Depois de tudo – capítulo 09 : Pare o mundo, de verdade, porque agora eu preciso descer
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web série indicada a “Melhor Abertura”
Pare o mundo, de verdade, porque agora eu preciso descer!
Estou deitado em um campo verde, muito, muito verde. Sinto uma brisa tocando de leve o meu rosto, meus cabelos, toda minha pele que não está protegida pelo tecido da roupa que estou vestindo.
Um céu azul reluzente brilha à minha frente pontilhado por nuvens fofas, que me parecem próximas demais a ponto de serem tocadas.
Não consigo me mexer.
Não consigo gritar.
Meneio a cabeça, com força, ao menos isso consigo fazer para expressar a sensação de pânico que explode em meu interior.
– Está tudo bem?
Uma voz, que não reconheço de imediato, me faz essa pergunta. Tento me virar na sua direção, mas, claro, não consigo, então tento mover a cabeça, mas meu pescoço não me permite ir além dos limites do raio de visão do céu acima de mim.
– Fique calmo. Estou com você, meu magrinho.
“Meu magrinho”?
Oi?
Quem é essa pessoa e que grau de intimidade é esse?
Nunca fui chamado assim, nem por Jonas, nem por Thomas e muito menos por David…
– Quem está falando?
Ouso, por fim, perguntar, mas recebo apenas o silêncio como retorno, o que me deixa ainda mais enfurecido, corroborando a minha impotência.
– Quem está falando?
Questiono mais uma vez, porém aos berros, tentando omitir, com violência, a aflição que me consome.
Céu? Campo verde? Nuvens? Eu não deveria estar aqui…
Sou invadido por uma angústia insuportável enquanto meu cérebro, em ebulição, detecta que alguma coisa dentro desse conjunto não faz sentido…
Fecho os olhos e uma sombra de fantasmas e sombras antropofágicas vêm em minha direção. Elas estão subindo uma escada, aos tropeços, tentando ultrapassar umas às outras…
Escada? Escada?
Consigo virar a cabeça para um dos lados. Dormentes de madeira, azaleias e vasos de suculentas estão por toda parte.
“Seja lá o que o Lucas tenha feito, cabe a vocês dois resolverem isso da forma mais adequada, lavando a roupa suja em casa”…
“Você devia perguntar o que seu amiguinho fez. Esse viadinho postou um monte de merda a meu respeito na internet e nada mais justo que eu venha tirar satisfação”…
Abro os olhos, rápido, e me deparo com uma luz forte irradiando de dois postes e de três arandelas penduradas em um muro de concreto semi coberto por heras, ladeando um portão de aço.
De repente uma mão aberta surge sobre o meu rosto, cobrindo-o totalmente, deixando apenas que fachos da claridade do céu azul atravessem os espaços de seus dedos.
Um aroma, uma mistura de picante e refrescante exala da pele espalmada.
Fecho os olhos e então inspiro e expiro sem pressa.
Estou sonhando… Tudo isso não faz sentido algum…
Numa fração de segundos a mão estendida vai recuando e uma sombra paira sobre mim.
Permaneço de olhos fechados. Preciso acordar. Preciso encontrar a porta de saída…
– Meu magrinho lindo… Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.
Thiago!
Sou tomado de sobressalto diante dessa constatação.
Abro os olhos imediatamente e encontro o seu rosto sobre o meu. A distância que nos separa é tão pouca que posso sentir sua respiração acelerando, seu perfume inebriar minha mente…
Suas mãos, geladas, começam a passear sobre o meu corpo, fazendo com que todos os meus pelos se arrepiem.
Nossas cabeças estão tão próximas, tão perto…
Estou sonhando… Não me deixe acordar. Pelo Criador, eu não quero acordar…
Thiago começa a se afastar… Parece que seu corpo está flutuando e algo parece sugá-lo… Um vento forte o está levando embora. Um verto forte que apenas a ele atinge, o está tirando de mim.
