Capítulo 3 – A Sete Chaves
– Siga imediatamente para a Praça da Sé! Disse o homem que agarrou o rapaz.
Era de estatura mediana e sua aparência anêmica assustava. Era sombrio e tinha um olhar frio. Após acomodar o corpo do jovem no banco de trás, sentou-se ao lado do motorista e acendeu um Djarum Black. Seguiu todo o percurso tragando um cigarro após o outro.
Assim que abriu os olhos recobrando a consciência após um profundo sono tentou discernir o local que estava. Isso só foi possível alguns minutos depois. A vista estava embaçada. De braços para trás e os punhos amarrados, ele havia sido dependurado com uma corda presa no teto a uma roldana. Ele não sentia mais os braços. E uma dor descomunal pesava sobre os ombros e as costas. Certamente seus braços estavam deslocados por ter que suportar todo o peso do corpo a quatro palmos do chão. Este método de tortura muito usado na idade média pela inquisição católica chama-se o Pêndulo. A ideia é fazer do julgado um pendulo humano exposto a inúmeros castigos aplicados pelo inquisidor. À medida que a organizava os pensamentos a visão do rapaz pode desvendar as imagens embaçadas que via. Havia um burburinho na sala. Era uma reunião da irmandade. Ao redor dele treze homens vestindo uma capa preta, capuz branco e segurando uma lamparina judaica.
– Tertia quae cardebant! Saudou o mestre de cerimonia que adentrou o circulo pisando firme.
– Fides et servitute! Respondem uníssono.
Muitas vezes eles já se reuniram, mas o local que se encontravam nessa ocasião era inédito até então. Um quarto com dez metros quadrados e quatro de altura. Apenas tochas pelas paredes de concreto. Um forte cheiro de cimento estava impregnado no ar. Ao fundo uma porta de duas abas na cor vermelha e entradas de ar nas laterais. Estaria tudo mergulhado em um profundo silêncio se não fosse um barulho metálico contínuo e uma espécie de jato de pressão que se ouvia ao longe. O mestre da cerimonia caminhou ao centro do circulo até uma pira que foi acessa por um assistente quase que simultaneamente. Após acender sua lamparina na chama, repassou a chama ao mais próximo de si e assim um após o outro acenderam a lamparina.
– Caros, apenas um motivo nos trás aqui essa noite! Um motivo que deve ser tratado com urgência e severidade. Todos nós estamos conscientes de nossa condição dentro dessa irmandade. Juramos voto de sigilo a respeito de nossas movimentações e membros. O mundo não está preparado para nós. No entanto, este a quem vemos é alvo de uma denúncia grave.
Aproximou-se do jovem e o cuspiu.
– Este é acusado do pior crime que poderia cometer contra nossa irmandade… traição! Ouçam, este homem ameaça os planos da irmandade!
O rapaz sentia a cabeça doer. Os braços dormentes pesavam. Ademais tinha a sensação que não sobreviveria a tudo aquilo. O homem continuou com um tom frio.
– Chegou a nós a notícia que pensas em abandonar a irmandade. Isso procede?
O jovem não respondeu. O homem retirou debaixo da capa um chicote e despachou dois golpes contra o rapaz. E continuou:
– O que falas a respeito dessa acusação?
– Não preciso falar nada! Respondeu o jovem.
Os estalos do chicote na pele do rapaz ecoaram na sala. Foram sete golpes seguidos, aplicados com muita força. No entanto, o rapaz já não tinha força para expressar qualquer dor.
– Não há nada que esteja oculto que não venha ser revelado! Disse o jovem com um punhado de forças que conseguiu externar.
– O que falastes? Questionou o homem de forma ameaçadora.
Um dos que estavam no círculo aproximou-se do centro estendendo ao homem a Bíblia que o jovem trazia.
– É um versículo desse livro…
– Ora, vejam! A Bíblia! Agora és cristão meu caro? Disse com tom irônico e aplicando mais um golpe com o chicote.
– Não há nada que esteja escondido que não venha a ser revelado!
– Chega! – Bradou o homem – Chega! O que pensa que está fazendo? Pensa que foi trazido aqui para nos evangelizar? Assuma o que nos interessa! Planeja delatar os planos da irmandade se desligando de nós?
Um silêncio sepulcral dominou a sala. Pensaram que o rapaz não iria responder, mas começou sussurrar.
– A minha grande obra será responsável por isso… a minha grande obra…
– Do que está falando?
– A minha grande obra… a grande obra…
O homem irou-se e vociferou:
– O que queres dizer com isso?
– Ele está delirando! Sugeriu um dos presentes.
Após alguns segundos de silencio o homem rondou o corpo do rapaz dependurado. Observou as tatuagens que lhe cobriam todo o corpo. Muitos dos desenhos ele conhecia. Eram deuses da mitologia grega, templos e representações de afrescos da Grécia…. Todos os desenhos seguiam a mesma temática. Aquele rapaz era um apaixonado pela mitologia grega e pelo visto havia feito disso o tema de todas suas tatuagens. O homem se deteve observando o grande templo de Atenas tatuado nas costas do rapaz circulado de minúsculas inscrições em grego.
