Ordinários

Ordinários – Capítulo 17

Segui o garoto, ele entrou numa sala que tinham vários adolescentes e um adulto. O adulto era branco, mas nem tanto quanto Salamander. O mesmo disse o que eu não esperava:

–O professor da classe também é meu tio. Era com ele que eu morava no Canadá!

–Oi, seja bem-vinda! Me chamo Leonidas… Mas pode chamar só de Leone. Você é a…? –o homem veio até mim sorrindo.

–Quésia.

–Ah! Isso! É um prazer! Fique a vontade, tá? Aqui todo mundo é amigo. –deu uma piscadinha e foi pra frente da sala. –Bom dia, povo! Fiquem em silêncio por favor, Naomi vai fazer os apontamentos.

–Por que eu? –ela se queixou. –Eu sou visitante…

–Visitante nada! Você já veio comigo várias vezes! –Jamal incentivou-a sorrindo.

Carter suspirou e acenou pra mim quando me viu. Logo após, começou a fazer perguntas que me deixaram ainda mais confusa sobre o que eles realmente faziam naquela tal classe. Depois ela saiu recolhendo dinheiro de quem quisesse dar… Não gostei muito dessa história. Eu reconheci algumas pessoas dali. Além de Naomi, eu percebi Jamal e Wendel ali. Fiquei um pouco surpresa, porque tipo… Wendel numa igreja. Não acho que combine, mas não tenho que me meter. Bem, ao menos assim eu aprendo a não estereotipar.

Ao acabar, um menino com a cabeça raspada apresentou a “carta missionária”. Era a história de um guri de um país aí que eu esqueci o nome e ele era o único aluno decente da sala de aula, porque todos os outros eram arruaceiros… E isso fez a professora se aproximar dele e isso foi uma oportunidade para ele falar de Deus pra ela… Alguma coisa assim. Foi uma história atrativa até… Parecia ser real.

Depois, Leone perguntou sobre o que se tratava a lição dessa semana. Responderam que era sobre as influência de anjos sobre o mundo, anjos bons e maus. Mais um assunto que não manjo muito… Mas já ouvi dizer que, no cristianismo, são tipo uns guardiões ou soldados que tomam conta da gente. Quer dizer, deles… Também não sei se acredito. Nisso, Leonidas pediu três voluntários, mas nenhum se mobilizou.

–Vamos lá, gente! Vocês sabem que eu não zoo ninguém! –ele disse, todos se entreolharam e começaram a rir. Boiei. –Certo, já que ninguém se oferece, eu vou escolher. –no momento em que ele disse isso, Hebrom deu um suspiro e se levantou. –Isso que é macho! Zac, chega aqui pra dar apoio ao seu irmão.

–Tá brincando, né, Léo? –Zacur olhou torto pra seu tio.

–Não. Aproveita e traz Wendel com você. –o geek, que mexia no celular naquele mesmo instante, arregalou aqueles olhos puxados o máximo que pode pro professor da classe. –Anda, gente! Fazer isso vai ser moleza pra vocês.

–Que seja… –os outros dois disseram simultaneamente.

–É simples: Eu quero que um de vocês finja ser um anjo mau, outro finja ser um anjo bom e o outro vai ser o ser humano. Os anjos vão ter que convencer o humano a fazer o bem ou o mal, dependendo de qual anjo seja… Deu pra entender? –os três balançaram a cabeça, concordando. –Tem certeza que entendeu, Hebrom?

–Sim, tio… –o garoto pareceu incomodado com a pergunta. –Vou ser o anjo bom então.

–Eu vou me fingir de tinhoso. –Zacur riu colocando as mãos nos bolsos.

–Ótimo. Podem começar!

–É… Vamos à igreja? –o de olhos verdes falou com Yamada, que não parecia nem um pouco animado com a ideia.

–A gente já está na igreja… –ele respondeu.

–Que igreja o que! Vamos sair daqui, conheço lugares muito mais legais! Você não precisa disso aqui. –Zacur colocou a mão no ombro do japa e boa parte da classe riu.

–Deus ficaria feliz se você continuasse aqui, já que veio… –Hebrom comentou.

–E Deus existe, por acaso? Tem como provar? –Wendel disse entrando no personagem.

–Não, não tem! Olha pro estado do mundo! –Zac falou encenando a maior convicção do mundo.

–Você não tem como provar o contrário. O mundo está essa droga porque os humanos que deixam ele uma droga. Você não pode jogar a culpa pra cima. –seu irmão interveio.

–Ah, então tá dizendo que a culpa é minha? –Wendel fingiu estar indignado.

–Se Deus existe, ele não liga pra você! Você veio de uma explosão! Boom! –o “anjo mau” simulou com as mãos. –Agora vamos sair e usar drogas.

–Nada a ver! Ele liga sim! Ele fez o homem com as próprias mãos, você veio do pó e… –o “anjo bom” ia se defender, mas foi interrompido.

