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Jardim Brasil

Jardim Brasil [ep. 9]: Não é nome de anjo

 

 

ANGÉLICA – DOMINGOS SANTIAGO

 “Não é nome de anjo”

 

Caruaru. 2016.

Angélica observou o ambiente e notou o quanto a oficina era modesta. Mais bem organizada em relação aos que ela já viu naquela região. Angélica estava arrumada, o cabelo curto, escuro e crespo estava solto. Esbanjava sensualidade com seus lábios carnudos ressaltados por um suave batom com tonalidade salmão, e uma calça jeans comprida ajustada ao corpo escondendo os seios numa blusa branca que a cobria até o antebraço. Imediatamente, um senhor de aparência de 60 anos veio cumprimentá-la. Observou que ele era o mais velho ali. Magro e alto, ostentava uma barba quase que inteiramente branca e com manchas amareladas na sua base que sinalizava, certamente, um vício em cigarros.

– Pois não senhora? – ele foi simpático e estendeu sua mão com um sorriso. – Algum problema com o seu carro? Sabe que a gente pode ajudar – apontou o salão da oficina.

Ela retribuiu o cumprimento e continuou a passear o olhar na oficina completando sua observação do ambiente. Notou outros três homens trabalhando. Um deles, que aparentava ser quase a mesma idade do senhor que a atendeu, acabara de entrar debaixo de uma Kombi branca sem muitas dificuldades em puxar junto uma ferramenta que serviria para desparafusar algo. O outro lavava as mãos na pia tentando retirar todo o resquício de óleo queimado que estava impregnado nelas. Pela aparência, calculou que seria o mais novo ali, não mais que 25 anos. O último estava no final da oficina com o capô de uma caminhonete aberta e parecia chateado e aborrecido com uma fumaça que exalava do motor do veículo. De longe, era o mais bonito. Ela admirou a beleza dele, muito característica da região. A pele morena, o cabelo cortado no estilo militar, a barba bem feita e o nariz bem desenhado não passaram despercebidos daquela olhada rápida sobre o ambiente.

– Então, em que posso ajudar? – o senhor a interrompeu da observação que fazia.

– Na verdade, eu queria falar sobre a vaga de emprego.

– Pode falar comigo mesmo – ele a convidou para entrar numa pequena sala que aparentava ser um pequeno escritório muito modesto.

Ofereceu uma cadeira de madeira que estava um pouco surrada, mas limpa e impedindo que se sujasse com a tinta preta das oficinas.

– Minha oficina é pequena e a senhora é uma moça elegante, bonita… Acho que não teria uma vaga para uma mulher tão… – ele disfarçou o constrangimento dos elogios ajustando sua posição na cadeira.

– O senhor é muito gentil. Senhor… – gesticulou aguardando que ele falasse seu nome. – Prazer Seu Pedro. Também preciso me apresentar, não é mesmo? Meu nome é Angélica Lima.

– Então dona Angélica…

– Ah, por favor, me chame de Angélica apenas.

– A gente não se acostuma nunca a tratar os desconhecidos com esta intimidade toda – ele riu após se justificar e usar um pano que estava sob a mesa para limpar o braço que estava sujo com óleo. – Eu sujei a senhora? – e prosseguiu após ela responder negativamente. – Sobre o emprego, até mesmo para limpar é o garoto mais novo que faz isso. Ele está começando agora e não sabe muito das coisas. Eu estou ensinando as coisas direito pra ele ainda. Aí quando acaba o serviço, ele limpa, joga uma água e a gente também ajuda ele.

– Bem Seu Pedro… Eu quero me candidatar é para a vaga de mecânico mesmo.

Pedro ficou surpreso com a proposta recebida e soltou uma gargalhada instantânea. Conteve-se ao perceber que Angélica sustentava uma expressão séria.

– Desculpe, dona! Eu não queria caçoar da senhora – seu rosto estava vermelho. – Foi só um modo de dizer que achei muito estranho a senhora querer ser mecânico.

– Tudo bem… É realmente muito estranho uma mulher numa oficina…

– Não me leve a mal – pediu licença para falar usando um gesto com as mãos. – É porque não estou acostumado… Pra senhora ver – continuou, – eu tenho esta oficina aqui tem mais de 40 anos e nunca uma mulher fez qualquer coisa aqui que não fosse um cafezinho, uma limpeza… Pedir para tirar um amassado do carro, ver um motor.

