Depois de tudo

Depois de tudo – capítulo 10 : Você pode ler minha mente?

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Você pode ler minha mente?

 

– Olá!

Não consigo pensar em nada mais eloquente ou oportuno para dizer em resposta ao cumprimento expressivo de Thiago, além dessa prevista fórmula de saudação, e odeio-me por isso, assim como também estou odiando o sorriso sem jeito (apesar do meu esforço em tentar fazê-lo desaparecer) que os meus lábios teimosamente decidiram estampar.

– Que surpresa boa vê-lo por aqui – Thiago finaliza sua saudação estampando um meio sorriso. 

Engulo em seco enquanto sua voz irrompe de vez em meus ouvidos e seus lábios semiabertos alimentam a carência de minha alma, deixando-me em total confusão.

Como ele está indescritivelmente adorável, parado a poucos centímetros diante de mim, com as mãos nos quadris, os cotovelos para fora, os olhos piscando e sem nenhuma consciência (queira o Criador que não) do meu nervosismo.

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Thiago olha de relance para sua destra estendida no ar ao mesmo tempo em que toca o próprio pescoço com a outra mão, freando, elegantemente, uma nesga de sorriso.

Acompanho o seu olhar e obviamente não demoro a perceber a minha imperdoável abstração; imediatamente estendo a mão em resposta ao cumprimento ofertado, sentindo, sem demora, meu rosto queimar.

Ao toque da mão de Thiago meu corpo inteiro estremece. Milhares de pensamentos sem nexo começam a passar pela minha cabeça e não consigo, ao menos, fisgar um que seja para moldá-lo em palavras, tão somente sigo tremendo e olhando para ele.

A figura de linguagem da flecha do cupido atravessando o coração deveria ser revisada, urgentemente, pois este flechaço atinge, de fato, é a cabeça.

Preciso me controlar. Preciso controlar minha frequência respiratória, meus batimentos cardíacos senão terei um enfarte aqui e agora, e pior, por algo que eu nem sei se é real e muito menos recíproco…

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Não está falando sério, Lucas. Você mal trocou meia dúzia de palavras com esse tal cara e já tá deduzindo que são almas gêmeas? Você sempre tem essa pseudossensação de que o universo lhe colocou de frente para sua cara metade. Como você é capaz de investir tanta energia nesses supostos pretendentes?

Preciso aprender a ser prático e realista.

Por que estou me permitindo mergulhar nesse oceano de excitação e expectativa por alguém que eu nem sequer conheço de verdade, que eu nem sei se é gay? Por uma pessoa que está aqui, em pé na minha frente, me olhando a ponto de me deixar desconfortável, parecendo ler minha alma e chegando à conclusão do quão estúpido e precipitado eu sou.

Talvez a Gabriela esteja certa. Toda essa história de alma gêmea é uma grande baboseira… E além do mais, depois de hoje, eu e o Thiago nunca mais nos veremos…

 

– Quem diria que eu iria reencontrar o jovem amigo que estava pensando na vida… 

– Como? – pergunto, arquejando uma vez e encontrando, por fim, minha voz enquanto me permito sentir o que resta do calor que emana da palma da mão de Thiago antes dele recolhê-la do meio dos meus dedos que a trancafiavam.

Bem que poderíamos ficar aqui, pelo resto da noite, com nossas mãos apertadas firmemente… Eu não iria me incomodar nem um pouco.

– Você está esperando alguém?

– Quem? Eu?

Idiota. Completamente idiota. A quem mais ele estaria fazendo essa pergunta?

– Eu… Eu acho que não… – gaguejo. As palavras saem dos meus lábios como se tivessem vontade própria.

– Não tem certeza? – Thiago sorri um sorriso além da boca ao mesmo tempo em que arqueia as sobrancelhas.

Uma súbita sensação de medo, irritação e vergonha me invade.

Merda.

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Definitivamente não posso continuar agindo como uma dessas personagens femininas estereotipadas, que pululam nos romances modernosos, indefesas, frágeis, desastradas e suspirantes, prontas (oi?!) para viver um amor impossível.