Ele está desaparecendo… Eu nunca mais o verei… Laranjeiras… Minha avó… Bia… Eu nunca mais verei Thiago…
Um vazio imenso, uma tamanha confusão toma o meu interior por completo. Sinto-me como uma flor murchando por falta de sol.
Thiago desapareceu.
Fecho os olhos e choro. Choro, mas pareço não chorar enquanto uma escuridão profunda consome minha mente e meu corpo.
Estou sonhando…
Preciso acordar.
Abro os olhos e de pronto experimento minha visão meio turva; enquanto busco recuperá-la, junto com a parte consciente do meu cérebro, sinto-me um pouco cansado, fraco, confuso…
Alguém finalmente deu sinal de vida…
A voz de Gabriela chega amiúde aos meus ouvidos e então percebo que estou deitado, de lado, e meu cabelo, acariciado.
A figura de uma escrivaninha Dream no acabamento cinza, assim como uma luminária laranja e alguns outros detalhes decorativos descansando sobre sua base, se perfaz diante da minha visão em processo de restauração.
– Não bastasse ser sua festa de despedida, você precisava chamar ainda mais a atenção, não é seu cretino?
Movo a cabeça para o lado e encontro Gabriela com um sorriso largo à minha espera, examinando meu rosto minuciosamente, amparando minha cabeça sobre o seu colo. Sua imagem, numa questão de segundos, parece tão distante que chega a me assustar.
– O que houve? – interpelo, já tomando impulso para me levantar.
– Fique deitado mais um pouquinho meu amigo – ela retruca, me puxando de volta – Dois desmaios em menos de dez minutos não é muito, não?
– Oi? – disparo num misto de surpresa e assombro ao mesmo tempo em que lanço um olhar débil para Gabriela.
– O senhor desfaleceu depois da pancada que levou e quando voltou a si, tentou levantar, ficar de pé, mas caiu de novo.
Abro e fechos os olhos num movimento alucinadamente contínuo, acreditando (sabe-se lá o motivo) que essa sequência de gestos me ajude a absorver a sopa de informações que minha amiga acabou de derramar sobre mim.
Não me lembro de um primeiro desmaio, quem dirá de um segundo… A última imagem que me vem à cabeça sou eu cambaleando na direção de Gabriela, na escadaria em frente à casa do Rômulo, depois que alguma coisa atingiu o meu rosto e a saliva na minha língua começou a ferver…
– Eu não pensava que você fosse tão frágil assim, meu amigo – Gabriela depõe com uma cadência no tom de sua voz enquanto continua afagando meus cabelos.
– E eu não conhecia esse seu lado maternal.
Tento sorrir após o meu gracejo, mas uma dor incômoda no lado esquerdo da face me impede; sem demora trago uma das mãos até esse lado do rosto, porém quase não consigo tocá-lo.
A famigerada cotovelada…
Pelo Criador!
Levanto-me, com a mão em cima da cara, deixando um longo gemido escapar até conseguir ficar sentado sobre a cama, ignorando, veemente, qualquer tentativa de intervenção de minha amiga.
– O que fizeram com o meu rosto? – com a mão livre apalpo o bolso da calça jeans na busca do meu celular, entretanto não o encontro.
– Relaxa Lucas – Gabriela debruça metade do seu corpo na direção oposta a minha, indo de encontro ao criado mudo para retornar tão logo com o meu telefone, entregando-o para mim ao mesmo tempo em que sustenta um ar de fingida pretensão.
Imediatamente vejo meu reflexo sobre a tela apagada do aparelho e, à primeira vista, não encontro nenhum inchaço ou protuberância.
– Preciso de um espelho.
Determino ávido, dando um salto da cama e logo sendo acometido por uma vertigem, leve, mas suficiente para não me deixar dar o próximo passo.
– Lucas, será que você pode sossegar esse rabo?