Angélica sorriu para ele e demonstrava com seu olhar atento paciência nas explicações do homem.

– Olhe Seu Pedro, eu até sei como é isso… Não me espanto, nem nada. Também não é a primeira vez que procuro um emprego numa oficina daqui e também não é a primeira vez que alguém se comporta assim diante de mim. De forma nenhuma estou julgando o senhor. Sei que não é lá muito comum uma mulher trabalhar numa oficina, ainda mais no posto de mecânico. Mas se me permitir, queria falar sobre as minhas experiências, minhas qualificações.

– Tudo bem, pode me falar – ele encostou-se no apoio da cadeira, demonstrando um olhar incrédulo.

– Obrigada. Eu tenho curso de Mecânica Industrial e Mecatrônica Automotiva e também concluí o curso de Eletrotécnica. São todos cursos técnicos. Já trabalhei em três oficinas diferentes e fiquei três anos na primeira, sete na segunda e a última só pude ficar cinco meses porque tive que voltar para cá. Tenho tudo registrado na minha carteira de trabalho – começou a revirar a bolsa enquanto concluía sobre suas experiências. – Bolsa de mulheres… Aqui! – sorriu para ele assim que encontrou a carteira e passava o objeto para a mão dele.

Ele pegou a carteira e começou a analisar as qualificações e anotações que referiam-se à atividade dela nos últimos empregos.

– Entendo muito bem de sistema elétrico que é minha especialidade e me dou muito bem com motores.

– Veja – ele cerrou os dentes e coçou o queixo. – Se eu andar esta cidade toda, que não é muito grande, vou encontrar um monte de oficinas, mas nenhuma mulher trabalhando. Até se a gente for até a capital não vai encontrar facilmente. Não vou dizer que não tem, porque tem. Por aqui é que nunca vi.

– Verdade. Quando eu vim pra cá olhei que não tinha mulheres nas oficinas da beira da estrada.

– A senhora não é daqui?

– Não. Bem… Eu nasci aqui, mas morei em São Paulo a maior parte da minha vida. Tive uns problemas por lá, algumas dificuldades e precisei voltar. Mas estou feliz de estar por aqui de novo depois de tanto tempo.

– Mas me diga, a senhora é filha de quem?

– Biu Antônio. As pessoas conheciam ele assim.

– O feirante?

– Não. Meu pai morou pouco tempo aqui também. Ele era de João Alfredo e veio para cá. Só ficamos aqui uns sete anos e depois fomos para São Paulo. Nesse tempo todo, quem vai lembrar, não é?

– Pois é – pigarreou. – Eu realmente preciso pensar bastante sobre o emprego se é que a senhora me entende…

– Vamos fazer assim Seu Pedro… O senhor está precisando de um mecânico e eu preciso muito trabalhar. Sei que está pensando nos negócios, então podemos acertar da seguinte maneira: eu demonstro minha capacidade e se o senhor não gostar ou não ficar satisfeito, não me contrata e nem vai precisar pagar o dia que eu trabalhar. O que acha?

– Não sei não. É que…

– Quantas pessoas se apresentaram para o senhor esses dias e tinham metade das minhas qualificações, do meu tempo de experiência?

– Nenhum. Meu medo é que os clientes não gostem… Nunca se sabe…

– O seu cliente quer o carro consertado, não é? O motor sem ruído, a lataria desamassada, uma boa pintura, o sistema de frenagem seguro. Acho que ele quer o serviço feito, não é? Não devem se importar for feito por mim ou por outra pessoa, desde que bem feito.

Pedro apoiou os cotovelos sobre a mesa, alterando a sua posição na cadeira e cruzando os braços em seguida. Estava admirado com as qualificações da moça e o tempo de experiência certamente lhe rendeu muitas habilidades para que os serviços fossem bem executados. Não estava seguro da decisão a tomar. À primeira imagem, a julgou dona de uma loja de variedades ou esposa de um empresário da região. Custava acreditar que aquela mulher pudesse lidar diariamente com o trabalho durou de uma oficina mecânica, que pudesse ser habilidosa em acionar um macaco mecânico, fazer a troca de um pneu pesado que superasse quase o total da sua massa corpórea. Sua proposta era razoável e não teria prejuízo em demiti-la se não fosse capaz de demonstrar habilidade para o serviço.