Não posso deixar que Thiago perceba minha confusão mental. Preciso parecer o mais natural e despreocupado possível enquanto recobro o centro do meu universo particular.

Balanço a cabeça. É o máximo que minhas forças me permitem nesse momento.

– Bem – Thiago parece ponderar antes de ir adiante – Também não estou esperando ninguém. Se você não se incomodar, podemos conversar um pouco… Prometo aproveitar essa segunda chance que o destino nos deu para não ser tão circunspecto como fui hoje, no final da tarde…

Você? Circunspecto? Questiono-me em silêncio enquanto vejo Thiago ocupando o banco vazio à minha frente e ficando de costas para a ilha do quiosque, para os outros clientes.

– Desculpe. Posso me sentar?

Ele pergunta, dando a entender que vai se levantar, mas logo voltando a ocupar o mesmo lugar depois que inclino a cabeça num vago sinal afirmativo.

– Vou pedir uma bebida – Thiago anuncia, fazendo menção em se virar, porém seus olhos passam rapidamente sobre a garrafa vazia de Smirnoff Ice sobre a mesa e então pergunta se também pode pedir uma para mim.

Aceito, claro, mas dando de ombros.

Thiago volta a sorrir, dessa vez o mesmo sorriso largo de hoje à tarde, quando nos conhecemos. Seus olhos tom de mel permanecem irradiando a mesma estabilidade, como se nada e nem ninguém pudesse atingi-lo.

GIFFONI VALLE PIANA, ITALY - JULY 21: Actor Dylan O'Brien attends the Giffoni Film Festival Photocall on July 21, 2014 in Giffoni Valle Piana, Italy. (Photo by Stefania D'Alessandro/Getty Images for Giffoni Film Festival)

Num gesto fortuito, ele puxa um dos dois bancos da mesa desocupada ao nosso lado para colocar o blazer que acaba por tirar, deixando à mostra a base de seu pescoço, sua silhueta de falso magro, seus ombros fortes, seu antebraço irresistível, seu tórax timidamente trabalhado…

Pelo Criador, eu não havia reparado, lá na praia, como o corpo de Thiago é realmente escultural, mesmo sob as roupas levemente justas que ele estava usando.

Nesse instante me deparo com os seus olhos. Parecem que estão lampejando sob as sobrancelhas grossas arqueadas ao mesmo tempo em que um vestígio de desafio e perturbação percorre sua fisionomia; por fim, ele se vira na direção da ilha do quiosque e depois de alguns instantes, sem que nenhum dos barmans responda ao seu sinal, se levanta e começa a agitar as mãos como se estivesse em uma ilha deserta, pedindo por socorro.

Nossa. Essa calça jeans reta que ele está usando, um pouco apertada ao corpo, está fazendo maravilhas ao valorizar sua bunda…

Sinto um espasmo lancinante correr pela minha virilha no mesmo instante em que Thiago se volta na minha direção, voltando a se sentar.

Meu rosto está queimando, tenho certeza. Diversos tons de vermelho devem estar, agora, mesclando a minha pele e denunciando meu desespero por estar diante desse deus grego… 

Merda.

E o pior: será que o inchaço na minha cara finalmente decidiu aparecer?

Passo a mão sobre a face imediatamente, pouco me importando se vou parecer que estou me coçando ou buscando algo na minha pele… Graças aos céus e a todos os anjos que possam existir, o meu rosto ainda permanece intacto.

– Acho que consegui a nossa bebida – Thiago informa, mostrando um sorriso cheio de dentes, vitorioso, parecendo um menino carregado de orgulho por ter acabado de praticar uma senhora molecagem.

Já parou pra pensar que o Jonas, o Thomas e o David nunca significaram nada para você? Que foram meros objetos de troca dentro desse seu mar de desespero em busca do príncipe da Disney? Você nunca gostou de nenhum deles, Lucas, e só se permitiu encarar isso, aceitar, quando o próximo se encontrava sob o controle da sua obsessão por ter um namorado…

Não. Com o Thiago sinto que vai ser diferente, Gabriela. Tenho certeza.

