em uma pequena porção de branco é deslumbrante. Ela é tão forte que é conhecida como “valquíria vermelha” -.
– É por último mais não menos importante Nerium. Não gosto muito dessa flor, mas não posso retirá-la das minhas favoritas, como poderia se ela me lembra do que nunca tive – coloquei o copo cujo o liquido azul havia parado de girar em cima do balcão, próximo ao barman – Seu nome é “coração partido”.
Deixei de contemplar o salão para olhar fixamente para o barman que apesar de não mudar sua expressão gotejava suor manchando sua camisa, quando entrei achei o ambiente bem ventilado para um bar.
– Sabe por que estou lhe contando isso senhor barmen? – Ele inocentemente balançou a cabeça negativamente – Todas essas flores são inodoras, porém meu nariz é muito sensível sabe – Fiquei impressionada que apesar de seu corpo tremer, o rosto estava imóvel – Vou perguntar apenas uma vez senhor barmen, quem colocou o veneno?
Sua boca se abria e fechava constantemente, seus olhos iam de um lado para o outro procurando algum apoio que nunca viria, os guardas já tinham sumido.
– Tique-taque senhor barmen, o meu tempo é precioso – apontei para vovô que já estava encerrando sua conversa – Vou ser gentil é lhe dar duas opções. Beba no meu lugar e seja fiel até o fim não tão amargo – seu rosto impassível havia quebrado – Ou me diga quem foi é viva o tempo restante como achar melhor -.
Fiquei observando suas ações por alguns segundos, seus braços haviam se curvado em um V, indicando que ele estava segurando algum objeto atrás do balcão. Não demorou muito para que ele tomasse sua decisão que contrariou minhas expectativas, ele pegou o copo e tomou em um só gole.
– Que pena que vamos terminar assim. Aproveite o “coração partido” senhor barmen -.
O barman ficou me observando enquanto uma única lagrima escorreu pelo seu olho direito se misturando com o suor.
– Vamos Bear, o negócio já estava feito -.
Peguei minha marreta que descansava no chão só para então me levantar e ir em direção a saída, perto da entrada peguei uma moeda de prata do bolso e joguei para trás só para no instante seguinte escutar um tilintar de um copo, o ultimo que aquele pobre homem ouviria. A rua ainda estava movimentada apesar do céu estar vermelho, levantei os braços para cima em um alongamento rápido.
– Descobriu algo interessante conversando com o barman? – Perguntou não parecendo interessado.
– Nada em particular – dei de ombros a pergunta – Só lhe dei uma pequena aula de como o mundo funciona.
Caminhamos pela rua até o hotel onde os cavalos haviam ficado, hoje o dia havia sido cansativo. Olhei para o céu o que fez surgir uma lembrança do homem, em sua mão esquerda uma pequena argola dourada brilhou ao contato com a luz um pouco antes dele pegar o copo. Todos temos direito a escolha, mesmo que realmente não haja uma.
– Só isso. Vocês pareciam estar se dando bem.
– Λ L>Γ∃<∇Λ LΛΓ ⊃ζ∨∪ΛΓ ≥ v ΠΛζ∃>, ∇vLv Πv<Γ. (O destino dos fracos é a morte, nada mais.)
– Entendo – ele exalou pelo nariz se conformando – Vamos comer.