–Exatamente! Você veio do pó! Do pó! –Zac fez como se estivesse inalando cocaína e todos da sala começaram a rir.

–O mundo não vai te fazer feliz!

–Como você vai saber se não experimentar, Wendel?

–Leia a Bíblia e você vai ver que Deus se importa com você e que Ele é o melhor caminho pra se seguir.

–Eu já li esse livro de ficção! Quer spoiler? Todo mundo morre no final, não tem graça nenhuma! E pra que ler a Bíblia quando você pode jogar vídeo game?

–Opa, opa, opa, tocou na ferida. –Yamada sorriu e foi virando o rosto pra Zacur.

–Vídeo game não vai te dar vida eterna, Wendy… –Hebrom persistiu.

–Quem precisa de vida eterna quando nós podemos nos divertir ao máximo por aqui? O Céu nem deve ser divertido mesmo! Vamos pegar umas minas! Mas se você quiser ir pra lá, faz o que você quer agora, depois pede desculpas quando ficar velho.

–O salário do pecado é a morte, você precisa se arrepender enquanto é tempo! Nada vai poder preencher o vazio que vai ficar no coração de Deus se você não for morar ao lado dele! Você é insubstituível.

–Já que o salário do pecado é a morte e você é um pecador… Deus não vai te perdoar! Vá em frente e peque! Se divirta! Não vai fazer diferença pro cara lá de cima. –Zacur era bem extrovertido e as pessoas da classe gargalhavam de algumas bobagens que ele dizia.

–Ele entregou seu Filho por você, você acha mesmo que Ele não perdoaria? Acha mesmo que Ele faria uma coisa dessas por nada? –o geek ficava olhando o debate dos dois irmãos como se assistisse a um jogo de tênis.

–Olha quantas pessoas há no mundo! Você acha mesmo que Ele vai lembrar de você?! Me poupe! Você é um lixo muito arrogante, sabia? Gosto disso em você!

–Valeu, cara. –Wendel apertou a mão do Zac. Eles eram meio cômicos.

–Deus ama você do jeito que você é! Pobre, miserável e pecador, do jeito que você está.

Pecador! Você ouviu? Deus ama todo mundo mesmo, então vamos pra balada. Tuts, tuts, quero ver! Relaxa, vai todo mundo pro Céu mesmo, não é? Afinal, Deus é Pai! Jesus humilha Satanás.

–Eu acho que já está bom, gente. Obrigado. –Leonidas os fez tornar aos respectivos lugares. –Vocês viram, pessoal? Influenciar para o mal parece ser bem mais fácil. O diabo faz parecer que as coisas ruins que acontecem são culpa de Deus, enquanto os anjos maus nos induzem a fazer coisas horríveis… E nós aceitamos! E como muitas pessoas escutam a voz de quem se agrada do mal, o mundo está esse caos. Deus nos deu liberdade pra fazer o que quisermos, mesmo que o nosso desejo seja não segui-lo e fazer o mal, porque Ele não tem gosto por obediência forçada. Podemos optar em ser bons ou maus todos os dias. Deus não fez o mal, o mal é a ausência do Senhor… E todos os dias escolhemos estar com ele ou não.

E continuou:

–Na rebelião do Céu, Ele não exterminou o mal logo de cara porque os anjos pensariam que a cada um que fosse contra Deus, Ele mataria. Serviriam mais a Deus por medo do que amor. Por isso, Ele está permitindo que o pecado e Lúcifer mostrem seu verdadeiro caráter. Nós podemos acreditar no que quisermos, mas a verdade é só uma: O bem é maior! Nós podemos fazer o que consideramos conveniente a nós mesmos e aos outros, mas no fim, todos nós vamos colher o que plantamos. Vocês podem ver também que boa parte das religiões procura teorias que tenham justiça no final… E nós sabemos que realmente vai haver.

Houve alguns debates e perguntas na classe. Parecia que cada um deles estava muito feliz com aquilo. Eu acabei me contagiando pela animação, mesmo não tendo certeza se acredito na mesma coisa. O que eles diziam, apesar de incomum, era coerente… Pelo menos a parte que eu consegui entender.

Quando estava acabando, eles se reuniram pra fazer uma oração. Eu não fechei os olhos, mas prestei atenção no que foi dito. No fim, Salamander me levou para dentro da igreja, dizendo que o culto já iria começar. Entramos e eu percebi que quase todas as mulheres estavam com saia ou vestido e nenhuma usava chapéu… Mas eu não vi ninguém me julgando de longe pelo meu jeito de vestir… As pessoas foram bem simpáticas comigo.

Quando sentamos, houve um depoimento (no data show) de alguém que teve sucesso em alguma coisa na vida. apareceram dois homens recolhendo dinheiro novamente. Nós sentamos bem na frente e eu me arrisquei a perguntar:

–Por que recolher dinheiro?

