Eventyr – Capítulo 12
O nosso pedaço de terra andou novamente e nos levou de volta para dois caminhos atrás do que já havíamos passado.
– Calma Beatriz! – Nicardo colocava a mão em meu ombro.
Neandro estava tão chocado quanto eu. Também parecia não saber o que dizer e tinha medo dele estar me culpando, mesmo eu também sentido culpada. O silêncio tomou conta de nosso pedaço de terra, até que Nicardo resolveu por um fim nisto.
– Vamos seguir em frente! – ele disse – Ainda não está tudo perdido!
– Como não? – berrei aos prantos – Alexis se foi por minha culpa, como ainda não está tudo perdido?
– Agora, mais do que antes, nós temos que terminar essa missão! – Nicardo tentou nos animar – Pelo Alexis.
Neandro estufou o peito, levantou os ombros e balançou a cabeça. Ele tentou forçar um sorriso e estendeu a mão para mim.
– Isso mesmo! – ele quase ordenou – Vamos terminar pelo Alexis.
Voltamos a seguir os caminhos e tentamos ficar mais atentos desta vez. Eu ainda estava pensando em Alexis, estava pensando muito.
Chegamos novamente ao grande salão redondo com menos animação do que da primeira vez.
O salão era bem grande e cheirava a terra molhada. Parte do teto havia desabado e haviam paredes com alguns buracos. Um pequeno fio de água passava no chão por entres as pedras e destroços do teto que caiu e algumas trepadeiras pareciam querer grudar na gente. No chão havia algumas ervas daninhas e uma borboleta passou por mim neste momento, provavelmente perdida.
Tropecei algumas vezes nas pedras e escorreguei algumas vezes no musgo, mas não cheguei a cair em nenhuma delas – Nicardo estava sempre ao meu lado.
Passamos por algumas salas, cheias de baús repletos de pedras preciosas e vários outros tipos de tesouros. Provavelmente aquele corcunda de olho de vidro e bafo de metal não sabia deste pequeno detalhe.
Chegamos finalmente ao que deveria ser a sala principal. Nicardo chegou um pouco depois. Ele havia se perdido de nós.
Era uma sala bem grande, com duas grandes estátuas, uma virada contra a outra. Eram duas mulheres, com vendas nos olhos e a língua para fora. Achei uma obra bizarra, mas não estava no momento de questionar a criatividade do autor.
Atrás das estátuas tivemos duas grandes surpresas. A primeira era o cristal que estava em um tipo de redoma de vidro, em um pedestal. A segunda era o que estava atrás do pedestal, uma névoa negra prendendo varias pessoas, entre elas Alexis.
– Alexis! – gritei.
– Então é isso que acontece com quem é pego pela névoa! – Neandro estava assustado e admirado – Eles viram prisioneiros.
– Esta floresta os sustenta, e em troca eles sustentam a floresta! – Nicardo falou de um modo estranho, sem expressão, como se estivesse hipnotizado.
– Como? – Neandro perguntou.
Nicardo balançou a cabeça e pareceu extremamente decepcionado.
– Aconteceu de novo! – Nicardo sussurrou.
– O que? – Neandro parecia muito confuso.
Nicardo explicou para Neandro sobre o dom que ele tem e disse que sentiu as pessoas aprisionadas falarem com ele.
– A floresta se sustenta da força vital dos seres de Monterra. – Nicardo começou a explicar – Mas ela precisa de que estejam vivos para isso, então ela os alimenta.
– Só então notei que algo verde nojento caia do teto onde eles estavam aprisionados. Neste momento muitos começaram a abrir a boca desesperadamente. Só então entendi, ela estava os alimentando.
Quando Alexis me viu ele começou a bater na névoa, como se pudesse quebrar-la, mas não conseguiu. Corri para tentar ajudar-lo, mas acabei sendo impedida.
No momento em que tentei passar por entre as estátuas, um tremor balançou a sala. Afastei-me um pouco e tive uma visão não muito alegre.
Vi Nicardo tirando sua faca do cinto e dizendo uma palavras estranhas que pareceram fazer a faca virar uma espada imensa. Neandro preparou dois grandes raios, um em cada mão e ficou observando.
As duas estátuas começaram a se mexer, uma colidiu com a outra e as duas se destruíram.
– Nossa, era só isso? – Neandro parecia decepcionado – Que patético!