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Tudo isso que estou sentindo aqui, agora, diante dele, diante de seus cabelos bem cortados, suas sobrancelhas grossas, seu nariz empinadinho, seus lábios finos… Esses suores, olhares perdidos, saliva extra sendo produzida pela minha boca e outras sensações estranhas das quais sequer consigo nomear…

Não. O Jonas, o Thomas, o David, nenhum me fez sentir isso, nenhum, então nada mais coerente de que talvez eu não tenha, de verdade, gostado deles…

Vai ser diferente. Tenho certeza. Precisa ser diferente… E eu vou dar um jeito de reencontrar o Thiago, mesmo estando enfurnado lá no quinto dos infernos.

– Eu joguei uma roupa no corpo e não tinha a mínima ideia para onde ir…

O som da voz de Thiago parece distante o suficiente para que, em um milésimo de segundos, eu não saiba dizer, ao certo, de onde venha…

– Como? – interpelo buscando alcançar a velocidade de 10 trilhões de quilômetros anos-luz para descer da exosfera, onde meus pensamentos me levaram ao mesmo tempo em que tento, num esforço hercúleo, não parecer tão alheio à realidade. 

Deparo-me com Thiago olhando de modo estranho para o meu rosto, meus olhos, meu nariz, meus lábios… Seu semblante parece banhado de tormenta e aflição, completamente inacessível, tornando praticamente impossível imaginar o que se passa em sua cabeça…

O que houve com ele? Será que se aborreceu com a minha “repentina ausência”? Já sei. É porque estou me comportando como um adolescente imaturo, montado em uma habitual apatia e orgulho, acreditando que sou melhor que tudo e todos…

Sou um completo idiota. Tudo aquilo que o David disse sobre ter me aturado faz sentido…

– Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.

Meus pensamentos estacionam ofegantes ao ouvir Thiago pronunciar a mesma frase que me disse hoje, no final da tarde, quando nos conhecemos, enquanto observo sua fisionomia mudar de tensa aspereza para um sorriso meio desdenhoso, meio insinuante.

Agarro-me aos nervos como se fossem cordas que escorressem velozmente pelos meus dedos.

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Foi essa mesma frase que me desarmou… A mesma frase que tomei como um mantra desde o instante em que a ouvi e que vem me ajudando, me resgatando dos instantes de aflição e desesperança diante do (presente) futuro distópico que me aguarda…

Nesse instante tenho a impressão de que o mundo definitivamente parou de girar e eu estou me sentindo tão perdido como uma criança no seu primeiro dia de aula em uma nova escola…

Olho o meu entorno: ninguém é capaz de se mover; o vento não existe; os sentimentos não existem; a vida, por si só, é uma quimera resultante de um momento de imaginação de algum deus mitológico.

– O senhor não vai abrir a noite com sua tradicional tequila? – ouço uma voz repentina cortando o ar e logo percebo que é a de um dos barmans se dirigindo a Thiago, que me encara, um tanto matreiro, me ofertando, com um olhar irresistível, a sugestão à lá mexicana, o que nego numa velocidade absurda, justificando que não curto misturar bebidas.

Mantendo o mesmo sorriso apaixonante, Thiago retorna para o jovem postado ao seu lado e finaliza o seu pedido: uma Smirnoff Ice para mim e um manhattam e a tequila para ele.

– Você tem mais de dezoito não tem? – ele me pergunta depois que o barman se afasta, deixando escapar um sorriso que quase se assemelha a uma gargalhada, com a boca bem aberta, os dentes perfeitos aparecendo…

Sinto minha pele ruborizar novamente e minha fisionomia ficar envolta em algo semelhante à culpa, mas decido que não vou baixar os olhos e então o encaro firme, em desafio.

– Quer ver minha identidade?

Ofereço sem titubear.

– E por que não? – Thiago retruca, examinando minha fisionomia com uma expressão de autoridade e repreensão sublinhada com um quê de sarcasmo velado.

