Ordinários – Capítulo 19
–Nem dá bom dia!… Aonde você pensa que vai? –Edgar me flagrou tentando sair de fininho pela porta da frente bem de manhãzinha.
–Pra fora de casa, pra onde mais?
–Haha, muito engraçadinha você. Eu já esperava esse tipo de comportamento. Foi bem por isso que eu resolvi te deixar de castigo até segunda ordem. As pessoas daquela seita agem como se fossem boas, porque é isso que elas querem que você pense… É perigoso pra você, não quero que minha irmãzinha corra esse risco, até porque eu sou um homem muito cuidadoso e eu nunca… –ele se virou e continuou o discurso… Eu aproveitei que ele não saí de casa enquanto ele ainda falava.
Agora eu preciso achar a tal praça o mais rápido possível. Eu pedi referências a Hebrom… Mas não ajudou muito, já que eu tampouco conhecia as referências. O garoto perguntou se eu queria que ele me buscasse em casa, mas eu mandei mensagem dizendo que preferia pedir informações pra quem passasse por ali. Um velhinho disse que era só seguir o caminho contrário de onde eu vinha que eu iria achar… E não era que o tio estava certo?
Não esperava que fosse tão fácil chegar ali, só alguns minutos andando e pronto. Encontrei Salamander, ele estava com umas roupas mais “normais” pra alguém da idade dele e segurando a mão de uma menina… A irmã mais nova dele.
Corri em direção dos dois. Eles estavam com as bocas sujas de uma coisa roxa e com copos nas mãos…
–Qué! –ele quase pulou em cima de mim. –Saudades!
–A gente se viu ontem…
–Eu sei, mas eu só aprendi essa palavra hoje. –me largou.
–Oi, Quésia! –Di deu um sorriso bem largo e abraçou minha perna. Eu achei até estranha aquela simpatia, Hebrom deve ter dito alguma coisa a ela… De qualquer forma, seus dentes também estavam de uma cor esquisita. –Oferece pra ela também, irmão.
–Eh! Claro! Você quer açaí?
–Ahm… Depende… O que é isso? –quando eu perguntei, os dois fizeram cara de quem fica em estado de choque.
–Como assim você nunca…? Mas você é que é a brasileira, como você nunca…?… Vem cá, vamos resolver isso. –ele me levou pela mão até uma lojinha. Lá tinham potes com várias coisas. –Qual tamanho de copo você quer?
–O menor… Caso eu não goste…
–Certo… Acho difícil não gostar, mas tudo bem. –ele pediu e eu não quis botar nada no meio, mas a Dileã começou a encher o saco e disse que se eu não botasse nada ia ficar sem graça. Hebrom dizia exatamente o contrário.
–O que é isso? –perguntei ao dono da loja, apontando pra um dos potes.
–Granulado de chocolate… Está escrito aí, não está?
–Ah!… Verdade… –comecei a colocar tudo o que tinha a palavra “chocolate” no meio.
–Assim ela não vai nem sentir o gosto do açaí.
–Ai, Hebrom, cala a boca! Deixa ela! Fica reclamando do jeito que ela faz as coisas! Assim ela nunca vai gostar de você! Nem eu! Mordomo chato eu demito.
–Ela já gosta de mim… Eu acho. –Salamander mostrou a língua roxa pra irmã, deixando os olhos vesgos. Eles deviam estar achando que eu não estava ouvindo, porque quando eu virei, eles me deram um tchauzinho como se não estivessem dizendo nada.
Nós fomos pra fora, Hebrom deixou a irmã brincando no playground e sentou ao meu lado num dos bancos da praça.
–Esse troço é bom! –me referi ao açaí.
–Eh! Eu gosto muito!
–Percebi… –fiquei fitando a boca suja dele. Aquele roxo ficou fofo na pele branca azeda dele, ainda mais quando ele ria. Às vezes esse garoto age como criança… Talvez seja por isso que eu fui tanto com a cara dele. Crianças são maravilhosas…
–Certo… Eu te chamei aqui pra… Pra… Eu não me lembro.
–Ué… É sobre o meu irmão? –eu preferi deixar “Martins” pra depois… Eu não sei se ele estava fingindo ter esquecido ou se ele realmente não lembrava. Seja como for, eu quis respeitar o espaço dele por mais um tempinho.
–Ah! Mais ou menos isso! É que… Você quer que eu pare de andar com você?
–O que você acha?
–Acho que você devia responder minha pergunta e ser direta, porque te perder é um assunto muito sério pra mim. –Salamander ficou extremamente inexpressivo.