– A senhora faz este teste e no final do dia digo se a senhora será contratada. Um dia de oficina é suficiente para identificar um bom mecânico – falou convencido a ceder à oportunidade.

– Eu aceito que seja assim.

– Quanto ao salário… – ele mexeu nas páginas da carteira de trabalho diversas vezes. – Não posso pagar tudo isso que a senhora ganhava.

– Claro. O custo de vida lá é bem diferente. Aceito receber menos do que recebia lá. Agora, nem mais, nem menos que qualquer mecânico seu recebe. Fico satisfeita com o justo.

– Creio que a senhora possa vir amanhã de manhã. Abro a oficina antes das seis – devolveu a carteira e levantou-se estendendo a mão para ela.

***

Angélica abriu o portão da singela casa que dividia com a filha desde que chegou à cidade há menos de dois meses. O ambiente não tinha muita mobília, apenas o sofá de dois lugares na sala, o televisor LCD de 21 polegadas que estava sob uma das cadeiras da mesa de jantar que compunha a sala. A casa só tinha três vãos e o banheiro. A divisória da sala e cozinha era feita por uma cortina florida que adquiriu numa das lojas do centro assim que chegou à cidade. Ana estava assistindo TV quando a mãe a interrompeu.

– Consegui filha – estendeu os braços aguardando que a filha levantasse do sofá.

– Que bom! – Ana respondeu não demonstrando ânimo em se levantar e continuou atenta à programação da TV.

– Poxa Ana, eu aqui muito feliz por ter conseguido um emprego e você me dá o maior gelo – Angélica cruzou os braços e ficou em frente à televisão interrompendo a visão da filha.

– Ah, mãe… Você é muito dramática – continuou imóvel no sofá e olhou para mãe até terminar de pronunciar as palavras.

– Ok. Vou tomar um banho e descansar porque vou precisar acordar bem cedo.

A relação com Ana não era muito fácil e foi algo que se agravou desde que começou a fase de adolescência. De uma garota dócil e compreensiva, Ana começou a ficar mais introspectiva e dificilmente se abriria com a mãe para contar seus problemas, os namoros que começava. As exceções eram os términos de relacionamento que a filha sempre procurava os conselhos experientes da mãe para superar a fase. Recuperada da desilusão amorosa temporária, Ana voltava a ser a mesma garota introspectiva de sempre, distante do diálogo com a mãe.

Angélica teve a filha muito precocemente, ainda nos 15 anos de idade, e precisou assumir toda a responsabilidade de criação quando ela completou oito anos e elas foram abandonadas pelo seu marido. Ela trabalhava com o marido em uma oficina, mas a situação do casamento foi se agravando com as traições e o envolvimento dele com drogas, o que as deixou em muitas situações de risco. Angélica passava o dia inteiro fora e o distanciamento foi inevitável.

Saiu do banheiro ainda enrolada na toalha e encontrou a filha ainda deitada no sofá.

– Você fez o jantar? – gritou enquanto entrou no quarto para se vestir.

Aham – Ana resmungou da sala.

– Preparou tudo para a viagem de amanhã – falou do quarto enquanto vestia a calcinha.

– Já. Eu sei me cuidar – respondeu irritada.

Angélica terminou de se vestir e foi até a cozinha. O fogão, um armário que servia como dispensa e a mesa que agora estava com apenas três cadeiras era toda a mobília da cozinha. Serviu seu jantar e pôs também o prato da filha.

– Vem – convidou-a para comer.

Ana levantou pouco disposta e pegou o prato da mesa e começou a caminhar em retorno à sala, mas foi impedida pela mãe.

– Filha, come aqui comigo – fez um apelo com os olhos.

A filha não gostou muito, mas sentou à mesa a contragosto. Deu as primeiras garfadas em silêncio e com cara de mau humor.

– Deixou tudo pronto para amanhã, né?

– Mas eu não já disse que sim – Ana respondeu irritada e soltou o talher sobre o prato fazendo barulho.

– Posso saber o motivo do mau humor?

– Ok. Vou desenhar. São Paulo… Amigos. São Paulo… Namorada. São Paulo… Vida. Agora este fim de mundo – continuava a responder com mesmo tom de irritação e sentiu sua voz embargar.