 É impossível ele ter desconfiado de que eu possa ter 17 anos.

Presumo um tanto ofendido enquanto me levanto, retirando a carteira do bolso detrás da minha calça jeans e de dentro dela a identidade falsa, que não demoro a lhe entregar, fitando-o com os olhos semicerrados.

Ele apanha o celular e o aproxima do documento, iluminando-o com a tela do aparelho, sem pressa, dando a impressão de quer encontrar algo de errado…

– Satisfeito? – pergunto triunfante.

Thiago levanta os olhos na minha direção e em seguida me devolve a identidade enquanto ergue a mão, e com os lábios curvando-se para baixo e um lampejo de desdém divertido em seus olhos tom de mel, responde  positivamente sem qualquer alteração, num tom irritantemente plácido permeando sua voz, porém encoberto por um ar de cortesia que, de algum modo, parodia sua própria educação.

 Uma algazarra de vozes dispara da ilha dos barmans.

Não há mesmo como ele saber da minha verdadeira idade. Eu e Gabriela já frequentamos várias boates e bares com nossas identidades falsas e jamais nenhum atendente, nenhum segurança sequer desconfiou… Os duzentos e cinquenta reais mais bem gastos da minha vida, concluo, terminando de examinar meu documento fake, devolvendo-o para a carteira.

Nossas bebidas são servidas e também o pequeno cálice com a aguardente mexicana, acompanhada por um quarto de limão e sal, depositado com vigor em frente a Thiago, que não se faz de rogado e começa o tradicional ritual, deitando uma porção do sal nas costas da mão, lambendo-o, em seguida virando num shot a bebida transparente goela abaixo, para logo depois, numa fração de milésimos de segundos, sugar o limão como se a sua vida dependesse disso.

– Então o senhor é um frequentador assíduo desse quiosque… – observo após assistir à rápida performance transbordada de testosterona enquanto provo um pouco da minha tímida Ice.

– Bem… – Thiago inicia ao mesmo tempo em que não consegue disfarçar uma careta, ainda assim não ficando menos bonito do que já é – Sempre que venho ao Rio, o que não chega a ser tantas vezes assim…

“Sempre que venho ao Rio”?

Thiago devolve o pequeno cálice da famigerada bebidinha à superfície de nossa pequena mesa e levanta o seu drinque, propondo um brinde, o que eu aceito, imediatamente, quase não conseguindo me conter diante da palpável esperança de que talvez o reencontre depois de hoje, depois dessa informação inusitada de que ele, o “senhor das aspas”, é um forasteiro na cidade carioca.

Thiago explica sob um olhar inflexível, como cortinas esfumaçadas sobre seus pensamentos, que seus pais moram no Rio, porém ele reside em Minas Gerais (eu não acredito! O destino quer realmente nos unir), há três anos… e ponto. Sem maiores detalhes, sem pormenores, sem espaços para quaisquer outros questionamentos e com um semblante sugado de qualquer emoção, podando qualquer tentativa de abordagem de minha parte, mesmo diante da minha confissão (um tanto eufórica) de que estou me mudando para o interior do estado mineiro.

Olhando agora para ele me pergunto para onde teria ido aquela ardente inundação de sentimentos que até poucos minutos me fizera navegar por um mar de distintas sensações. 

Por fim, me deixo ser levado e então começamos a conversar sobre assuntos diversos, ora comuns a nós dois, como cinema, música, astrologia, literatura, ora díspares, como esportes, (o que Thiago logo percebe não ser o meu forte), gastronomia (será que vai rolar um convite para jantar?), e também, claro, o trivial, como festas, lugares, nossas ocupações (ele está cursando o quinto período de medicina – também sem grandes detalhes) e com isso provamos mais três rodadas de nossas respectivas bebidas.