–Claro que não, Hebrom…
Você é meu único e melhor amigo nessa porcaria de vida…
–Tem certeza? Não vai te trazer problemas? Eu não quero te trazer problemas…
–Você só vai me trazer problemas se quebrar aquela promessa, seu idiota… –choraminguei.
–Promessa? Eu não vou… Só se você quiser que eu quebre…
–Já disse que não quero.
–Ótimo. Eu… fico muito feliz por isso… Seu irmão tinha ido trabalhar quando você saiu?
–Não.
–Como você conseguiu vir?!
–Usando as pernas… Não foi nada demais, ele não é muito atento.
–Eh… Não faça mais isso.
–Foi mal.
–Ok. Bem, era só disso mesmo que eu queria falar?
–Não…
–Que mais então?
–Martins… –eu disse com receio… O semblante de Hebrom pareceu desabar no mesmo instante.
–Ah… Ele…
–Você não precisa me contar essa parte, se não quiser. Eu não quero que você se sinta desconfortável.
–Não, Quésia, eu quero mostrar que eu confio mesmo em você. Você é diferente das pessoas que eu conheci… Não deveria ser tão difícil colocar isso pra fora.
–Mas então o que ele tem a ver com tudo o que você já me contou? –a curiosidade falou mais alto.
–Eu o matei.
–Quê? –eu fiquei confusa.
–Eh, ele morreu por minha culpa. Na noite em que Folk brigou comigo, eu liguei pra ele me fazer companhia no hospital e pedi que fosse me buscar quando eu estivesse bom… Eu queria que ele falasse com os médicos e que fosse meu responsável naquele momento, porque eu não queria que Ramon e Crisbell soubessem.
–Tá, mas por que você acha que o matou?
–Ele sofreu um acidente naquela noite chuvosa. Eu estranhei muito ele não ter aparecido. Uns dias depois saiu no jornal. Por alguma razão, ele bateu o carro numa árvore… Eu só sei que ele não teria se machucado caso eu não tivesse pedido aquilo pra ele…
–Como você disse, foi um acidente. Você não sabia que isso iria acontecer.
–Mas eu deveria raciocinar que era perigoso sair de carro numa noite de chuva. –Hebrom estava olhando pro chão e sorrindo, mas seu sorriso obviamente não era de felicidade… Parecia que ele queria dizer que sabia o quão idiota era.
–Você não tem culpa…
–Esquece, Quésia. Não adianta. Eu já tentei acreditar nisso. Mas eu não sei superar, eu nem toco mais no nome dele… Ainda bem, porque meu tio não gosta que eu fique lembrando. Ele ainda não aceita muito bem. Martins e ele eram muito amigos. –ele ainda estava sorrindo, mas seus olhos estavam ficando inundados.
–Você não controla essa coisa… Não é mesmo culpa sua.
–Então de quem é a culpa?! De Deus? Eu não quero jogar a culpa pra cima sabendo que foi minha!
–Infortúnios acontecem…
–Eu nem sei o que isso significa. –ele riu e as lágrimas começaram a descer.
Era perturbador vê-lo daquele jeito… A melancolia estava pior do que na vez que ele me contou sobre Folk. Deve ser duro se ver como um indivíduo sem muita importância pras pessoas que tem um passado sujo e também se considerar um assassino.
–Mesmo que tenha sido culpa sua, você acha que Deus fica feliz com você carregando isso consigo e sempre agindo como se Martins tivesse sido só fruto da sua imaginação?
–Eu acho que nunca te vi falando dEle… –o garoto enxugou as próprias lágrimas… Eu também não imaginei que acabaria dizendo isso. –Eu acho que você está certa, darling…
–Eu tenho certeza.
–Martins foi um homem muito bom… Eu não deveria tentar esquecer dele só por uma lembrança ruim, se as boas foram maiores. Ele me deu aulas de surf quando eu era mais novo…
–Ele era surfista?
–Eh…
–Mas você não disse que ele era pastor?
–Ele não pode ser os dois?
–Pode, eu acho… Mas parece meio estranho.
–Eu lembro que fiquei todo vermelho, parecendo um shrimp depois daquelas aulas. Até hoje eu não sei nadar direito. Ele fez o favor de vir até aqui porque eu estava interessado nisso na época e porque já era amigo de Leone antes de virar pastor do distrito… Na IASD os pastores não são os mesmo à vida toda. Eles trocam, pra não ficar aquela história de “meu pastor isso, meu pastor aquilo”.
–Ah… Isso é legal.
–Ele usava esse ambiente pra falar de Jesus pras pessoas… Sobre Ele ter criado o mar e tudo mais… Quando eu o conheci, ele pintava o cabelo de um loiro extremamente claro. Ele fazia isso desde que Pierre fez dez anos, porque ele se sentia meio mal por causa do albinismo… Mesmo a pele dele sendo um pouco mais escura do que deveria por ir muito à praia.
