Capítulo 2 – A Sete Chaves
O cenário na Praça havia mudado consideravelmente desde o vulto da Renault Master. Já passavam das quatro e meia da manhã quando uma equipe da DHPP chegou ao local do crime no comando do delegado Aroldo Mello e sua equipe. Aquele senhor de 52 anos atuou de forma histórica como advogado em alguns casos no país. Muito competente e com um faro investigativo nato, não conseguiu enxergar-se fora do ambiente de inquéritos e investigação. Por isso foi nomeado delegado mesmo que as dificuldades com uma perna mecânica, presente de um acidente um ano antes, fosse motivo de muitos o aconselharem a aposentadoria. Descanso era tudo que ele não queria. Prova disso era estar de pé às quatro da manhã no meio da Sé coordenando sua equipe. Ao todo eram nove pessoas. Um fotógrafo técnico-pericial, dois peritos criminais, três policiais, dois investigadores e um escrivão. Faltava somente uma pessoa para concluir a equipe. E Aroldo já estava ao telefone com ela…
– Dr. Hellen desculpe o horário, embora eu nem deveria pedir isso, já que é consciente que nossa profissão nos reserva surpresa desse gênero!
– Eu já estou a caminho doutor Aroldo! Estou indo o mais rápido possível.
– Estamos à sua espera. É um caso de morte violenta acidental. Pelo que já pude observar é um quebra-cabeças.
– Quebra cabeças é o meu passatempo preferido. Agora tenho que desligar. Como mulher da lei, eu não poderei ficar ao telefone no volante. Até já.
Quando ela desligou Aroldo soltou um leve sorriso suspirando. Ter a médica legista Hellen Lobato em sua equipe era um orgulho. Uma mulher sem precedentes em toda sua carreira. Muito perspicaz e ferrenha. Logo ela chegaria à praça em cima de um Scarpin preto, segurando elegantemente uma bolsa Carmens Stephens, que surpreendia pela infinidade de modelos diferentes com as quais ela aparecia.
Enquanto aguardavam-na, os outros profissionais já estavam mergulhados à procura de pistas e detalhes. O flash da câmera do fotógrafo se desdobrando em inúmeros ângulos no local deu um clima de seriado de investigação americano. Os investigadores reuniram algumas testemunhas que melhor souberam narrar o que viram mais cedo. Outros, por estarem sob efeito de drogas ou bêbados foram dispensados. Aroldo conversava com o escrivão ao pé de ouvido e com um dos investigadores. Os policiais garantiam a preservação do local chamado “extensão da cena do crime” já determinado minutos antes pelos peritos. Nada podia passar despercebido. Todo detalhe era fundamental. A Bíblia encontrada foi recolhida cautelosamente e preservada. A equipe era boa e com destreza e sabedoria já desvendaram muitos crimes, no entanto, o crime da Praça da Sé era diferente de todos os outros: um corpo abandonado, completamente nu, com a pele das costas arrancada e dois tiros.
Quinze minutos mais tarde e todo trabalho da equipe de Aroldo estava seguindo um padrão cauteloso. O que podia se observar claramente no rosto de cada um era uma enorme interrogação. De sobrancelhas arqueadas e alisando o bigode volumoso, Aroldo observava tudo em silêncio quando viu o Fox Prime Volkswagen frear violentamente chegando à local. O barulho chamou atenção de todos, fazendo-os girarem a cabeça em direção do barulho. Quando a porta abriu, as previsões de Aroldo se cumpriram. Embora fossem quatro horas da manhã, Hellen apareceu radiante e pronta para uma festa. Enquanto caminhava até a aglomeração, vestiu o jaleco branco e prendeu o cabelo com uma caneta. Retirando os brincos enormes, aproximou-se de Aroldo e à guisa de bom dia falou:
– Então, vamos lá! Eu já estou aqui!
– Eu poderia ser duro com você doutora Hellen. Mas sua elegância é injusta conosco! Disse Aroldo ainda alisando o bigode.
Hellen riu enquanto se virava para começar a analisar o corpo no chão. Antes, claro, chocou-se com a cena.
– Meu Deus! Exclamou hesitante.
– Não me diga que está surpresa doutora? Perguntou Aroldo aproximando-se de Hellen. Ao lado dela era parecia um pinguim.