Se continuar nessa estrada, depois da sétima Ice não responderei mais por mim…

Segundo uma informação que eu li num site que ensina a identificar sinais de que alguém possa estar a fim de você, e claro, você possa estar a fim desse alguém, a distância máxima que demonstra intimidade entre duas pessoas é de 45 centímetros, menos que isso é sinal forte de interesse. Então, sem pestanejar e com cinco Smirnoff correndo pelas minhas veias, faço a minha parte e empurro o meu banco para próximo de onde Thiago está e com esse gesto faço com que nossos joelhos se toquem “sem querer”. 

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EU NÃO ESTOU ME RECONHECENDO!

Seja o que o Criador quiser.

Vou arriscar…

Qualquer coisa, no frigir dos ovos, eu peço desculpas ou finjo que não tive a intenção e a vida continua, mesmo sabendo de que vou me sentir o pior dos seres humanos por ter a certeza de que a minha alma gêmea é um heterossexual convicto.

Por incrível que possa parecer, Thiago não se move, apenas sorri, sem grande estardalhaço, parecendo entender minhas insinuações.

– Quer passear um pouco pela praia? – ele encara o nosso entorno ao mesmo tempo em que faz um sinal para um dos jovens baristas, pedindo a conta, me devolvendo em seguida um olhar carregado de uma malícia calorosa – Creio que somos os últimos clientes do quiosque.

Só então percebo que realmente não há mais ninguém além de nós dois, e, claro, os três barmans arrumando a casa para poderem ir embora.

Que horas já não devem ser? Não tenho dúvidas que dona Lúcia e Gabriela, as duas, estão loucas tentando me encontrar…

Por que Gabriela foi me contar sobre o Rômulo?

Dou de ombros.

Como eu disse: vou me despedir dessa merda toda em grande estilo.

Não penso nem duas vezes e aceito a sugestão de Thiago, já me aprumando para puxar a carteira a fim de ajudar a pagar a conta, entretanto sou impedido por um gesto simples, discreto, com que ele, pousando sua mão direita sobre a minha, indica que eu interrompa a minha nobre ação, me deixando inusitadamente lisonjeado, não cabendo em mim diante de tanta cortesia, porém minha vaidade não dura muito tempo, pois me deparo com uma aliança em seu dedo anular… Aliás, onde ela estava todo esse tempo que não a tinha percebido?

– Ora, ora… Noivo? – a intenção do meu comentário, na verdade, é constatar o óbvio e não questionar.

Thiago ignora veemente minha colocação.

Tomado por uma aflição absurda e um orgulho ferido, recolho minha mão ao mesmo tempo em que me afasto, procurando manter novamente os 45 centímetros de distância entre nós dois, na verdade até um pouco mais, e apanho meu copo sobre a mesa, entornando o que resta da minha Smirnoff Ice goela abaixo, acabando por engasgar e a tossir igual a um condenado.

O ar me falta.

Coloco a mão no pescoço e Thiago se levanta, tentando se aproximar, mas eu o impeço com um sinal feito pela palma da minha mão aberta em sua direção e em seguida coloco os meus dois braços pra cima e aos poucos vou recobrando a respiração.

Pelos semblantes estupefatos que os três barmans sustentam, não tenho dúvidas de que fui protagonista de um rápido espetáculo… Foda-se.

Sorrio para Thiago cinicamente e aproveito a aproximação de um dos barmans, que está com a conta da nossa mesa, para pedir uma dose de tequila, mas friso que a minha eu quero com certo acompanhamento: uma sangrita.

O moçoilo não faz qualquer julgamento ou objeção diante de meu pedido, e nem deve, ao contrário de Thiago, que não consegue disfarçar a surpresa estampada nitidamente em seu rosto.

– O que foi? Você não me ofereceu essa mesma bebida agora a pouco? Então… Decidi provar um pouco dessa cachaça mexicana colocando em prática a receita de um velho amigo – arqueio minha sobrancelha direita, concedendo uma satisfação ao nobre senhor das aspas.

Thiago sorri; um misto de timidez e incentivo percorre os seus lábios.

– Está tudo bem?

– Por que não haveria de estar?