– Poxa Ana, pensei que você já tivesse entendido tudo que aconteceu. Não adianta eu te explicar? Você não pode se comportar como uma garota mimada – Angélica pigarreia ao sentir sua voz embargada e imediatamente seus olhos são invadidos por lágrimas.

Ana observou a mãe que começou a chorar e caminhou até próximo dela e a abraça por trás.

– Eu sou uma estúpida mesmo. Me desculpa…

– Tudo bem filha. Você tem motivos para ficar irritada. Só queria que fosse mais compreensiva, mais sensível…

– Você sabe que eu sou mãe – puxou a cadeira e sentou ao lado da mãe. – Também, né, estou muito chateada com esta mudança toda. Talvez nem encontre uma pessoa tão legal quanto a Luana.

– Menina, tu só tem 17 anos. Quantas garotas legais não vai encontrar por aí? Só quero que você se dedique bastante a esta faculdade filha. Você não sabe o quanto fico aliviada por você ter conseguido passar numa faculdade pública… – acariciou a mão de Ana enquanto fitava o olhar nela, – Pena que vai ser tão distante de mim…

– Vou sentir muito a sua falta mãe – Ana segura a sua mão.

– Eu vou sentir demais, mas estarei feliz em saber que você estará bem por lá – Angélica soltou um sorriso e puxou a mão da filha até seus lábios e a beijou. – Não está esquecendo de nada, não? Deixou tudo organizadinho?

– Aff! – soltou um sorriso sarcástico com uma bufada de ar pela boca. – Você viu! Não está faltando nada. Já olhei umas quinhentas vezes.

– Está bem. Cuidado nessa viagem filha e, principalmente, quando estiver lá no Recife. Sempre que precisar pegar um ônibus, não fique lá no fundão, pegue um assento mais na frente próximo do cobrador e do motorista. Fique nas cadeiras do corredor. Sei lá a quantidade de homens mal intencionados que tem por aí e você sozinha, podem querer te assediar… Minha garotinha de 17 anos – aguardou que a filha acenasse com a cabeça como uma compreensão de suas instruções.

– Eu sei me cuidar mãe. Pode deixar que sigo essas regras direitinho.

Angélica sentia um aperto por se separar da filha e passarem a viver aqueles anos em cidades tão distantes. Ana seguiria para a capital cursar História na Universidade Federal. Seus esforços a fizeram ser aprovada e iria ficar numa casa de estudante, o que deixava Angélica menos apreensiva por acreditar na segurança que o campus universitário poderia oferecer para sua filha. Pensava que a distância poderia deixá-las ainda mais distante da relação entre mãe e filha.

***

 

Angélica já estava à frente da oficina quando observou que o relógio marcava 5:45 da manhã. O sol já começava a aparecer e a sensação de calor já começava a incomodar. Notou que Pedro vinha em direção à oficina caminhando a passos largos e com alguns pingos do suor no rosto.

– Bom dia! Muito pontual a senhora. O Jurandir chega daqui a pouco – a saudou e começou a desamarrar a corrente que segurava o imenso portão vermelho que protegia a oficina.

Ela o ajudou a recolher os portões e entraram na oficina. Ela pediu licença para ir trocar de roupa e seguiu caminhando a um banheiro que ficava próximo ao seu escritório. Voltou instantes depois, já vestida num macacão com algumas manchas de óleo, mas que parecia limpo e não surrado.

– Jamais ando mal arrumada – brincou assim que voltou do banheiro e encontrou Pedro pesquisando algumas ordens de serviço na sua mesa.

Pedro a admirou por aquela beleza singular. Embora estivesse acostumado com as vestes nada sensuais de mecânicos, não tirava da sua cabeça o corpo bem definido e sensual da nova empregada. O macacão era feito sob medida para ela. Não era apertado, mas dava para ver de relance sua estrutura corporal, as nádegas bem definidas sempre que fosse se esforçar para fazer alguma atividade que exigisse uma flexão e pudesse notá-las quando a roupa colasse ao corpo. Estava hipnotizado por aquela beleza que não cansava de lhe trazer gratas surpresas.

– Começamos por onde? – ela perguntou assim que percebeu a hipnose dele.