Depois que um véu vermelho termina de passar diante dos meus olhos, faço menção em reiniciar minha empreitada na intenção de encontrar um espelho ou qualquer outro objeto que possa produzir nitidamente o meu reflexo, porém não consigo avançar muito, já que minha blusa social xadrez é puxada para trás por mãos robustas, me forçando a retornar para cima da cama.
Só nesse instante percebo que estou sem o meu colete cinza e com primeiros botões da minha camisa abertos.
– Você não vai perguntar o que houve lá fora? – Gabriela questiona um tanto surpresa e usando um tom de voz inquisitório – Não quer saber como toda aquela confusão terminou depois que você desligou?
Não me intimido e respondo de pronto, a mão ainda sobre o lado esquerdo da face, fazendo com que minha voz pareça um tanto sibilada.
– Entre mortos e feridos salvaram-se todos, com certeza – ergo uma das sobrancelhas – Agora não posso dizer o mesmo em relação ao meu rosto, que a julgar pela dor que estou sentindo, amanhã vou parecer o homem elefante.
De repente meu cérebro é invadido pela lembrança do tal almoço com o tal noivo da minha tal prima Bia que dona Lúcia agendou sem sequer me consultar.
Um atordoamento imobilizante percorre minhas entranhas. Era só o que me faltava: ser apresentado com um edema facial para um ser humano totalmente estranho a mim, e ao qual não faço a mínima questão de conhecer, sem falar na impressão desagradável que irei causar quando chegar lá no Sítio do Pica Pau Amarelo, daqui a menos de 48 horas, com um lado do rosto parecendo o biscoito Trakinas e aquele bando de matutos gargalhando nas minhas costas, fofocando entre si, tentando imaginar o tamanho da surra que eu possa ter levado…
– Eu não posso acreditar – vocifero, tentando mais uma vez levantar da cama, e mais uma vez sem sucesso, já que Gabriela me impede, esticando o seu braço esquerdo na altura do meu tórax, parecendo uma mãe protegendo o filho depois de um movimento abrupto – Vou ser motivo de chacota pra um João ninguém e depois pra um bando de caipiras, que irão eternamente assimilar minha imagem a de um Quasimodo chegando à aldeia deles…
– Lucas – Gabriela me encara com uma expressão de assombro, como se eu estivesse prestes a ser enfiado dentro de uma camisa de força – Do que você está falando?
Desço a mão do rosto e a encaro, semicerrando os olhos.
– De como está o meu rosto, de como vou parecer um palhaço no almoço com o noivo da minha prima, de como vou parecer…
– Que noivo da sua prima?
Lembro-me de que com a chegada do David parecendo o incrível Huck não consegui contar a Gabriela sobre esse compromisso completamente sem pé nem cabeça que minha mãe me enfiou
– Segundo dona Lúcia, essa pessoa, que se diz noivo da minha prima, está de passagem no Rio e por isso, amanhã, vamos almoçar junto como se fôssemos uma família feliz…
Disparo num só fôlego enquanto Gabriela me fita com um semblante irritavelmente impassível.
– Nem ao menos parente ele é – completo pouco me importando com o meu comentário leviano.
– O seu egoísmo às vezes consegue me surpreender…
– O meu egoísmo?
Gabriela se ergue da cama e faz um sinal com a palma de uma das mãos para que eu permaneça onde estou.
– E como devo chamar esse show de egocentrismo, hein senhor Rei Sol? – o título, claro, me é concedido envolto em um oceano de ironia.
Tento responder, mas Gabriela levanta o dedo indicador da mão direita e o coloca sobre os meus lábios, me fitando, severa, e depois o recolhendo para então começar a andar para cá e para lá, tomando o cuidado de se manter convenientemente no meu raio de visão.
– Você provocou uma briga onde um dos seus melhores amigos acabou sendo envolvido para te proteger e agora está aqui, tendo um piti, inquieto em como vai parecer para alguém que você nunca viu na vida ao invés de estar preocupado em como o Rômulo está, se ele se machucou…
Sinto um ricto nervoso contrair minha face numa careta. Não sei se pelo reflexo da dor ou pela indignação diante desse comentário injusto.