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Carregado de sarcasmo, retruco a interpelação de Thiago no mesmo instante em que o kit tequila é depositado à minha frente: sal e um quarto de limão e um pequeno cálice, sendo um deles com a aguardente de los hermanos, e o outro com um líquido da cor de uma de cenoura – a sangrita.

Não espero qualquer indicação ou sugestão ou brinde. Empurro minha cabeça para trás, viro a tequila goela abaixo e sinto, em milésimos de segundos, um gosto amargo e forte tomar conta de todo o meu ser… Fecho os olhos e presumo que estou fazendo uma careta bem ruim, pois ouço Thiago perguntar, num tom paternal, se eu estou bem e se realmente sei o que estou fazendo. Não respondo nada e continuo a minha empreitada, engolindo, ainda com a cabeça inclinada e os olhos fechados, o tal suco de cenoura, sem pestanejar, completando minha viagem astral pendurado na cauda de um cometa.

– Acho que você já mostrou o que queria Lucas – Thiago se dirige a mim num tom de voz carregado de autoridade – Já chega. Você não me parece ser um conhecedor de bebidas. Vai acabar ficando tonto.

– Tonto? – deixo uma risada feia escapar, pouco me importando com os barmans que com certeza estão à nossa espreita – Tonto? Espero ficar embriagado e esquecer tudo isso que tem acontecido na minha vida.  

***

O apartamento para onde Thiago me leva depois que me recuso impetuosamente que me deixe em casa, não parece ser tão amplo.

Sim. Não conheço esse Thiago e se eu estivesse sóbrio não estaria aqui, nesse apartamento, mas chegou a hora de deixar pra trás o idiota do Lucas, aquele sonhador que acredita em alma gêmea… Vou ser como os carinhas gays da minha geração e só buscar curtir, sem dramas, sem raízes, dormindo uns com os outros sem compromisso, sem me importar de no dia seguinte dar uma satisfação, retornar uma ligação…

Parado sob o batente da porta eu consigo enxergar a maior parte dos cômodos: a sala de jantar, a de estar e a cozinha são ambientes integrados, sem divisória entre si e os poucos móveis instalados tem tonalidades queimadas, o que confere ao lugar certo aconchego, contrastando com a praticidade deliberadamente arquitetada; duas largas janelas cobrem a lateral, permitindo, acredito, durante o dia, uma iluminação natural privilegiada, porém, a essa hora da noite (ou madrugada, vai saber), estão ocultas por cortinas de poliéster.

Gentilmente Thiago me encaminha até o sofá sem braço, um dos pouquíssimos móveis existentes no apartamento, e praticamente me obriga a sentar nele; nesse instante, enquanto ele termina de me acomodar, jogando o seu blazer azul marinho para o lado, nossos rostos ficam muito, muito próximos e eu, com o coração sobressaltado, acredito piamente que ele irá me abraçar, mas me engano, pois Thiago bate em meu ombro, como quem consola uma criança:

– Amanhã bem cedo te levo pra casa. Sua mãe deve estar preocupada, já que, segundo você, não quer que ninguém saiba onde está.

Eu falei pra ele que tinha uma mãe? Não me lembro.

Não respondo e Thiago ainda permanece semi agachado acima de mim. Nossos olhos se cruzam. Ele me fita com um desejo suplicante, posso perceber através de suas pupilas dilatadas.

O que ele está esperando?

Thiago se afasta, ficando de pé.

O que eu estou esperando? Não tenho nada a perder… Amanhã não nos veremos nunca mais, eu sei disso, afinal, ele não me quis dizer onde vive…

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Em questão de segundos me levanto e me coloco à sua frente e, cara a cara, sem pensar, até porque se o fizer posso acabar desistindo de tudo, beijo sua boca; graças ao Criador não encontro qualquer sinal de resistência, tão somente Thiago me encara entre surpreso e abalado, com os seus olhos completamente abertos.

Sua respiração, nossa respiração, segue entrecortada enquanto nossos lábios continuam se tocando; ele fecha os olhos e eu então me inclino para senti-lo ainda mais perto ao mesmo tempo em que estico uma das mãos e a coloco sobre sua cintura, e, a outra, pouso sobre o seu peito enquanto sinto o seu coração bater cada vez mais forte.