– Temos muitas coisas aqui – revirou algumas ordens de serviço e leu os resumos. – Este cliente aqui deixou aquele Pálio 2000 com problema no painel elétrico – apontou o carro encostado no canto da oficina, – e como você disse ser sua especialidade, pode começar por ele – entregou-o a ela.

Angélica deu uma lida no papel e caminhou com ele até próximo do veículo que estava do outro lado da oficina, próximo à caminhonete que ela viu Jurandir consertar no dia anterior. Começou a observar o veículo por fora, pegou a chave e ligou-o analisando o painel. Algumas luzes não estavam acendendo. Ela o desparafusou cuidadosamente, separando os parafusos para não perder as peças originais com uma das chaves que pegou antes de entrar no carro.

– Parece que o cabo do velocímetro está arrebentado. Vou subir o carro no elevador, assim consigo enxergar melhor – concluiu após uma análise bem rápida da estrutura que acabara de descobrir.

Pedro consentiu com a cabeça e ficou observando-a manobrar o carro e acionar o elevador e em pouco tempo já estar embaixo do carro removendo um cabo desgastado.

– Muito desgastado mesmo – saiu de debaixo do carro com o cabo na mão e mostrou ao patrão. – Vamos trocar o cabo antes de mexer no painel. Tem a peça para reposição?

– Tenho. Como é um carro popular, tenho no estoque um que não é original, mas vai servir. É um de seis marchas – ele se apressou em ir buscar a peça.

Pedro procurou minuciosamente a peça entre as outras diversas que possuía no estoque. Assim que a localizou, puxou imediatamente e a colocou debaixo do braço para ajustar uma caixa de bateria que precisou retirar do lugar. Antes de chegar perto de Angélica, Jurandir o abordou.

– Ôpa Seu Pedro. Bom dia patrão!

– Bom dia Jurandir. Você conseguiu finalizar a manutenção daquela D-20? Sabe que é o carro que o compadre usa para levar as feiras pro sítio.

– Estou cuidando. Hoje termino patrão – não demonstrou muita certeza no olhar. – Ô patrão, então o senhor vai contratar ela mesmo?

– Vamos ver, né Jurandir? Se ela der conta do recado… Mas até que tá bem desenrolada – deu um tapa no ombro do empregado e seguiu até Angélica e entregou o cabo que ela tratou de repor.

Angélica finalizou a troca e desceu o elevador. Entrou no carro e observou novamente o painel.

– Viu que o odômetro parcial não funciona? – Pedro questionou.

– Sim. A luz de injeção, de bateria e óleo estão funcionando…

– As outras estão queimadas. Você precisa substituir – ele a interrompeu.

Ela confirmou a sugestão do patrão com um gesto com a cabeça.

– O velocímetro não estava funcionando porque o cabo estava desconectado do painel. O cabo estava girando muito pesado que quase danificou esta parte – apontou a peça que se conectava ao painel removido.

Levou o painel até o balcão e começou a analisar e identificar as falhas que impediam seu funcionamento correto. Testou as lâmpadas responsáveis por iluminar cada parte do equipamento e substituiu as que estavam com falha. Pedro sempre buscava orientar sobre cada passo que ela fosse dar na manutenção. Embora incomodada, respondia às suas intervenções com um gesto de cabeça ou um sinal sonoro que desse a entender que ela concordava ou tinha compreendido suas ponderações.

– Eu configurei o painel para W100 porque é mais adequado para este modelo. E o número de voltas para dar um quilômetro também é mais preciso – se antecipou às especificações técnicas que o provável patrão pudesse inferir naquele instante.

– Muito rápida a senhora.

– Estou habituada a fazer as coisas muito rápido mesmo. Lá em São Paulo precisava fazer tudo muito rápido por causa da quantidade de trabalho que a gente tinha por lá – explicou.

– Graças a Deus aqui também não falta trabalho pra gente. Sempre tem um carro e muitas motos precisando de um conserto – falou e observou que Angélica continuava atenta à sua atividade. – Preciso ir cuidar agora de outras coisas da oficina. Acho que a senhora vai conseguir.

