Ordinários – Capítulo 16
Quésia
Hebrom disse que viria aqui em casa… Eu me arrumei, mas não foi nada demais. Eu só tentei não parecer tão doente assim. Eu finalmente tinha voltado a falar normal! Quando eu terminei, eu vi que ele havia me mandado uma mensagem…
Hebrom: Qué, desculpe, eu n vou poder te visitar. Minha mãe acabou d me ligar dizendo q eu preciso ir direto pra casa… Espero te ver amanhã na igreja <3 <3 Espero q vc esteja melhor. Eu te mando o endereço por aqui quando chegar lá o/
Parece que o esforço foi pra nada… Me joguei na cama e fitei o teto. Edgar entrou no quarto e perguntou o motivo de eu estar menos feia.
–Ele disse que viria aqui. –respondi.
–Ele? Ah! Ele… –meu irmão estava com cara de quem estava tentando controlar sua zoeira, mas do nada ele ficou sério. –Então… Você realmente gosta dele? –sentou no meu puff que estava no chão.
–Acho que sim…
–Hm… –me olhou por alguns segundos, levantou e deu as costas.
–Ei! Se você só queria saber, por que sentou aqui? Agora é aquele momento em que você dá uma de irmão conselheiro e me diz o que eu deveria fazer em relação a isso!
–Hahahahaha! E você acha que vou te dar conselho amoroso? Eu não vou com a tua cara, mas não é pra tanto, né, coisinha? Não arrumo namorada nem pra mim… Te vira. –saiu do quarto com as mãos nos bolsos.
Tipo… Olhando por esse lado… Eu realmente deveria até agradecer por ele não me ajudar. Mas eu queria que Salamander tivesse vindo… Tenho gostado de ficar perto dele, ele foi o único que procurou ser meu amigo. Ele me dá atenção… Gosto disso… Acabei adormecendo enquanto pensava nele.
Acordei uma hora antes do que eu havia combinado comigo mesma. Deve ter sido a ansiedade. A minha pessoa estava um pouco menos pior do que ontem. Até consegui parar de me arrastar e voltar a andar…
Eu falei com Marisa sobre algumas coisas da vez que ela veio aqui… Ela disse até que viria ajeitar o meu cabelo hoje de manhã… E pior que a doida veio mesmo. Ontem eu tive bastante tempo pra pensar em tudo que aconteceu até o presente momento. Eu tive preconceito com Hebrom e olha como eu estou agora… Me arrumando pra encontrar com ele numa igreja… Isso soa um pouco estranho, tipo… Ah, deixa pra lá. Que bom que Ávila não pode ouvir meus pensamentos, senão eu estaria sendo trolada agora mesmo.
–Não puxa tanto! Tá machucando! –reclamei colocando as mãos na cabeça.
–Você não desembaraça essa juba! Agora sofra!
–Do jeito que você tá fazendo, não vai nem mais sobrar cabelo…
–Ah, queridinha, não tenho nada a ver se depois de tanto tempo você não aprendeu a fazer certas coisas sozinha. Te ensinar eu ensinei, você quem não quis aprender! E se quiser ir toda descabelada, é só avisar, que eu paro.
Fiquei quieta… Mari é um pouco agressiva quando se trata de beleza, isso desde sempre. Ela quase deu um ataque de pelanca quando eu escolhi a roupa sem a sua ajuda.
–Pronto! Terminei! Só falta pentear.
–Ué!
–“Ué” o quê, Quésia? Nem vai demorar tanto…
Depois de todo aquele tempo que eu gastei pensando, uma coisa não parava de martelar na minha cabeça e eu não sabia o motivo. Já faz tempo que não me lembrava… Por que isso veio à mente logo agora? É tão estranho…
Aquela menina de cabelo castanho escuro no ponto de ônibus… Quem era? Pelo que eu consegui perceber, Hebrom não tem namorada… Será que é amiga dele? E se ela não for com a minha cara…? Com certeza Salamander vai preferir a menina que ele conhece há mais tempo… Que, no caso, é ela.
–Agora sim! Pode olhar! –Marisa colocou o espelho na minha frente. –O que achou?
–Eu tinha até esquecido que meu cabelo tinha essas ondinhas…
–Se não fosse ondulado, seria o quê?
–Piaçava torta.
–Mereço! Só fala besteira essa daqui! Dai-me paciência! Seu cabelo é lindo, o problema é que você não sabe cuidar.
–Ou seja, ele é feio.
–Vou embora antes que role homicídio por aqui. Vai usar aquela roupa mesmo?