Neste momento os pedaços das estátuas começaram a flutuar e a se juntar. Poucos segundos, estava na nossa frente uma estatua enorme, com duas cabeças e quatro braços.
– Não falo mais nada! – ouvi Neandro cochichando enquanto refazia os raios. Ele juntou os dois e fez uma grande espada brilhante.
A estátua deu um berro que fez com que partes do teto começassem a cair. Pelos buracos que havia na sala, uma espada e um escudo passaram e foram direto para as mãos da estátua.
Ela começou a caminhar em nossa direção. Meu primeiro instinto foi correr, mas algo queimou em minha cabeça dizendo que eu era capaz de ajudar, que não era para fugir.
Senti uma rápida dor nas mãos, como se estivessem sendo queimadas, mas logo passou e comecei a sentir uma força em meus braços. Notei que eu tinha duas bolas de fogo nas mãos. E de alguma forma, eu sabia exatamente o que iria fazer e não estava gostando nada, nada disso.
A estátua deu outro grito e atacou. A espada passou na direção de Neandro, que pulou por cima e veio até a minha direção. Eu me abaixei e continuei abaixada, a espada estava voltando.
Novamente Neandro pulou, mas desta vez ficou flutuando no ar e atacou, atingindo a estátua com sua espada-raio. A espada vez um tiling, mas não quebrou. A testa de uma das estátuas se desfez.
Nicardo também correu para cima da estátua e a escalou até os braços, que lhe pegaram e levaram até o seu rosto. Nicardo atingiu a outra estátua no nariz, que também se desfez.
Neandro continuou na cabeça da estátua, destruindo sua orelha, mas ela pareceu nem ligar. Pegou Neandro pela gola da camisa e o jogou em direção a parede. Neandro bateu de costas, mas continuou flutuando e voltou a atacar com um golpe no queixo.
Nicardo havia conseguido se soltar e fincou a espada no abdome da estátua, ficando pendurado. Ele ajeitou o pé em algumas falhas da estátua, retirou a espada e continuou escalando.
Reparei que eles estavam tentando chegar às cabeças. Provavelmente eram essas as faces que dizia a pista.
Neandro subiu um pouco mais e deu uma espadada no meio da cabeça esquerda da estátua e conseguiu desfazer uma das cabeças por inteiro. Ele pulou para a cabeça que Nicardo estava tentando atacar e acabou fazendo o mesmo. Eu ainda estava com as bolas de fogo nas mãos.
A estátua caiu e se desfez por completo. Nicardo e Neandro comemoraram, mas por pouco tempo. A maldita se refez novamente, bem atrás deles e desta vez parecia bem maior. Elas haviam juntado as cabeças, formando agora uma única cabeça, mas continuaram com os quatro braços.
Neandro voltou a atacar imediatamente. Nicardo fez o mesmo. Os dois agora estavam tentando atingir vários pontos da estátua, que ia se desfazendo e se recompondo.
Neandro e Nicardo tentaram arranjar um lugar seguro para ter tempo de pensar, mas a estátua começou a golpear-los com o escudo jogando os dois para o alto.
Ela ainda não havia me notado e algo me dizia que aquela estátua não era o nosso real inimigo. O que precisávamos destruir estava do lado de fora.
Sai pelo buraco na parede. O centro da floresta era o único lugar que não se movia. De onde estava pude ver vários pedaços de terra se mexendo em volta do centro, exatamente como no sistema solar.
Voei e tentei ver as coisas de cima. O que vi me deixou muito surpresa.
No teto havia exatamente duas faces feitas de pedra, uma de cada lado. Os olhos estavam fechados e as feições eram serias, mas havia uma luz amarela girando em um circulo no meio da testa de cada face.
Pousei no teto e fui analisar a luz. Ela era bem menor vista de cima. Provavelmente deveria ter quase um metro de altura e era bem larga. Passei por dentro do circulo, só por curiosidade. Não deveria ter feito isso.
No exato momento em que passei pelo circulo, os olhos de uma das faces se abriu. Eram olhos vermelhos acinzentados e pareciam estar cheios de fúria. A face deu um grito ensurdecedor e fez com que a outra face abrisse seus olhos e também soltasse outro grito ensurdecedor. Quando menos esperei, raios vermelho-cinza saíram dos olhos das faces e vieram em minha direção.