Thiago permanece imóvel, completamente passivo e eu não posso acreditar no que ele está me permitindo fazer…

Fecho também os olhos e começo a beijar o seu rosto, depois o seu pescoço, suave, sem pressa… Por fim minhas mãos acabam se encontrando na altura da sua cintura, esbarrando na fivela do cinto que ele está usando…

Inspiro profundamente.

Thiago, numa súbita mudança de postura, segura minhas mãos, impedindo-as que continuem o caminho para sua virilha, resgatando uma delas até levá-la de volta à altura de seu peito, apertando-a forte.

Abro os olhos. Thiago está me encarando com um olhar absorto, amargurado, despojado de qualquer expressão, fitando-me com um anseio e uma tristeza intrigante, chegando a ponto de me deixar agitado, inquieto, e com isso me motivando a dar um passo para trás, porém ele me impede, apertando minha cintura e ainda mais a minha mão contra o seu peito, aproximando o seu rosto, tornando cada vez menor a distância que ainda existe entre nós dois.

Um silêncio estranho, mordaz até, toma conta de toda a sala, de todo o espaço que nos rodeia até que Thiago decide quebrá-lo:

– Você é muito mais bonito pessoalmente – ele sussurra. Sua voz denotando desassossego…

Mais bonito pessoalmente? O que ele quis dizer com isso? Conhecemos-nos no final da tarde de hoje, no calçadão, e depois nos encontramos naquele quiosque…

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Volto a me concentrar no semblante de Thiago e me surpreendo ao encontrar lágrimas cintilando dentro de seus olhos, seus lábios se contorcendo num sorriso de uma criança valente que tenta não chorar…

– O que está acontecendo, Thiago?

Ao chamá-lo pelo nome, pela segunda vez me vem à mente de que não nos apresentamos, não dissemos nossos nomes um ao outro.

Thiago baixa o olhar até os meus lábios e em seguida volta a me fitar de um modo atordoante, nada respondendo, ignorando por completo a minha pergunta..

  • – A aliança…

Tento dizer qualquer coisa ao mesmo tempo em que me esforço para tirar minha mão de cima do seu peito; não consigo, pois Thiago me empurra de volta para o sofá, onde caímos os dois, lado a lado e suas pernas não demoram a entrelaçar-se às minhas e seu tórax a inclinar-se sobre o meu…

Sou invadido por uma comichão ao mesmo tempo em que não consigo controlar um ricto nervoso… O ar está começando a me faltar e então volto a cerrar os olhos…

Amanhã não nos veremos nunca mais.

Merda. Não posso pensar nisso, pelo menos não dessa forma tão dramática… Preciso…

Sinto a mão te Thiago acariciando o meu rosto, depois minha nuca sendo envolvida…

– O que quer que aconteça depois de hoje, o que quer que você descubra… – Thiago balbucia reticente. 

Abro os olhos.

– Do que você está falando? – o desapontamento em minha voz é o mesmo de uma criança que abre um presente belamente embrulhado e o encontra vazio.

Thiago sorri arrependido como quem se desculpa e não me deixa prosseguir, colocando o dedo indicador de sua mão esquerda sobre a minha boca, tocando-a de leve enquanto me encara, nitidamente simulando um ar de autoridade e rigor (semelhante aquele de quando pediu para ver minha identidade) para logo em seguida modificar seu semblante, permitindo que seus lábios sejam cortados por um sorriso terno, mas também malicioso.

– Meu magrinho.

Como?

O rosto de Thiago está vindo em minha direção e não tenho tempo de reagir diante dessa alarmante coincidência: a mesma alcunha que “ele” me chamou no meu sonho,chamada depois do desmaio, lá na casa de Rômulo, acabou de ser dita, aqui, na vida real…

Thiago substitui o dedo que mantinha sobre minha boca pelos seus lábios…

Nesse instante meu corpo não me obedece mais.

https://www.youtube.com/watch?v=7Uhhim30J0Q

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