Ordinários – Capítulo 20
Quando os livros estavam quase acabando, um homem apareceu pedindo comida a Salamander. Ele olhou na carteira e viu que não tinha dinheiro suficiente para (o que pareceu ser) alguma coisa importante… Mesmo assim, ele comprou alguma coisa para o moço não ficar passando fome. Fiquei olhando tudo aquilo de longe… A “seita” que ele frequenta, não pode ser ruim do jeito que Edgar diz… O garoto nem voltou pra se gabar que tinha ajudado uma pessoa. Acho até que ele não sabe que vi.
Hebrom depois veio até mim dizendo:
–Minha mãe mandou mensagem avisando que é para voltar para casa, mas ainda faltam alguns livros para entregar… Queria ficar mais, mas precisamos ir!
–Tudo bem, não se preocupem. Eu posso ficar entregando até sobrar só um pra eu poder levar.
–Oh! Sério?! Que linda! Muito obrigado mesmo! –ele me deu um beijinho no rosto e se despediu.
Poucos segundos depois que me caiu a ficha da situação, eu fui atrás deles, por ter esquecido de perguntar sobre o carrinho que ficaria comigo. Os dois não perceberam que eu estava bem atrás. Vi Dileã perguntando o motivo de eles terem que voltar pra casa à pé ao invés de ônibus.
Seu irmão agachou e disse sorridente num tom que era só para ela escutar: “Um príncipe estava precisando de ajuda, mas é um segredo.”. Os olhos da garotinha começaram a brilhar e ela ficou até brava e o chamou de “mordomo burro”… Ficou se questionando por ele não tê-la chamado pra ajudar também. No momento em que o garoto iria responder, eu perguntei:
–Ei… Hebrom. O que eu faço com o carrinho? –o rapaz virou com cara de quem estava com medo de que eu estivesse prestando atenção na conversa e com ela própria um pouco corada.
–P-Pode ficar com ele até o tempo que quiser!
–Ah… Entendi. Até mais.
–Até… Fica com Deus, darling. –ele coçou a nuca.
Talvez dessa vez eu fique mesmo…
Hebrom
Agora eu estou tendo que engolir a possibilidade de Quésia achar que sou um egocêntrico… Eu sempre digo pra minha irmãzinha fazer boas ações sem se gabar, ficou parecendo que eu faço exatamente o oposto. Sempre digo pra ela que as pessoas que precisam de ajuda são príncipes e princesas… Mas isso não é mentira… Se elas são filhas de Deus, de jeito nenhum isso é mentira.
Eu digo pra ela que quando fazemos o bem e não fica espalhando que fizemos, Jesus fica feliz. Se eu disser que eu faço isso pra Quésia, aí, com certeza ela vai achar que quero me passar por bom-moço, bem do jeito que Zac falou da outra vez… Eu já sou muito zoado por me esforçar pra fazer coisas certas num lugar onde fazer o mal é comum. Quem mais pega no meu pé com isso é Rich.
Eu queria muito voltar a ser amigo dele, mas parece que ele prefere as coisas erradas a estar comigo… Isso dói… Mas eu acho que já pensei coisas ruins demais por hoje… É o suficiente. Preciso me animar… Quésia quis um livro!
Quésia
Consegui me desfazer dos livros sem muito esforço, por incrível que pareça, eu nem fiquei tremendo ou coisa parecida. Foi bem fácil! Posteriormente eu fui pra casa. Edgar estava me esperando, furioso. Acho que era de se esperar…
–Onde é que você conseguiu esse livro e esse carrinho?
Olhei pra ele com uma cara feia, não respondi e subi as escadas pra tomar um banho. Ele ficou batendo na porta e berrando algumas coisas, mas ignorei até ele parar. Saí do banheiro já de pijama.
–Já vai dormir?
Saí andando e entrei no quarto.
–Ah, então é assim? A mocinha madura vai deixar de falar comigo só porque não pode mais ver o príncipe encantado?
–Mr. Pendleton, avisa a Edgar que é exatamente o que ele disse. –falei com o guaxinim.
–Você acha mesmo que essa infantilidade vai me fazer mudar de ideia?
–Mr. Pendleton, avisa a Edgar que não é pra ele mudar de ideia, é só pra ele ficar irritado mesmo.
–Então você não quer mais o teu namoradinho, Quésia?
–Mr. Pendleton, avisa a Edgar que eu não quero que ele se dirija a mim.
–Não precisa, “Pindoutom”, eu peço pra você passar o recado, relaxa, mano. Eu entendo o estresse que é cuidar de uma pirralha que não tem nem maturidade pra falar diretamente com os outros.
–Mr. Pendleton, pergunta o motivo de Edgar se achar mais maduro do que eu. Será que é porque ele também está falando com um guaxinim de pelúcia?
–Já chega, garota! –ele tirou o brinquedo das minhas mãos todo fulo.
–Já chega, você! Olha que criancice! Me impedindo de ver um garoto só por causa da religião dele… Que você nem conhece!
–Quer saber?! Dane-se! Desde que você não pare de falar comigo, faça o que você quiser! Eu não te adotei pra voltar a me sentir sozinho! Desde que você não me apareça com uma criança no colo aqui em casa, eu quero que se exploda também! Eu não estou nem aí! Mas você não vai ter o meu apoio! Tá feliz agora?!
Não me contive em dar um abraço nele, mesmo que o tom de voz que ele tenha usado foi obviamente de rancor… E mesmo as palavras dele não terem sido das mais bonitas. Na situação, ele trocar ódio por indiferença foi ótimo.
–Não sei a razão de você estar toda alegrinha! Escuta aqui, eu não vou mais te levar à escola depois dessa, falou? Te vira!