Esquivei dos raios. As faces se enfureceram e deram outro grito, lançando mais raios. As bolas de fogo ainda estavam em minhas mãos. Fiz a primeira coisa que me passou na cabeça: atirei em direção as faces.
Uma bola de fogo atingiu o circulo da face à esquerda e a outra bola de fogo atingiu a boca da face à direita, que estava prestes a soltar mais um grito ensurdecedor. Elas lançaram mais raios e eu preparava mais bolas de fogo. Ficamos assim por um tempo.
Notei que a face da esquerda havia enfraquecido e atacava menos que a face da direita. Algo me veio à mente e mirei no circulo da face à esquerda. Ela soltou mais um grito ensurdecedor e notei que o circulo havia diminuído um pouco.
A face da direita atacou sem dó, já a da esquerda começava a ficar mais lerda e a errar na pontaria. Então era isso, o ponto fraco das faces era o circulo em suas testas.
Depois que fiz essa descoberta tentei atingir o circulo das duas sempre. Algumas vezes eu errava, outra acertava em cheio. Ambas começaram a enfraquecer e os círculos em suas testas iam ficando cada vez menores.
Continuei atirando bolas de fogo e acabei fazendo mais alguns buracos no teto e elas continuaram lançado raios, porém com mais lentidão. Por um descuido meu um dois raios me atingiu no ombro esquerdo. Senti uma queimação enorme e notei que o corte brilhava enquanto o sangue escorria pelo ombro.
Não me dei por vencida e continuei atacando, desta vez com mais raiva. Estava torcendo para que isso fosse o certo. Com a minha experiência em fazer o certo, não me surpreenderia nada se tudo isso fosse apenas uma armadilha ou simplesmente algo inútil.
Comecei a prestar mais atenção aos raios e tentei fixar meus olhares nos círculos das faces. Atirei na face da esquerda, onde o circulo estava bem menor e finalmente houve um boom! A face havia sido destruída e em seu lugar um grande buraco no teto. Agora precisava me concentrar na face da direita.
Ela soltou mais um berro e atacou descontroladamente com seus raios. Mais um acabou atingindo a minha perna direita. Novamente o raio passou de raspão e não fez mais do que um pequeno corte.
Continuei atirando bolas de fogo, mas elas agora estavam mais fracas. Eu também quase não conseguia me manter flutuando e estava ficando muito cansada. Provavelmente eu estava esgotando as minhas energias e isso não era nada bom.
Resolvi tentar me esconder para recuperar energia. E foi assim que tive uma grande ideia. Enquanto a face dava uma pequena pausa para descansar – era coisa rápida, questão de 30 segundos – entrei em seu circulo e fiquei parada, esperando ela voltar.
Assim que notou onde eu estava à face deu mais outro grito, que pareceu bem mais alto agora e preparou a mira. Era exatamente o que eu estava esperando que ela fizesse.
Ela mirou dentro do próprio circulo, deixando os olhos vesgos. Assim que vi que a face iria soltar os raios, sai de dentro do circulo e esperei pelo resultado.
A face berrou como nunca havia berrando antes. Provavelmente notou que havia caído em uma armadilha, mas já era tarde demais para voltar atrás, o raio havia sido lançado. Junto com o boom da segunda face, pude ouvir – pela última vez – o grito ensurdecedor.
Todos os pedaços de terra pararam no mesmo instante. As duas florestas se dividiram, indo uma para o lado esquerdo e outra para o direito. A magia havia acabado e a névoa havia sumido. Alexis deveria estar liberto neste exato momento. Minha felicidade foi indescritível.
Notei que o teto havia pegado fogo com a explosão e que ele estava se espalhando muito depressa. Aquilo tudo iria ser consumido pelas chamas.
Voltei para a sala principal pelo mesmo buraco que sai. Vi a estatua – que estava ainda maior que da última vez que havia visto – cair em vários pedaços e virar pó. Um tremor começou a fazer com que o salão desmoronasse.
– Beatriz, onde você estava? – Nicardo gritou assim que me viu.
– Essa estatua era só uma armadilha! – gritei. Os tremores não paravam. – As duas faces estavam no teto.
– E você as destruiu? – Neandro perguntou confuso.
–Sim! – respondi já esperando que eles não acreditassem.
Neandro e Nicardo se entreolharam e depois Nicardo assentiu. Provavelmente ele havia sentido que tudo o que havia dito era verdade.