Angélica acenou positivamente com a cabeça e olhou enquanto ele se afastava. Levou o painel para o carro e começou a montá-lo. Juradir estava com o capô da caminhonete que consertava aberto. Ele parecia nervoso com a atividade e sempre soltava um palavrão quando o motor soltava uma fumaça. Angélica o observa sempre que mudava sua posição dentro do carro ou através do para-brisa do veículo que consertava. O estresse ficava cada vez mais perceptível pela quantidade de veias que se expandiam com a alta concentração de sangue no pescoço. Algumas eram tão volumosas que evidenciavam o caminho que percorriam da base da orelha até parte do seu ombro.

Enquanto tentava desparafusar uma das peças do motor da caminhonete, a chave que Jurandir usava caiu no chão e deslizou no chão até próximo do carro que Angélica consertava. Ela prontamente pegou a chave e se aproximou dele para devolver.

– Olha, se precisar de uma ajuda… – entregou a chave na mão dele. – Nem que seja só para dar partida…

– Não precisa não. E eu preciso de ajuda de mulher? – voltou à sua posição tentando tirar uma porca do motor.

Angélica voltou à sua atividade e terminou de repor o painel. Ligou o carro novamente e observou que o painel estava funcionando perfeitamente. Pedro fez questão de inspecionar o serviço e realizar todos os testes que ela havia feito anteriormente.

– Mauro mora aqui do lado e vai ficar feliz que o carro já está nos trinques. Vou ligar pra ele agora – sacou o telefone do bolso e discou o número que localizou na agenda.

Em alguns minutos um homem com aparência de uns 50 anos, olhos azuis e cabelos louros entrou na oficina e foi imediatamente ao encontro de Pedro que o esperava próximo do carro. Mostrou a ele o estado do carro enquanto Angélica os acompanhava na inspeção.

– Notei também que seu motor está com muito barulho, vazando óleo na tampa da válvula e também no Carter, esta parte aqui – Angélica fez a observação e apontou as falhas que havia detectado.

– E vai sair quanto esse reparo do motor? – o homem perguntou com cruzando os braços.

– É preciso trocar o tensor e as correias que estão muito desgastadas – Angélica justificou.

– Deve ser caro pra cacete – descruzou o braço e sacou o celular do bolso.

– Esta parte dos preços o senhor vê com o Seu Pedro. Como não estava na ordem de serviço, não quis mexer.

Pedro levou Mauro até sua mesa e apresentou a ele os cálculos dos serviços apontados por Angélica. Ele demonstrou resistência e barganhou o preço e acabou ganhando um desconto pelo serviço. Pedro gerou uma nova ordem e acertaram o prazo.

– O senhor agora tá contratando mulher-homem é seu Pedro – Mauro soltou um riso discreto e olhou em direção a Angélica para se certificar que ela não os olhava.

– Eu também pensei assim, mas olha que ela tá me surpreendendo. Pensei que não fosse conseguir.

Angélica finalizou o serviço no carro de Mauro e recebeu ainda outras atividades durante o dia e as executou com habilidade. Em algumas tarefas mais complicadas que exigia muita força bruta, não deixou de chamar um dos colegas de trabalho a ajudar. Eles a ajudavam a erguer um pneu ou suspender uma parte do carro com um macaco mecânico enquanto ela verificava o defeito do veículo. Também não deixava de ajudar nas atividades que podia compartilhar com os outros até mesmo no final do dia quando fez questão de ajudar o mais novo a higienizar a oficina.

– A senhora me surpreendeu, viu? – Pedro falou assim que ela pôs alguns sacos de lixo para fora e voltou para dentro da oficina. – Quero a senhora trabalhando aqui!

Ele foi direto em sua resposta e Angélica fez questão de agradecê-lo com um aperto de mão muito forte. Respirava aliviada por conseguir uma atividade depois de alguns meses na cidade. Não queria se desesperar, mas a situação já não estava confortável e mesmo que a filha fosse morar tão distante e não dependesse muito da sua ajuda para custear os estudos, não queria deixar de contribuir, enviar um dinheiro extra para aquela vida na capital que Ana levaria tão distante dela.

 

***

Os dias foram passando e ela estava cada vez mais acostumada àquele ambiente. A rotina da oficina do Pedro não era muito diferente daquelas outras duas que trabalhou tanto. Tanto Pedro quanto os outros dois funcionários demonstravam total respeito. Juradir era o mais apático com ela, mas não se sentia retraída a fazer suas atividades, apenas respeitava aquele espaço ou distanciamento que ele queria manter. Procurava “não dar bola”, seguindo os conselhos que a filha dava quando se falavam por telefone, geralmente nos finais de semana.