– Os anos me deram experiência, mas não me arrancaram a emoção chefinho! – Respondeu em um suspiro longo. – Então vamos lá, é para isso que estamos aqui!
Hellen vestiu as luvas e acendeu sua lanterna, pois a luz do dia ainda estava longe de raiar. Andou a redor da área isolada cautelosamente. Cerrando o cenho aplicava uma profunda atenção ao corpo caído no chão a um metro dela. Qualquer coisa que acontecesse ali ao redor seria incapaz de arrancar atenção da profissional. Virtude que adquiriu na faculdade de medicina. Para muitos Hellen era uma patricinha metida que não falava com ninguém por pura soberba. Mas por dentro daquela jovem calada e centrada, existia apenas uma menina aplicada que não queria decepcionar os pais nos estudos. Filha de um renomado cirurgião plástico e uma juíza, Hellen cresceu sob a pressão de se exemplar e se tornar tão boa quanto eles. O pai morreu antes que ela concluísse a faculdade, por isso, na expectativa de que ele estivesse olhando ela de algum canto do além, seu profissionalismo era algo crucial em sua regra de vida profissional. Os olhos de Hellen metralhava cada detalhe do corpo rondando-o como um predador. Havia detalhes que só os olhos treinados de Hellen poderiam enxergar. Com a lanterna focou os braços da vítima e agachou examinando-os com uma pinça.
– O que encontrou Hellen? Perguntou Aroldo, que acenou para o investigador se aproximar.
– Os dois punhos estão com escoriações e roxo. Marcas como se tivesse sido amarrado… – Hellen correu a vista dos punhos até os ombros e continuou, – As duas escápulas estão aparentemente deslocadas.
O investigador não hesitou em opinar.
– Será que ele não foi puxado por uma corda amarrada nos braços? Isso explicaria as costas escalpeladas!
Hellen mordeu os lábios e silenciou por uns instantes. Todos olhavam para a médica. Gostariam de saber o que passava pela cabeça dela. Hellen logo concluiu:
– Pouco provável. Aliás, eu diria que podemos descartar essa hipótese. Essa pele foi arrancada com uma lâmina afiada. Pelo que posso observar o ferimento não tem resíduo de quaisquer matérias. O ferimento está limpo e o corte foi feito por lâmina é o que concluo.
Todos voltaram a olhar para o corpo no chão. Imaginavam como um ser humano seria capaz de um ato tão bárbaro. Os requintes de crueldade dos quais os muitos crimes eram cometidos hoje, surpreendia a equipe de Aroldo constantemente. Mas este caso em especial parecia ter uma nuvem sobrenatural de mistério envolvendo tudo. Poucas coisas haviam sido apuradas. Aroldo juntamente com a Guarda Civil já havia pedido ao CET , Companhia de Engenharia de Tráfego responsável pelo monitoramento de São Paulo, as imagens das câmeras mais próximas do local. Um levantamento em todas as delegacias seccionais para saber se deram alguma entrada de pedido de buscar por alguém com as características da vítima também já havia sido providenciado. A equipe trabalhava com muitas perguntas e poucas provas ou evidências. Estava muito difícil. Um verdadeiro quebra-cabeça montado com perfeição.
– Quem fez isso, fez bem feito. Mas não seria mais fácil desovar esse corpo em um lugar mais inóspito? Porque logo a Praça da Sé? Questionou um dos investigadores fazendo todos pararem.
Hellen olhou a fundo para o corpo sem vida diante dela. Ela tinha um instinto natural por mistérios. Não era a toa que amava a profissão. Descobrir as causas de mortes através das pistas que o corpo deixava lhe fascinava. Mas aquele até então parecia não lhe falar muita coisa. Em sua cabeça Hellen imaginava histórias e vislumbrava como aquela pessoa teria vivido e o que aconteceu para resultar em um assassinato brutal e incomum. Tudo que pensava, ela bem sabia que estava longe do que realmente aconteceu… Poucas horas antes aquele corpo estava cheio de vida. Seu dono, um jovem rapaz, estava aflito e impaciente, mas conseguia manter uma serenidade exterior. Apenas seus olhos o denunciavam.
– Filho não temas! Uma voz aveludada lhe aconselhou.