–Ele parecia ser um cara bem maneiro mesmo…
–E era. Ele gostava de crianças assim como você.
–Hebrom…
–Oi.
–Você não sabe o que aconteceu pra ele ter batido o carro…
–Provavelmente ele derrapou na água da chuva.
–Mas você acha que ele derraparia por nada?
–O trânsito não estava muito movimentado nesse dia… Derrapar na água é normal.
–Sim, mas você sabe dizer se ele estava na curva?
–Não, não estava… Por que você está tentando dar uma de detetive?… –ele me olhou seriamente.
–Eu só estou tentando te ajudar a parar de achar que você é culpado disso. Um monte de pessoas morrem no trânsito, ele só foi mais uma! –eu elevei o tom de voz involuntariamente e Hebrom começou a chorar. –Desculpa, eu não quis dizer que ele não era importante… Eu só… –não sabia mais o que dizer pra me desculpar, então apenas abracei… Coloquei seu rosto apoiado no meu peito e ele começou a soluçar. –Eu não queria que você ficasse se achando a pior pessoa do mundo por causa de algo que você sequer tinha controle…
–Você ainda quer ser minha amiga mesmo sabendo disso? Eu não contei pro Pierre, ele não sabe que foi culpa minha… Eu só disse para Deus e para meu tio, ninguém mais sabe.
–Olha pra mim… –ergui seu queixo e fiz com que olhasse nos meus olhos. –Eu nunca vou querer deixar de ser sua amiga. Agora para de chorar, eu detesto quando você fica assim, Brom.
–Desculpe…
–Você pode me mandar a matéria do jornal quando chegar em casa?
–Você não vai desistir de me inocentar? –Hebrom secou o rosto.
–Inocente eu já sei que você é, eu só queria um jeito de provar isso pra você… Você poderia ser doido naquela época, mas não causava dano físico nos outros, não queria machucar as pessoas. Você só se envolveu numa briga por querer se defender… Até parece que o bebê dente de sabre mais amável do mundo iria planejar matar alguém.
–Wow, até você me zoando por causa dos dentes…
–Ah, qual é?! Eles são fofinhos. São um charme que você tem. –tentei quebrar o gelo e desfazer um pouco daquele clima pesado.
–V-Você gosta deles?
–Sim, qual o problema?
–É que a maioria das pessoas não…
–Azar o delas. –eu finalmente consegui fazê-lo rir por achar graça de alguma coisa que eu disse. –Enfim, só lembra que, do jeito que ele era, ele não gostaria de te ver todo depressivo pelo que aconteceu.
–Tem razão… Não foi isso que ele me ensinou a fazer. Além disso, ele só está dormindo agora… Depois vai acordar.
–Isso mesmo! –eu concordei sem saber o que ele queria dizer com aquilo… Não me julguem, eu só queria animá-lo. –Hm… De qualquer forma, por que você trouxe sua irmãzinha aqui também? Sua mãe mandou?
–Não foi isso, ela que quis vir… Aliás, vem cá! Eu já ia me esquecer, quero te mostrar uma coisa! –ele saiu me puxando e tirou a irmã dele do playground. –Lembra daqueles livros que Delmara disse que nós iríamos entregar ontem?
–Delmara? A mãe da bebezinha?
–Essa mesma.
–Lembro sim. O que tem?
–Tã-dã! –ele apontou pra um carrinho cheio de livros. –Di e eu viemos entregar os que sobraram aqui na praça! Você quer ajudar? São ótimos livros. Eu já li e tentei ler pra Dileã, mas ela ficava enrolando…
–Ficava nada! –a garotinha negou.
–Essa coisa de enrolar deve ser de família… –depois do meu comentário, Hebrom deu um sorriso amarelo ao lembrar da vez que fui ajudá-lo a estudar em casa. –Mas é claro que ajudo, não tem nada pra fazer lá em casa… Eles são tão bons assim? Posso… levar um pra ler?
–Óbvio que pode! –dessa vez Hebrom deu um sorriso sincero que pareceu que iria rasgar seu rosto.
Nem sei o porquê de aceitar a ajudar… Tava meio que na cara que aqueles livros tinham conteúdo religioso. Provavelmente a boa vontade deles me atraiu, sei lá… É, deve ser isso… Ah… Eu admito que estou ficando mais aberta ao assunto, tá legal?
Também percebi que sempre que alguém recusava ou dava uma resposta grosseira, eles não desanimavam, como se o presente fosse a melhor coisa do mundo. Mas raramente alguém rejeitava, o livro era bonitinho e de graça… Brasileiros amam coisas de graça.