A distância deu um novo rumo ao relacionamento de mãe e filha. Ana estava mais aberta a revelar seus sentimentos, suas paixões. Nas conversas, falavam do curso, dos professores da faculdade, dos colegas que ela arrumou no Campus, das vezes que saiu na “night” e ficou com medo de se perder no Recife, embora a cidade não fosse tão “badalada quanto São Paulo”, como definiu em suas primeiras palavras ao visitar o centro da capital.

Angélica sentia uma paz que jamais pôde sentir desde o desgaste do relacionamento com o pai de Ana. As ameaças eram constantes e sempre que ele deixava as drogas em uma de suas pausas terapêuticas, as coisas ficavam mais tranquilas. Não era algo que duravam mais de cinco meses. Não poderia contar com o apoio dos pais que morreram há mais de cinco anos e apenas uns bons vizinhos lhe davam suporte. A vontade de voltar para Caruaru não era nova, já vinha pensando há algum tempo. Faltava coragem ou o “fio da meada” como definiu o momento em que traficantes bateram sua porta cobrando a dívida de drogas do marido.

Desde que saiu ainda nos anos 1990, Caruaru parecia um pouco com algumas cidades que visitou em São Paulo. Tinha muita gente na rua, muito comércio. Pessoas simpáticas. O calor a tirava do sério. Perto das duas da tarde se tornava quase que insuportável, sete da manhã já parecia dez e à noite o calor não dava muita trégua. Somente no despertar da madrugada que as temperaturas amenizavam. Sentia o vento quente com ar de liberdade e não se arrependia das mudanças.

Já estava familiarizando com os moradores e os comerciantes que a reconheciam com facilidade porque seria a primeira mulher mecânica da cidade.

– Boa tarde dona Rosa! – ela sorriu para a atendente enquanto passava algumas compras na farmácia que ficava na esquina da rua que morava.

A atendente era uma senhora que parecia ter 50 anos e não mais que isso. Ela era simpática e fazia questão de atender Angélica com o mesmo tom sempre que ela aparecia para comprar algo.

– Como está a menina lá na faculdade? – puxou assunto enquanto registrava as compras.

– Está muito bem. Louquinha porque na época de provas.

– Meu menino também bem aperreado com os estudos. Ele estudando pra ser professor. Eu tô muito feliz, muito feliz mesmo – ela finalizou o registro das mercadorias e observou que não havia ninguém na fila e aproveitou para puxar papo. – São Paulo deve ser bem melhor, né? Tá gostando daqui?

– São Paulo é diferente, mas gosto muito daqui. Não vejo a hora de chegar o São João – Angélica sorriu.

– Aí é que você não vai se arrepender de ter vindo pra cá – sorriu e embalou as mercadorias junto com ela. – Angélica é nome de anjo, não é?

– Angélica é nome de flor! É uma flor branca, linda, perfumada. Não tem por aqui, mas pera aí que eu tô com internet no celular e mostro pra senhora – tirou o celular da pequena bolsa que carregava e mostrou à senhora uma sequência de imagens pesquisadas. – Lindas, não?

– É. Realmente muito lindas – ele sorriu e mudou de assunto instantaneamente. – Você é muito legal. Esse pessoal daqui é que anda falando muitas coisas… – demonstrou desconforto em continuar a falar, porém prosseguiu. – Esse povo tem uma língua grande que só Deus… É que tão dizendo por aí que você é mulher-macho. Não que você deve satisfação, eu só acho que…

– Sei… – apesar de um olhar aborrecido, Angélica não demonstrou no seu tom de voz. Olhou para a caixa registradora, enxergando o valor total da compra e sacou dinheiro da bolsa. – Dona Rosa, o que lhe devo é doze reais e setenta centavos… Então está aqui o que lhe devo! – apresentou uma nota de dez reais, uma de dois reais e as moedas contadas que pagavam o valor total da compra.

Rosa soltou um sorriso constrangido e agradeceu o dinheiro recebido. Angélica pegou a sacola com suas compras, agradeceu à mulher. Saiu da loja e olhou em direção à praça da cidade que estava agitada ainda pelo horário. Dali dava para observar a lua cheia que iluminava o céu e deixava a visão daquela parte da cidade deslumbrante. Respirou fundo e sorriu. Nunca se sentira tão viva e despreocupada com os rumos que sua vida estava tomando. Entrou no beco que dava em direção à sua casa e seguiu pela rua lentamente.