– Imagino que ele esteja brincando conosco. Arranquem toda a pele das costas dele! Ordenou pausadamente.
A ordem foi recebida com um imenso susto pelos outros. Mas foi imediatamente cumprida. O carrasco desceu a corda. O rapaz pode sentir o sangue circular em seus braços. Sentiu uma dor ainda maior enquanto era amarrado em outra posição. De joelhos ficou com os braços amarrados para cima. As costas estavam indefesas para o que veio em seguida. O carrasco colocou na chama da pira uma adaga afiada. Após esquentar a lamina, puxou a pele das costas do jovem e começou a fazer um cauteloso corte retirando a pele desenhada. Tudo isso aconteceu embalada pela sinistra trilha sonora dos gritos desesperados do jovem que fora abafados em seguida com uma mordaça. O mandante daquela tortura inexplicável se aproximou de um dos presentes, a segunda pessoa mais importante na reunião e sussurrou ao pé do ouvido.
– Não tem como deixa-lo vivo.
– Se ele sobreviver a isso mate-o e lance o corpo onde achar melhor.
Exatamente dessa forma a vida começou a abandonar o corpo do rapaz. Em seguida, foi transportado para fora do local. Uma van o esperava de portas abertas. O mandante escolheu dois dos companheiros e adentrou no veículo. Na cintura, colocou uma pistola SigSauer, quase imperceptível pelo tamanho. Antes efetuou uma ligação e partiram. A um dos passageiros foi dado um mapa com uma linha vermelha que indicava uma trilha bem programada que findava na Praça da Sé. Hellen estava nesse exato momento onde a linda vermelha do mapa apontava como o final e observando aquele corpo tatuado continuava tentando imaginar o que havia acontecido com ele.
– Chefe, o Deic já entrou em contato. O levantamento feito não aponta para o pedido de busca a nenhum tatuado nesses dois dias. Informou um dos investigadores vindo de um ponto da praça com o celular na mão.
– Um quebra cabeça! Droga! Vamos abrir um inquérito e continuar com as investigações. E você o que me diz Hellen?
– Vamos empacotar o corpo e levar para o laboratório enquanto é cedo. Acredito que esse corpo ainda tem muito a me dizer!
Essa realmente era a intuição da médica. Hellen tinha um faro sobrenatural. Enquanto recolhiam o corpo, a médica observa as outras tatuagens que estavam na zona frontal do corpo. Ela de imediato reconheceu o deus Dionísio interagindo com alguns sátiros tatuado na barriga do rapaz. O desenho disputava espaço com outra figura que Hellen também conhecia. Era Aquiles matando um prisioneiro de Troia, releitura de um vaso do fim do século IV a.c. Hellen namorou um professor de História da USP e inúmeras vezes disputou a atenção com os livros de Daniel, esse era seu nome. Não obstante a isso, e para não ficar entediada, resolvia acompanha-lo no estudo. Assim, aprendeu muito sobre a mitologia grega e seus vários personagens. Mas um desenho em especial lhe chamou atenção antes de fechar o zipe do bolsão onde estavam depositando o corpo do rapaz.
– Esperem um pouco! Ordenou Hellen atraída pelo desenho.
Uma esfinge egípcia? A figura desenhada no punho estava legendada com uma citação. O traço leve e claro, a fez concluir que o desenho era recente e estava inacabado. Não era uma grande descoberta. Na verdade era muito irrelevante para qualquer um, menos para o instinto detalhista de Hellen.
– O que foi doutora? Encontrou alguma coisa? Perguntou Aroldo.
– Nada. Bobagem minha.
Hellen estranhou pelo fato de ser o único desenho que fugia à temática dos demais. Enquanto todo o corpo era tatuado com deuses e representações gregas, a figura do punho pertencia a uma mitologia completamente oposta, a mitologia egípcia. Havia uma única esfinge na mitologia grega, um demônio exclusivo de destruição e má sorte, de acordo com Hesíodo, uma filha da Quimera e de Ortros. Mas a figura desenhada não estava no padrão grego. A esfinge tatuada era o conhecido monumento de Gizé, um leão deitado com cabeça de águia. Além do mais, a figura recordava outra coisa a Hellen. Uma lembrança bem infantil. Quando criança não perdia um episódio do RáTimBum, um programa de TV voltado para as crianças e que obteve grande sucesso. No programa um quadro apresentado por uma esfinge fazia charadas aos espectadores assim como é representada em sua cultura… E se isso for uma espécie de charada esta tatuagem? Esse pensamento invadiu a mente de Hellen imediatamente. Parecia irracional e ilógico que a tatuagem da esfinge quisesse dizer alguma coisa a respeito do caso. E embora Hellen quisesse descartar essa possibilidade pela falta de lógica, não conseguiu.