– Fui tão egoísta que saltei pro meio daquela rinha de galo disposto a me juntar ao meu amigo e acabei levando uma cotovelada e agora estou aqui, padecendo…
Gabriela me fita com uma convicção e censura medonha.
– Você viu. Não estou mentindo, estou? – pergunto sem pestanejar ao mesmo tempo em que dou de ombros.
– Você não fez mais do que obrigação, convenhamos.
– Não, não, não – balanço meu indicador de um lado para o outro com ênfase enquanto tento me levantar, porém sou novamente impedido – Eu não vou pagar essa conta. Não vou carregar essa cruz…
Gabriela estaca e me fita de maneira tal que faria a “cara de Sapa” da diretora de Defesa das Artes das Trevas, Dolores Umbridge, em Harry Potter, se corroer de inveja até a morte.
– Quem começou aquela confusão lá fora, hein? – ela intercepta o meu olhar antes que ele fuja da sua mira inflexível.
– Não fui eu – respondo enquanto cruzo as pernas, tentando parecer o mais natural possível – Não tenho culpa se o David decidiu jogar pro alto o resto da sanidade que ele possuía…
– E por que será que ele agiu dessa maneira? – Gabriela continua o seu ataque.
Descruzo as pernas.
– Na boa, eu não tô entendendo aonde você quer chegar – censuro, agora cruzando os braços e descruzando-os logo em seguida para tocar o lado do rosto dolorido.
Gabriela dá mais alguns passos à minha frente até que decide, por fim, voltar a se sentar ao meu lado.
– O que foi aquilo? – seu olhar está focado no chão, no tapete à beira da cama. Ela parece cansada – O seu discurso pro David, dizendo que ele não passava de um mero pôster grudado na parede? – seu olhar volta a me encarar.
Não consigo responder de imediato. Tento colocar em ordem os meus pensamentos sobre tudo aquilo que disse para o David quando as palavras foram surgindo dos profundos recessos da minha alma depois de terminar aquela oração… O medo de pronunciar cada uma delas diante da constatação de que ele realmente nunca havia significado nada, de verdade, para mim…
– Sei lá – admito, fazendo pouco caso e voltando a mirar a escrivaninha à minha frente – Acho que tive uma epifania…
– O que?
– Uma epifania, Gabriela – inicio abrindo e fechando os olhos, impaciente – Uma apreensão, geralmente inesperada, do significado de algo…
– Eu sei o que é uma epifania, professor Pasquale – ela retruca um tanto seca – O que estou perguntando é como você comprou essa ideia?
– Como assim? Esse tipo de manifestação acontece…
– Para – Gabriela volta a passar o dedo indicador da mão direita sobre os meus lábios – Você é uma pessoa tão inteligente, Lucas, mas quando se trata de conhecer a si mesmo, na verdade quando se trata de deixar a vaidade e o egoísmo de lado…
– Sinceramente não sei aonde você quer chegar…
– Cala a boca e escuta – ela ordena sem vacilar – Já parou pra pensar que o Jonas, o Thomas e o David nunca significaram nada para você? Que foram meros objetos de troca dentro desse seu mar de desespero em busca do príncipe da Disney?
Não consigo responder nada, tão somente meneio a cabeça, um tanto incrédulo diante dessa abordagem inusitada de Gabriela, tentando entender onde ela definitivamente pretende chegar.
– Você nunca gostou de nenhum deles, Lucas, e só se permitiu encarar isso, aceitar, quando o próximo se encontrava sob o controle da sua obsessão por ter um namorado…
– Eu acho que já ouvi esse discurso hoje, quando estávamos a caminho da casa do Rômulo… – desdenho; os olhos baixados no edredom marrom claro com listras horizontais.