Ele ouvira muito essa frase na semana. E todas as vezes ela saiu da boca do homem que estava sentado a sua frente fitando-lhe os olhos. Seu nome era padre Thomas Bertiolli, pertencente a Ordem Beneditina. Um senhor de 46 anos, olhos negros, cabelos ralos e faces corpulenta. Esse padre tornou-se a figura de um pai além de confessor particular daquele jovem. O padre o havia conhecido numa missa na Catedral da Sé. Era domingo, quando o sacerdote entrou na imensa catedral muito antes de todos. Ao caminhar pela nave central em direção ao altar mór notou a figura desgastada do jovem que chorava próximo a uma cruz. Aproximando-se dele pós a mão em seu ombro, mas rispidamente o jovem se afastou e levantou em direção à saída.
– Eu conheço essas lágrimas meu rapaz. – Disse o padre com grande compaixão na voz. O jovem de repente se deteve e não conseguiu sair do lugar. – São lágrimas de arrependimento!
O jovem rapaz engoliu a seco e ficou paralisado, de costas. Segundos depois se virou encarando o padre. Os olhos vermelhos e inchados cheios de lágrimas.
– O que você sabe de mim padre? Perguntou com voz esganiçada.
– Eu não sei nada. Mas Ele sabe! Respondeu o pe. Thomas erguendo a vista para o alto.
O jovem rendeu-se soluçando procurando encher o pulmão de ar. Expresso nele uma dor na alma. Sentou no banco e soltou as lágrimas sem hesitar com a presença do padre.
– Queres conversar? Perguntou o sacerdote que lhe estendeu a mão.
Por um instante o jovem segurou as lágrimas, mas o soluço continuou. A mão enrugada do padre permaneceu sem resposta no ar. Mas ele não baixou. O jovem fitou a mão do Padre Thomas surpreso e receoso. Ele havia desejado muito isso nos últimos dias. Queria somente alguém disposto a ouvi-lo. Quando se deu por conta sua mão já estava segurando a do padre levemente até apertar com firmeza. Levantando os olhos para o rosto do padre viu uma coisa que a tempos não recebia: um sorriso sincero e acolhedor.
– Vamos sentar próximo ao sacrário! Disse o padre conduzindo ele sem resistir.
A longa conversa durou pouco mais de uma hora. O jovem aflito tinha um bom coração. Abertamente falou ao padre de sua vida nos últimos cinco meses desde que ingressara em uma opressora seita secreta do qual desejava se afastar o quanto antes possível, mas tinha muito medo das consequências. Desse dia em diante os encontros não pararam. Em todos os encontros os dois faziam crescer uma relação de confiança e carinho. O jovem era mais um católico que após o Crisma abandonou a igreja e aventurou-se por uma vida longe da comunidade cristã. Nessa aventura conheceu a sedutora sociedade que lhe atraído pelo desejo de conquistar o que quisesse a qualquer custo e em pouco tempo. Cresceu fora e dentro da roda de membros da mesma sociedade. Na companhia do padre Thomas, e seus conselhos, ele estava absolutamente decidido a sair da irmandade. Essa decisão estava tomada após sair do banho aquela noite. No entanto estava tenso, pois tinha plena consciência do que lhe poderia acontecer. Envolto com uma toalha se sentou na cama.
– Tome. Vista essa roupa. Odre novo para vinho novo lembra? Disse o padre tentando lhe confortar com um afável sorriso entregando-lhe roupas limpas.
O rapaz deu um sorriso forçado. Vestiu-se ali mesmo.
– Padre, eles são muitos e estão por toda parte.
– Deus é um e está em mais lugar que eles. Porque você deveria temer? Crer em Deus ou nesses homens?
O rapaz se calou. Thomas sempre conseguia lhe silenciar com frases como esta.
– Eles podem fazer muito mal a mim.
– No entanto o maior mal eles fizeram a você meu filho. Ainda lembro-me de como lhe encontrei na igreja. Deus é contigo filho!