– O cristal! – gritei quando vi algumas rochas caindo entre o pedestal.
Neandro correu para pegar-lo. A sala começou a pegar fogo.
– Vamos sair daqui o mais rápido possível! – Nicardo também estava gritando. O tremor ficava mais forte.
– Alexis? – gritei – Onde está Alexis?
Olhei para onde ele estava aprisionado e pude ver-lo como se estivesse acabado de acordar, totalmente confuso. Ele nos viu e correu em nossa direção. Estava imensamente feliz em ver-lo correndo novamente.
– O que aconteceu? – Alexis perguntou.
– Você não se lembra? – perguntei.
– E eu deveria me lembrar de alguma coisa plebeia insolente?
– Eu também estou feliz em te ver! – pela primeira vez eu não havia me importado em ouvir-lo me chamar de “plebeia insolente”.
Ele balançou a cabeça negativamente e continuou nos fitando com um olhar confuso. Depois reparou no salão desabando e começou a nos empurrar para fora, tentando evitar o fogo. Corremos por entre a floresta, agora era mais fácil de chegar a algum lugar.
Não demorou muito para que o fogo chegasse até a floresta. Acabamos apressando o passo. Neste momento notei que o dia havia amanhecido e já fazia um bom tempo.
A floresta era muito grande e acabamos demorando um pouco para chegar até o final.
Quando conseguimos sair, o corcunda de olho de vidro quase teve um infarto do coração. Não apenas nós, mas todos os que haviam entrado na floresta estava voltando. Ele parecia estar vendo o fim de seu emprego e – provavelmente – grandes problemas com a família real, que estava controlando tudo.
– Eu voltei em menos de 15 minutos! – ouvi um rapaz gritar – Eu quero os meus crímatos!
Do lado de fora a floresta parecia normal. Como se ainda fosse a mesma floresta de antes. Não havia sinal de fumaça e muito menos fogo. Era como se nada tivesse realmente acontecido.
Neandro olhou para o cristal, como se quisesse conferir se ele realmente havia conseguido pegar-lo e depois guardou de volta em seu bolso.
Por ironia do destino, pegamos o mesmo taxi de quando chegamos a floresta. O senhor olhou perplexo para nós. Esfregou os olhos duas vezes e deu um tapinha no rosto.
– Mas… Mas… São vocês mesmo?
Eu, Neandro e Nicardo rimos da cara do senhor. Alexis pareceu constrangido e decepcionado – provavelmente só se lembrava de ter saído do taxi –, mas riu também.
– Vocês desistiram de entrar na floresta? – ele perguntou.
– Não, nós destruímos as duas faces! – respondi.
– Na verdade ela destruiu! – Nicardo apontou para mim.
– O que? – Alexis gritou. – Essa ai destruiu as duas faces? – ele gargalhou e depois ficou serio – Alguém pode me contar o que foi que aconteceu?
– 3º Estação ferroviária de Cecia, por favor! – Neandro dava o nosso próximo destino.
Contamos a ele toda a história, desde quando entramos na floresta, o momento em que ele foi levado pela névoa, a história das estatuas e das pessoas comendo a gosma verde e, por fim, eu fiquei falando sobre como acabei com as duas faces da floresta.
Alexis parecia não acreditar muito e o senhor do taxi muito menos, mas não estávamos ligando para isso. O importante era que estávamos com o cristal e estávamos a salvo. Alexis estava a salvo.
Um impulso me fez chegar mais perto de Alexis. Ele saltou para o lado e me olhou feio. Não estava ligando mais para isso, estava tão feliz de estar ao lado dele outra vez que não queria que nada estragasse isso.
Chegamos a estação de trem. Neandro comprou passagem para Padja de última hora, o trem já estava quase partindo. Tivemos que correr para não perder o trem.
Neste momento me lembrei dos cortes e eles começaram a doer. Nicardo viu e me ajudou a andar mais rápido. Neandro depois voltou e me pegou no colo e correu, o trem já estava prestes a dar a partida.
– Espere um momento, nós também vamos neste trem! – Neandro gritou.
E assim partimos para o nosso próximo destino. Estava começando a tomar tomar gosto pela aventura, mas ainda estava com muito medo desse novo sentimento. Lembrar da luta que havia acabado de travar era tão real para mim quanto lembrar de um sonho maluco. Mas eu sabia que era real. E tinha a sensação de que aquilo tinha sido apenas o começo.