– E com o David está sendo a mesma coisa – Gabriela parece ter ignorado o meu comentário sarcástico e repreensivo – Depois desse encontro que você teve com o tal senhor das aspas, decidiu, como que por encanto, que o David não lhe dizia mais nada… Se você parar pra pensar, quanto tempo ficou sofrendo depois que ele lhe deu um chute? Três dias? Se for tudo isso, foi muito, sem falar que você só resolveu ter uma crise de pelanca depois de três semanas e só porque eu contei que ele havia arranjado um namorado… Tenho certeza que sua indignação se deu mais por orgulho que pelo término da relação
Viro-me para o outro lado. Se ela quiser continuar com esse discurso depreciador, ignorando o meu martírio, me castigando sabe-se lá por que, que o faça, mas sem a minha concessão.
Passeio o meu olhar bem devagar pelo entorno a fim de deixar clara a importância que estou dando para toda essa baboseira pseudo intelectual.
Uma combinação contagiante da cor laranja com uma suavidade do verde impera nesse cômodo onde estamos. O guarda roupa tem acabamentos cinza com preto, seguindo o mesmo padrão da cama Bilbox onde estou aprisionado…
Se eu estiver dentro da casa do Rômulo, o que é provável, não me recordo de que a mãe dele tivesse tanto mal gosto para decoração…
– Você está me ouvindo, Lucas?
A censura no tom da voz de Gabriela me resgata para a realidade.
– É claro que não – lhe respondo, virando a cabeça na sua direção, resoluto, decidido a demonstrar o quão enfadonho está sendo o seu monólogo.
– Desisto – minha amiga se levanta da cama enquanto deixa escapar, de maneira nem um pouco discreta, o ar de seus pulmões – Estou tentando fazer você enxergar algo que não esteja entre neblinas, que não seja produto da sua imaginação carente, algo que talvez, para o bem ou para o mal, te ajude a amadurecer, a não sofrer tanto, ainda mais agora, diante dessa contagem regressiva para a sua viagem…
– Gabriela, pelo Criador – consigo, por fim, sair de cima da cama sem qualquer gesto me impedindo do contrário – Eu não estou entendendo essa sua súbita mudança, trazendo à baila um discurso do qual já havíamos deixado para trás, quando descemos daquele Uber…
Minha amiga e eu nos encaramos novamente. Gabriela está branca, nitidamente tensa, as sobrancelhas pretas acima dos olhos parecem agarrar-se à sua pele, assustadas como asas de pássaros.
Um longo suspiro entrecorta o fluxo da sua respiração.
Não gosto de vê-la desse jeito, desnuda, cheia de reticências, dando voltas em um assunto. Gabriela não é assim. Nesses raros momentos a arrogância tão peculiar à sua personalidade, que a faz ser considerada, dentro dos seus 1.68, como um galo combativo respeitado no terreiro, desaparece totalmente e dá lugar a uma fragilidade que não combina em nada com sua alma valente, desafiadora, inquieta, sem papas na língua…
– Lucas, já parou pra pensar que alguém está sofrendo e muito com a sua partida? – há indignação em sua voz, um tanto rouca, mas também uma nota de persuasão – Que você é um privilegiado por poder ter esses rompantes de ira enquanto essa pessoa padece em silêncio, contando os dias, os minutos, os segundos para te dar um adeus?…
Olho para minha amiga e estremeço. Seu semblante guarda tantos mistérios quanto suas palavras…
– Eu sei que vou queimar no fogo do inferno por estar quebrando uma promessa, ainda mais uma promessa feita para um grande amigo… – suas palavras soam como uma confissão e um pedido de desculpas enquanto olha corajosamente para o nada.
Um frenesi proporcionado pela curiosidade me consome a alma para logo em seguida se transformar em assombro e desespero diante do vislumbre do que acredito que Gabriela esteja prestes a me confidenciar.
Engulo em seco.
Ela não pode estar apaixonada por mim.
Imediatamente tento lhe comunicar com os olhos que sinto muito antes de ouvi-la se declarar, antes de vê-la se expor desnecessariamente, sabendo que nada além da nossa amizade mais que fraternal poderá existir…
– Você devia ser mais legal com o Rômulo sabia? – Gabriela finalmente arremessa suas palavras.