–Não fica preocupada, você não é obrigada a dar e ninguém vai ficar te perturbando ou olhando feio por isso. Você só entrega se quiser.

–Entendi, mas por que duas vezes?

–A oferta lá de fora vai pras missões fora do país, ajuda a construir igrejas, colégios, hospitais.. É intensamente gratificante saber que você está ajudando alguém e essa pessoa nem sabe quem é você. Já o dízimo é daqui de dentro, paga a conta da igreja e as manutenções, não vai pro pastor… O pastor tem um salário. No mundo todo é assim… Pelo menos na IASD. Deus também pede pra fazermos esse voto de confiança, pro dinheiro não ficar acima dEle. Até porque Ele obviamente não precisa do nosso dinheiro.–explicou carinhosamente. Ele parece mesmo apaixonado por esse negócio de “Deus”.

Bem… Pra ele saber que está ajudando, tem que ter alguma prova. Se ele tem contato com o resultado, talvez não seja roubo do jeito que eu pensei…

Eu estava exausta, já que eu costumo dormir até tarde aos Sábados e Hebrom acabou se notificando disso:

–Tá cansada? Pode apoiar a cabeça aqui… Se quiser… –ele apontou para o próprio ombro. –Eu só não queria que pegasse no sono. Mas se não estiver aguentando mesmo, eu não vou te impedir. Se quiser, eu posso te acordar quando começar o culto.

Agarrei o braço dele e aceitei. Agora que eu poderia até tirar um cochilo, o sono foi embora… Típico. Então eu fiquei olhando para quem fazia anúncios lá na frente. Depois de alguns minutos Salamander se levantou.

–Vai lá fora?

–Não. –falou rindo.

E com isso, eu concluo que ele foi sentar em outro lugar e me deixou ali sozinha. Anunciaram uma música especial lá na frente e o coisado do Hebrom pegou o microfone. Bem que ele podia ter me avisado que ia cantar…

A voz dele era linda e a letra da música também. Achei até estranho ninguém aplaudir (quase que eu faço isso e fico no vácuo). Ele tocava violão! Nem dava pra notar que era gringo. Conseguia elevar o tom sem vulgaridade. Eu realmente me surpreendi ao descobrir que o Wendel Yamada tocava teclado na igreja. Foi outro belo de um choque… Bem que Brom falou, é uma boa maneira de usar a agilidade dos dedos… Eu preciso muito parar com esses preconceitos. Até porque eu detesto que façam isso comigo.

Enfim… O coro cantou uma parte da música também. Ficou incrível. Mas a letra da música falava de um homem inocente que morreu de forma injusta e a culpa era dos membros da igreja… Eu fiquei tipo “Oi?”… Coisa esquisita. Eu já ouvi falar nisso, mas mesmo assim soa estranho. Algumas pessoas choravam enquanto ele cantava, outras sorriam, outras cantavam junto… O homem era Jesus. Esse nome me era familiar, mas eu não sei da história toda. O máximo que eu lembro que aprendi foi que ele nasceu no Natal. Quando eu chegar em casa, pesquiso mais (se conseguir rememorar).

Logo depois da música ele voltou e eu comentei:

–Você podia ter me contado.

–Não seria tão divertida a sua reação! O que você achou?

–Você tá usando seu dom pra algo decente, ao que parece. Por que você não participa do coral?

–A dicção…

–Estava ótima. Mas por que você não participa do coral?

Ele respondeu gargalhando:

–Eu quero! Só que não sei se eles iriam me aceitar…

–Se você não se arriscar, não vai saber. Talento eu já vi que você tem mesmo, acredito que seria reconhecido.

–Obrigado… Não fica falando assim, eu não ligo mais pra essa coisa de fama. Ainda está cansada? –ele perguntou  sentando bem perto de mim outra vez.

–Não! Depois que você cantou, eu estou com medo de perder qualquer coisa. –Salamander achou graça do que eu disse.

Um homem foi à frente e contou a história de Jesus e o propósito da morte dele… Por um momento, eu senti a alegria de imaginar alguém dando a vida por mim. Eu parei de me sentir como algo feito e deixado de lado… Foi uma sensação boa. Admito que gostei de imaginá-lo ressuscitando e prometendo voltar pra me buscar…

Só que a ficha caiu. Parecia tudo mágico e bom de mais pra ser verdade. Porém, dava pra entender bem a razão da aparente felicidade daquelas pessoas. Era como uma oportunidade para preencher meus momentos de tristeza e também de ócio. Se eu tivesse uma crença, talvez eu conseguisse ser mais feliz e também me ocupar um pouco.

Foi realmente incrível sentir como se eu não fosse só mais uma no mundo… Como se não fosse só uma inferior a todos. Eu sempre fui ignorada e maltratada. Era como se eu pudesse depositar toda minha mágoa em cima daquilo e me ver realmente livre… As lágrimas escorreram pelos meus olhos, como se minhas dores estivessem transbordando… E finalmente saindo de dentro de mim.

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