–É…
–Tá, então eu vou esperar lá embaixo pra ver como ficou.
Fiquei um tempo me olhando no espelho. Deve ter sido uma daquelas raras vezes em que eu não me sentia feia. Mas aí eu lembrei que comparando com as outras meninas, eu continuava a mesma coisa… Não dá pra eu competir com a garota do ponto de ônibus… Eu acho… Muito provavelmente, porque eu nem cheguei a ver o rosto dela.
Troquei a roupa, botei as coisas que eu queria levar na bolsa e desci.
–Caramba! Oi, gata, você viu minha irmãzinha maltrapilha por aí? –Edgar fingiu estar me cantando. Ele estava sentado numa ponta do sofá, lendo jornal, e Marisa estava na outra.
–Nem estou tão diferente assim…
–Claro que tá, Quésia, senão eu não teria te bajulado! Você acha mesmo que seu irmão é um canalha que fica iludindo as novinhas?
–Ai, garoto, cala a boca! Já sei com quem ela aprendeu a falar asneira! Não liga não, Qué, isso é recalque dele. Você é uma beleza!
–Ó, só, tia, se mete na intimidade de família, não, falou? Ela sabe que eu estou brincando. Vai, menina sedutora, e só volte depois de arrasar o coração daquele branquelinho lá.
–Parece que alguém vai dormir na rua essa semana… –falei.
–Tu fala um monte de asneira mesmo, hein?! Parece aquele burro deprimido do ursinho Pooh. Marisa, ela não aprendeu essas coisas comigo não, quando eu comprei, já veio com esse defeito.
–Sei… –ela agiu como se não soubesse que era verdade.
–Enfim, pra onde a senhorita pensa que vai mesmo? Você não me contou nada.
–Hebrom me chamou pra ir à igreja com ele…
–Hm… Igreja… Mas vocês já vão se ca… –não deixei ele terminar a piadinha.
–Edgar, você sabe que a Marisa está solteira, não sabe?
–O que tem isso? –ela pegou o bonde andando.
–Vamos mudar de assunto… –Cortês virou o rosto. –Só deixa o endereço na porta da geladeira, caso aconteça alguma coisa, gracinha.
–Tá. –peguei um pedaço papel, escrevi o nome da igreja e a rua. Coloquei onde ele pediu e saí.
Por incrível que pareça, Hebrom estava dentro de um carro me esperando. Quando me notou, veio falar comigo:
–Conseguiu ficar mais linda, achei que não era possível. –sorriu.
–V-Você também está muito elegante! –“ Muito elegante” … de onde eu tirei isso? Lá vou eu estragar tudo.
Ele estava com o mesmo tipo de roupa que usa geralmente. Sempre o vejo bem arrumado… Ele repentinamente segurou a minha mão, dizendo “Venha!” e entrou comigo no carro. Um homem bem moreno era quem estava no volante… Ramon.
–É… Oi? –cumprimentei antes de esquecer, porque seu “filho” me encarando me deixa completamente dispersa.
–Oi! Bom dia! –ele respondeu de um jeito super simpático e deu a partida. –Já vamos.
Hebrom segurou a minha mão com mais força, ainda sorrindo. Eu recuei um pouco com aquela cena. O garoto percebeu e soltou:
–Desculpe!
–Não, não tem problema. Não machucou. –peguei a mão dele de volta.
Ele me olhou com uma cara tipo “Que isso, minha filha?”… Acho que eu estou confundindo as coisas… Mas por outro lado, ele não reclamou em momento nenhum, nem tentou ficar longe de mim. Mas ainda por outro lado, ele é que havia segurado minha mão primeiro… Seja o que for… Acho que ele só quer me converter a religião dele mesmo e pronto… Eu não devia ter vindo.
Hebrom
Meu Jesus, obrigado por ela ter aceitado! Linda… Muito linda, mais linda que o normal! Eu decorei as roupas e as cores que ela estava usando, olha: Sweater azul e vermelho, calças e chapéu cloche brancos e sapatilhas pretas!… Eu nunca vou me esquecer disso!
Ela não estava apenas linda, estava maravilhosa também… E perfeita… E incrível… E fofa… Eu já disse que ela estava linda? Só Deus mesmo pra ter feito um ser humano daqueles… Eh! Eu queria pedi-la em casamento, mas ela ainda está nova e eu também precisaria de autorização pra isso… Além do mais, não tenho certeza de que ela é a pessoa certa.