– O que você quer dizer com isso?
– O óbvio meu amigo.
Gabriela caminha na direção da porta do cômodo que estamos ocupando. Neste instante percebo que nenhum som está reverberando pelas paredes, nenhum resquício de alvoroço de vozes… Cadê a minha festa de despedida que deverias estar acontecendo?
– Eu já desconfiava e ele acabou me confessando que tem sentimentos fortes por você… Você precisava ver a cara dele quando te viu desmaiado… Foi de cortar o coração…
Meus joelhos me traem. Sou forçado a voltar para a cama, onde me sento, respirando fundo, forte, e sentindo uma dormência tomar conta do meu corpo e um formigamento desagradável se instalando nas pontas dos dedos dos pés e das mãos.
O Rômulo? O Rômulo? Impossível. A Gabriela está equivocada. É Claro que tem alguma coisa errada nessa história que não está certa.
Meneio a cabeça completamente incrédulo.
Sempre nos orgulhamos de conseguirmos manter uma amizade acima do desejo carnal… Meu Deus, isso chega a ser um sacrilégio…
– Estou indo buscar um pouco de gelo, ok?
Gabriela informa ao mesmo tempo em que trespassa o umbral da porta já aberta, fechando-a logo atrás de si.
Uma tontura começa a me dominar; sinto dificuldade para respirar; estou engasgando…
Vejo o rosto de Rômulo, uma sequência de imagens desde quando nos conhecemos até hoje, até o instante em que ele surgiu na escadaria em frente à sua casa… Elas vão se tornando difusas, rodopiando à minha frente em uma névoa enjoativa cada vez mais densa…
Num salto, como se toda minha vida dependesse disso, corro até à porta e a abro de supetão, deixando de lado a dormência, o formigamento, o diabo a quatro, pouco me importando quem ou o que vou encontrar do outro lado.
Preciso sair daqui já. Agora.
Surpreendentemente me deparo com a estrada de pedra e cascalhos ladeado pelo jardim estilo mediterrâneo que fica à entrada da casa onde o Rômulo mora.
Deduzo, num lampejo, que não estou, então, de fato, dentro da casa. Graças ao Criador. Estou em um cômodo novo, pois desde a última vez que estive aqui, ele não existia…
Avanço alguns passos para fora, o suficiente para poder enxergar o meu entorno e logo encontrar a visão do senhor duplex que os pais do meu amigo construíram e Gabriela alcançando a porta de entrada…
Rômulo… Meu amigo…
Merda. Por que a Gabriela foi me contar isso? Pelo menos estou indo embora para a Laranjeiras e não vou precisar encarar o Rômulo, lidar com essa verdade, mesmo ele supostamente não tendo a menor ideia de que eu sei do seu segredo…
Balanço a cabeça com força de um lado para o outro. Não vou pensar nisso agora. Não vou. Vou sair daqui, pois não estou com ânimo para encarar uma festa, ainda mais depois de tudo isso, do vexame do David, dos meus desmaios, dessa revelação no pior estilo novela mexicana que a Gabriela me fez…
Visualizo o portão fechado não muito distante e então começo a correr, em linha reta, sem pestanejar, pisando nos cascalhos espalhados pelo chão. Uma dor surge na lateral da minha barriga, um pouco acima do meu quadril, mas eu não desisto do meu objetivo.
Por fim, um tanto ofegante, alcanço o portão e olho para atrás, rapidamente. Parece que alguém está saindo da casa. De pronto me viro e aperto o pequeno botão preto, à direita, e depois de um breve zumbido, o portão de aço se abre.