– Podemos fechar o bolsão doutora?… Doutora?… Doutora Hellen estou falando com você! Protestou o investigador agachado ao lado de Hellen que fitava o corpo da vítima com um olhar distante.
– Calma – Disse Hellen, – Você que está de óculos, por favor, leia essa frase debaixo do desenho da esfinge no punho dele.
O investigador estranhou, mas não hesitou em obedecer ao pedido da médica. Aroldo suspirou observando a cena com olhar reprovador. Mas não interveio na ação de Hellen.
– “Sois sábios! Que as marcas de meus pés te mostrem o primeiro passo.” Recitou o investigador e continuou, – Tertia!
– Tertia? Repetiu com estranheza.
– É o nome que está entre chaves debaixo da frase. Deve ser o autor! Sugeriu o investigador.
– Tertia… Tertia… Nunca ouvi falar.
– Mas deve ser nome de algum pensador mesmo. Esses nomes sempre são esquisitos. Esopo, Platão, Nagel… Enfim, eu não me surpreenderia com um chamado Tertia!
Enquanto o investigador falava, a frase lida por ele ecoava nos pensamentos de Hellen. Ela insistia em encontrar uma lógica para lhe garantir que seu instinto não estava errado e a citação realmente quisesse lhe dizer algo mais. Olhava para o punho da vítima encarando o desenho da esfinge. Que as marcas…. pés… te mostrem… primeiro passo… será? Antes que pudesse se convencer do contrário, seus olhos percorreram o corpo do jovem e se deteve em uma única tatuagem no pé esquerdo. As marcas dos pés! Hellen não gostava de duvidar de si mesmo por isso o vestígio de desconfiança que lhe acometeu naquele instante lhe incomodou profundamente. Aproximou-se da tatuagem do pé esquerdo cuidadosamente isolado de todas as outras. Era uma sequencia de pequenas palavras em alguma língua desconhecida e outra subscrição traduzindo o inscrito. Hellen não teve tempo de averiguar profundamente o desenho quando Aroldo se aproximou.
– Hellen será que já podemos ir?
– Claro que sim. Só estamos colocando o corpo no bolsão.
Naquele instante a atenção de todos foi atraída por uma pequena equipe de TV que chegou ao local já apontando a câmera como uma arma. A repórter, uma magrela, loira e com cara de sono estendeu um microfone para Aroldo e disparou uma porção de perguntas. Aroldo se contorceu incomodado com a situação. Para ele equipes de TV era a coisa mais detestável em um ambiente daqueles.
– É cedo para falar alguma coisa! – Acenando para os policiais – Não quero que façam imagens!
Os policias partiram amistosos para cima do cinegrafista que já estava próximo demais do cadáver fazendo filmagens e pediram que desligasse a câmera. Negando-se a obedecer, começaram um bate boca. Um protesto sobre liberdade de imprensa foi travada entre a repórter e Aroldo instantaneamente. Um pequeno tumulto com ameaça de ordem de prisão ouvia-se ecoar na praça que já começava a receber sinais de vida da população que levantava cedo pra trabalhar.
Aproveitando a ocasião Hellen agiu por instinto. Retirou seu celular do bolso e tirou uma fotografia do pé da vítima. Fez isso de forma sorrateira, enquanto o investigador que lhe ajudara se levantou para ajudar amenizar o tumulto. Após prometer uma coletiva sobre o caso pela manhã cedo, a equipe aquietou os ânimos e o motim foi desfeito sem grandes consequências para ambos os lados.
– Pronto podemos ir! Podem colocar o corpo na ambulância! Ordenou Hellen se levantando como se nada tivesse ocorrido.
– Doutora Hellen – Disse Aroldo se aproximando esfregando a mão na fronte aliviado – seja rápida com a necropsia do periciado. Precisamos de resultados mais precisos já que aqui não tivemos grandes avanços.
– Não se preocupe. Eu já estou indo aqui direto pro IML.
– Isso é ótimo!
– Esta Hellen não deixa serviço para depois! Disse dando de ombros – Como falei já estou indo pro IML. Diga para o motorista de a ambulância tentar chegar antes que eu. Aposto! Sorrindo entrou no carro.
Hellen deu partida no carro e saiu dirigindo com os pensamentos voltados para as duas tatuagens do rapaz. Se aquilo era uma charada ou não ela descobria assim que decifrasse o segundo desenho. Ela realmente começava acreditar que a segunda tatuagem quisesse dizer alguma coisa. Retirando o celular do bolso, diminuiu a velocidade, e ficou observando a foto. Eram onze pequenas palavras e abaixo delas a frase que tudo indicava ser uma tradução: Primeira de Abrão e única minha, sigam suas pegadas e estarão no caminho certo! Hellen tinha alguém que poderia ajuda-la para saber se a inscrição em outra língua estava realmente traduzida na segunda frase. Anexou a foto, que apesar da rapidez que foi tirada ficou com uma boa qualidade, a um e-mail e enviou para uma pessoa de sua confiança.