 

Próximo episódio: Gardênia é uma jovem da cidade de Parnaíba no Piauí e descobre estar grávida do filho da patroa. Diante da exigência da sogra e a grave doença da mãe, se vê diante de uma decisão difícil a ser tomada.
Autor: Carlos Augusto Júnior
Data de publicação: 09 de março

Dominus Santiago

Recifense. Fundador e administrador do Séries de Web, possuo uma paixão pela leitura e tenho orgulho de ter iniciado este site para que mais e mais pessoas demonstrem seu talento na escrita.

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3 comentários sobre “Jardim Brasil [ep. 9]: Não é nome de anjo

  • Gostei da descrição inicial da aparência da personagem, foi detalhista sem ser enfadonho. Houve bastantes repetições de palavras. Acontece, mas acredito que ter cuidado com esse tipo de coisa deixa os textos ainda mais ricos.
    Achei interessante o rompimento do paradigma de que mulher que trabalha em oficina (ou quer trabalhar) precisa ser necessariamente masculina.
    Houve um equívoco na separação de falas, por isso gastei um tempo tentando entender. Foram três falas numa única linha e duas delas não tinham travessão sinalizando.
    Alguns erros de pontuação (por exemplo, o uso da vírgula em relação ao vocativo). Uns poucos erros de digitação, mas nada que comprometesse o andamento da história. Ana aparenta ser a clássica adolescente seca, fria e nada envolvida numa amizade com a mãe.
    Deve ter sido bem chato mesmo para Angélica ter que ficar ouvindo sugestão de coisa que ela já sabia. É muito ruim quando te subestimam assim, sempre supondo que você não é capaz de compreender alguma coisa.
    Apesar de se tratar de um ambiente propício, senti que a descrição dos consertos mecânicos ficou intensa demais. Talvez tenha sido feita para mostrar que, de fato, Angélica sabia do assunto… Mas isto ficou um pouco cansativo para mim.
    (Ironia ativada) Ocorreu uma falha ali, Domingos!Correção: mulher-homem que faz um trabalho melhor que qualquer homem da oficina 🙂 (ironia desativada) Consegui me sentir envolvida pela história em dados momentos.
    Este final foi super “turn down for what”.
    O capítulo falou bastante de machismo e isso foi demonstrado não apenas através do preconceito com a carreira de Angélica, mas também a objetificação do corpo da protagonista por parte do patrão. A lição da história se resumiu a isso. Eu creio que poderia ter investido mais, mas às vezes fica ruim de determinar as ocorrências quando a história é oneshot. Espero que as pessoas meditem mais antes de determinarem carreira profissional por gênero . Cada um tem seu talento e não é o sexo de alguém que diz se vai ser boa nisso ou naquilo. Não se deve deixar de trabalhar com o que se ama simplesmente porque vão fofocar a seu respeito (e isso com certeza acontece muito). Parabéns pelo trabalho!

  • Oi, Domingos, desculpa a demora! Eu amei o seu episódio, me lembrei vagamente da história da Griselda de Fina Estampa. Foi um episódio bem poético e com tons de melancolia, gostei da forma que retratou a situação de Angélica. Minha dica para você é que não seja muito amigo dos advérbios e adjetivos, pois as vezes eles empobrecem o texto, e o deixam cansativo. Tem umas palavrinhas repetidas que você poderia tirar com uma simples revisão, no meu ponto de vista.
    No geral, foi um ótimo episódio, e gostei do final que não segue o clichê. Parabéns!!

    • Obrigado Victor!!! Obrigado mesmo!
      Eu fiz algumas revisões, mas acabei subindo o arquivo desatualizado. Independente disso, escrever a primeira vez para o Séries de Web me deixou bastante apreensivo. Você sabe o quanto sou exigente com o texto e me sentia na obrigação de apresentar algo impecável neste projeto.
      Escrevi outra história e descartei, fiz diversas alterações nesta. Só que num momento entendi que posso aprender com vocês. Seu texto e muitos outros aqui estão excelentes e me orgulho de ter aprendido mais um pouco neste projeto.
      Um abraço e desejo muito sucesso

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