***
Termino de pagar a corrida ao motorista e desço do táxi sem demora, em frente ao calçadão de Copacabana e começo a caminhar, sem rumo certo, apenas decidido a esvaziar minha mente, não pensar em nada do que tem me acontecido, mas é difícil, quase impossível…
As pessoas vão e vem, passando por mim…
Estou me sentindo muito velho. Os acontecimentos de hoje me drenaram todo o sentimento. Primeiro a notícia aterradora de que irei sozinho para a Terra do Nunca, depois minha postagem no Whisper, e, claro, a raiva assassina do David…
E o encontro com o Thiago…
Nossa, parece que eu o vi há um século, aqui, nessa praia, nesse calçadão…
Nunca deixes de sorrir, nem mesmo quando estiver triste, porque nunca se sabe quem pode se apaixonar por teu sorriso.
Volto a caminhar.
Realmente não me sobrou nenhuma emoção o suficiente para lidar com a surpresa, a bomba que Gabriela soltou covardemente em cima de mim… Ela não deveria ter feito isso…
Respiro fundo e decido aportar no quiosque a poucos metros à minha frente.
Necessito beber alguma coisa.
Tiro a carteira de trás do bolso da calça jeans e confiro se trouxe minha identidade falsa… Tudo certo.
***
Chego à entrada do quiosque. Um espaço amplo, coberto, onde uma fileira de bancos, lado a lado, rodeia a ilha onde três jovens barmans servem à clientela uma grande variedade de bebidas enquanto outro grupo de bancos se estende numa fileira de mesas pequenas, altas, até o calçadão, dentro do limite do estabelecimento, indo em direção à praia e terminando onde começa a areia.
Escolho um dos bancos que fica na ponta próxima à areia, no lado oposto à entrada. Um dos barmans não demora a se aproximar, perguntando o que eu desejo e estampando em seu rosto um sorriso maravilhoso, iluminado. É um rapaz bonito. Cabelo curto. Rosto bem barbeado…
Depois que ele se afasta, retiro o celular do bolso para conferir se está mesmo desligado. Não quero ninguém me enchendo o saco. Vou me despedir dessa merda toda em grande estilo.
Sorrio, meio de lado, um sorriso de deboche e devolvo o aparelho para dentro do bolso e me viro para o mar, por alguns instantes, enquanto espero pela minha Smirnoff Ice.
Passo a mão sobre o rosto e confiro que, pelo menos por enquanto, nenhuma “montanha” surgiu. Quanto à dor, bem, vai ser mais uma dentre tantos padecimentos que o Criador decidiu me reservar, mas essa, ao menos, está suportável.
Logo me volto quando ouço o chamado do barman, que não demora a entregar minha bebida, se afastando depois que me desfere um sorriso aconchegante.
Carência. Carência. Carência. A pior inimiga do ser humano. Concluo, entornado num só gole a bebida e me preparando para pedir outra, porém quando faço menção em levantar a mão na direção da Ilha dos barmans, me surpreendo ao enxergar a figura de Thiago atravessando a entrada do quiosque…
Mesmo no deserto, sob um sol escaldante, no meio de um bando de nômades, eu o reconheceria.
Meneio a cabeça e a seguro, de pronto.
Uma única Ice já está fazendo efeito?
Arregalo, então, os meus olhos para ter certeza do que estou avistando. É uma miragem, certamente. É uma miragem.
Miragem ou não, Thiago é o ser da suprema beleza dentro de um blazer azul marinho, camisa branca lisa, calça jeans reta e tênis iate…
Com passos firmes, ombros naturalmente relaxados, robusto, ele toma a direção das pequenas mesas, ignorando os bancos ao redor da ilha do quiosque, e, sem pressa, atravessa cada uma delas…
Merda! Ele está olhando para cá e certamente me viu olhando pra ele igual a um pateta… Puta que pariu.
Viro-me para os lados para ter a certeza de que não existem outras pessoas próximas… Não há. Ele está vindo em minha direção.
Como assim?
Meu corpo estremece da cabeça aos pés. Eu vou ter uma síncope… Outra…
– Boa noite! – ele para, por fim, diante de mim, ereto, me cumprimentando com sua voz grave, sorridente, estendendo sua mão direita e com um ar brincalhão, completa – Mas que mundo pequeno, não?