–Tá brincando… Não está? –soltei ele do abraço.
–Hahahahahahaha! Não. Eu tenho perdido dinheiro te levando pra escola. Você ir de ônibus seria mais barato. –fiquei de olhos arregalados, parada. Tentei fazer cara de triste, pra ver se ele se comovia. Edgar deu um longo suspiro e continuou falando. –Ai, mereço… Não é o fim do mundo, ok? Se eu não arrumar um jeito de economizar, não vai nem dar mais pra pagar a escola.
–Entendi… Mas eu não sei pegar ônibus.
–Pede pro teu namorado te ensinar, ele sempre fica no ponto aqui da frente… –Edgar desviou seu olhar e isso deu a impressão de que ele gosta que eu me relacione com Brom um pouco, mesmo não assumindo.
–Você fala desse jeito e parece até que aprova eu gostar dele.
–Ele poderia ser pior…
–Cortês, tenta separar religião de pessoa, vai! –dei uma cotovelada em seu braço e ele arqueou as sobrancelhas como quem diz “Que isso, minha filha?” –Não é que uma pessoa esteja numa igreja que ela vai ser boa ou má. Quem faz o teu caráter é você, não o lugar que você está. Se você se deixa influenciar, o problema é seu.
–Eiiiiita! Tô passado! Quésia falando bonito… Nem parece a mesma Quésia… Sai desse corpo que não te pertence! –segurou a minha cabeça e a sacudiu.
–Chato.
–Não, o certo é “Edgar”. Faleu? Valou. –saiu do quarto.
Passei o resto do dia lendo o livro que ganhei. Até que era interessante… Eu gosto de ver o ponto de vista das outras pessoas, deu pra saber mais sobre o que Hebrom acredita. É tudo muito coerente, mas… Sei lá… Tipo assim… Havia o Céu… Tá… Tudo perfeito, tudo na paz, tudo bem. Deus apresentou Seu Filho, dizendo que ele devia ser adorado… A maioria dos anjos ficou feliz, mas teve um que não gostou muito da ideia… Ficou com inveja. Chamam isso de “mistério do pecado”.
Pra mim isso não é tão misterioso… Se existe o bem, existe o mal pra poder se opor. Do contrário, o bem não seria tão valorizado.. Mas enfim, isso é opinião minha. Aquele anjo, Lúcifer, começou a se questionar e fazer a cabeça dos outros anjos, dizendo que Deus era um tirano e que ele próprio comandaria tudo de uma maneira bem melhor… Deus deu várias chances pra esse anjo se arrepender, mas ele não quis. Deus preza muito a liberdade, pelo o que eu entendi… Então Satanás foi expulso com um terço dos anjos que estavam no Céu… Os anjos que acreditaram no que ele disse.
A história explica que Deus não acabou de uma vez por todas com Lúcifer porque se Ele fizesse isso, seria exatamente aí que os anjos acreditariam nas mentiras que foram inventadas e adorariam a Deus mais por medo que por amor… Isso me lembrou do que Leone falou naquela classe… E também me recordei dos questionamentos que fiz em minha mente noutro dia… Parece que foram respostas…
Quando Lúcifer caiu na Terra, ele tentou a primeira mulher a desobedecer a Deus e ela fez o mesmo com seu marido… Com isso, Deus fez o plano da redenção e deu Seu próprio Filho pra morrer pelos nossos pecados… Os anjos ainda tinham dúvida da bondade dEle até aí. Depois que viram que ao Lúcifer, o diabo, não poupar nem a vida do Filho de Deus, ele não tinha razão em nada do que havia espalhado. Então Satanás foi derrotado, mas agora ele quer afundar o máximo de pessoas consigo.
Uma coisa que eu não entendi foi o motivo de Deus deixar o capeta fazer um monte de bagaceira aqui na Terra… Eu sei que tem alguns casos que são culpa dos erros humanos… Mas eu quis dizer, nos outros casos. Por que Ele permitiria que Seu povo sofresse tanto? Tá aí… No mesmo momento que eu fiz essa pergunta, eu li a resposta… “Deus permite que isso aconteça pra que o diabo revele o verdadeiro caráter do pecado e o que isso faz com as pessoas”… Você pode escolher fazer parte do lado que quiser, mas vai encarar as consequências depois. Tudo o que está acontecendo… Tem sentido… Isso é, teria, se eu acreditasse numa coisa dessas…
Eu encontrei a resposta para as minhas perguntas, mas não quis dar o braço a torcer tão facilmente…
Já ouvi tanta coisa que não parei pra refletir… E esse vazio que todo mundo tem? Será que fé é a solução? Todo mundo precisa acreditar em algo… Eu não faço o tipo de tem que ver pra crer. Pra mim, basta fazer sentido. Se minhas dúvidas forem completamente sanadas, eu consigo acreditar se quiser… Por isso estou nesse conflito agora. Não sei se quero me arriscar. Só sei que quero ouvir mais sobre o assunto…
Se essa história sobreviveu durante tanto tempo, deve ser porque alguma coisa nela tem… Eu quero saber quem é esse tal Cristo… Não quero depositar minha confiança em bens materiais. Eu já faço muito tentando confiar em outros humanos, porque é muita falsidade… Se essa tentativa de fé em Deus não der certo, no mínimo, eu tenho que admitir que foi uma boa tentativa de encontrar sentido nessa minha rotina caseira medíocre.
Quando eu terminei, já estava de noite. Até dormi com aquele livro na mão… De alguma forma, as palavras demonstraram ter uma capacidade enorme de entrar na minha mente, porque eu não conseguia esquecê-las. Será que eu finalmente serei feliz?