Somente as palavras de Thomas lhe davam forças. Ele estava decido a procurar o líder da irmandade e renunciar ao título de membro. No entanto o maior motivo de sua decisão ele ainda não havia contado ao padre. Mas consciente que a Irmandade viesse a desconfiar de seu ato de renuncia, pediu ao padre lhe fizesse alguns favores. No quarto onde estavam o sacerdote guardava um porão secreta. Sob o assoalho de madeira do cômodo, tendo como entrada uma portinhola no chão, o padre tinha um local particular de oração. Quando o barulho da cidade eclodia era para lá que o padre se refugiava. Nessa sala a pedido do rapaz dias antes, o padre Thomas guardou uma valise com algo do conhecimento somente de seu dono. O padre obedeceu às recomendações do jovem a respeito do sigilo do conteúdo.
– Padre, eu quero pedir um favor. Estou indo ao encontro deles decidido no que devo fazer. Eu não sei o que poderá acontecer lá. – O rapaz retirou uma pequena agenda do bolso – Ligue para o primeiro número agendado na letra C. Diga que minhas tatuagens irão guia-lo.
O padre levantou o olhar da agenda e o encarou com estranheza. Uma pontada de dor lhe atravessou a alma sem um motivo aparente. Thomas era um sacerdote muito espiritual, mas pela primeira vez desejou que aquela dor que sentia não fosse uma espécie de aviso.
O jovem se levantou da cama, vestiu um suéter cinza que o padre lhe trouxe e saiu do quarto seguido pelo sacerdote que estava silencioso e com o pensamento distante. Ele seguiu os passos do rapaz até a sala. Parou e ficou olhando o rapaz abrir a porta. Fazia pouco tempo que os dois tinham se conhecido, mas para Thomas aquele rapaz lhe preenchia muito a vida, de modo que olhava com orgulho para os avanços que sem dúvida foi responsável por fazer no rapaz. A porta rangeu, o rapaz olhou para a rua e depois sorriu para o padre.
– Bem, preciso ir. Disse olhando o para o alto procurando pela lua.
– Já passavam da meia noite, irá procurar eles esse horário? Respondeu Thomas indo até a porta e repetindo o mesmo gesto.
– Temos reunião mensal essa madrugada. Ocasião mais que perfeita para dar a boa notícia a eles. Respondeu o jovem pesaroso.
– É sempre pela madrugada não é?
– Sim.
– O horário que o demônio zomba de Cristo!
O momento da despedida foi muito caloroso. O abraço que trocaram certamente foi o mais forte que já deram no outro. Algo no coração do rapaz anunciava que aquele seria o ultimo abraço em seu pai espiritual.
– Padre, eu fiz uma grande obra.
– E ainda fará muito mais filho! Tenha certeza.
– Não padre. O senhor vai entender. Só lhe peço, dê livre acesso a quem procurar por aquilo que o senhor escondeu para mim no porão. Somente eu e o senhor sabemos. Se outro alguém vir atrás, entregue. Estará dando para a pessoa certa. E também não se esqueça de ligar para o número que lhe falei.
Disse isso saindo pela porta, mas antes de descer os pequenos degraus Thomas lhe chamou.
– Filho, não esqueça disso! – O padre então lhe entregou um livro, – Sua Bíblia! Não se esqueça dela. Nunca!
Ao descer os degraus, andou alguns metros pela calçada abraçando a Bíblia ao corpo. Pensava como se levantaria na reunião e anunciaria seu desligamento. Era necessário fazer isso. Pois imaginava que com essa atitude a Irmandade pudesse relevar a renuncia. Havia a possibilidade de simplesmente fugir. Mas bem sabia que pelas ligações que o grupo tinha no país o resultado dessa atitude seria trágica. Estendendo a mão pediu parada a um taxi. O taxista era um senhor moreno, de cabelos brancos e sorriso largo.
– Boa noite!
– Leve-me até Osasco. Disse o rapaz entrando no carro.
Assim que acomodou-se no banco ao lado do motorista, sentiu alguém agarrar-lhe por trás e cobrir sua narina com um pano molhado. Ainda tentou resistir, e mesmo que fosse forte o suficiente para pelejar uma batalha corporal, pouco-a-pouco sentiu as forças esvaírem à medida que um odor alcóolico invadiu suas narinas. Logo um efeito analgésico tomou-lhe conta dos braços, os olhos arderam e lacrimejaram… Tudo embaçou e segundos depois perdeu a consciência.