Quésia segurou minha mão na hora que eu a soltei… Eu fiquei surpreso, mas muito feliz. Ela não tem mesmo medo de mim como eu havia pensado! Meu pai gostou dela também, disse que ela parece ser uma boa menina. Aparentemente ela o convenceu de que estávamos realmente estudando daquela outra vez…
Nós estávamos quase chegando. Tomara que ela se divirta lá tanto quanto eu!
Quando nós chegamos, a primeira pessoa que cumprimentou Qué (depois das recepcionistas), foi a minha irmãzinha, que já estava lá.
–O que ela tá fazendo aqui também?! –sim, esse é o cumprimento da minha irmã… Depois de ter dito isso, ela se agarrou na minha perna.
Quésia
Acho que não disse, mas a irmã de Salamander tinha as covinhas mais adoráveis que eu já vi. Tudo bem que ela não vai tanto com a minha cara porque eu sou a concorrente da atenção do irmão, mas eu amo crianças.
–Hahaha! É um prazer. –respondi depois de ela não esconder que estava um pouco insatisfeita com a minha vinda.
–Di… –Hebrom sussurrou. –Não sei o que está acontecendo com você… Ela não é obrigada a ser sua empregada, não fica com raiva dela. Seja educada.
–Essa pirralha ser educada? Meio difícil, não? –Zacur surgiu e deu um tapa na cabeça dela.
–Para! Eu vou falar pra mamãe! –Di choramingou.
–Ah, para de ser chata. Nem machucou. Enfim, Hebrom, Quésia, estamos esperando vocês lá na classe. Valeu? Falou. –ele virou as costas e foi embora.
Eu nunca tinha visto Zac sem boné o cabelo dele é… Ah, não… Eu não pude deixar de encarar.
–Qué, o que foi? –Hebrom percebeu que eu estava em transe.
–Nada, nada…
Nada mesmo… É só que eu achei que o seu irmão fosse uma menina quando vi vocês no ponto de ônibus pela primeira vez, apenas isso… Mas eu não vou dizer nada porque não quero que ele sofra bullying por ter um cabelo castanho escuro um pouco mais longo do que os meninos normais… Eu sou muito lerda mesmo.
Salamander agarrou a minha mão e me levou para não sei aonde, dizendo que sua tia estava louca pra me conhecer. Fui colocada na frente de uma mulher negra que usava uma blusa branca e uma saia florida que ia até os pés. Sem querer puxar o saco, mas… Era a mulher mais linda e sorridente que eu já tinha visto (Desculpa, Marisa).
–Que graça! Essa é a tal menina? Aprovadíssima! –ela apertou a minha mão.
Eu não fazia nem ideia do que dizer…
–Bem… Quésia, essa é a Tamaris, minha tia. E tia, essa é a Quésia, minha… amiga.
–É um extremo prazer te conhecer! Se você for só metade da pessoa que Hebrom disse, eu já quero você fazendo parte da família! –no momento em que ela disse isso, eu vi que Salamander havia ficado tão enrubescido que até os tomates ficariam com inveja.
–Pois ela já faz parte! É mais do que uma irmã pra mim. –ele falou sorrindo meigamente tentando disfarçar o constrangimento. Minhas expectativas de relação foram lá pro centro da Terra… Se bem que a resposta que ele deu pode ser interpretada de duas formas.
–Você sabe muito bem que não foi isso o que eu quis dizer, sobrinho! –a fala da moça fez o garoto dar um longo suspiro e dizer:
–Eh! Já entendi! Eu não vou ficar envergonhado!
–Mas você já tá… –meti a colher.
–Você não está ajudando, Qué.
–Foi mal…
–Como eu ia dizendo, eu não vou ficar envergonhado. Eu sei que você quer que eu fique vermelho só porque acontece fácil em situações assim! Isso é racismo, tá?! –ele disse em tom de brincadeira, mas logo depois seguiu sério.
–Racismo inverso, é? –a moça riu.
–Mas eu digo sem acanhamento nenhum que se uma garota como ela fosse minha namorada, eu ficaria muito feliz. Agora a gente precisa ir, porque nós não viemos à igreja pra você ficar tentando pagar de profeta, tia… Venha, Quésia! –ele tentava se manter centrado e foi andando como se nada tivesse ocorrido.
–Ele não fica encantador quando constrangido? –Tamaris abaixou um pouco e disse ao meu ouvido, rindo.
–Isso não o deixa zangado?
–Zangado? Não. Fala sério, é bem óbvio que ele gosta de você… Ele sente orgulho por você ficar perto dele. Obrigada por fazê-lo… Ele não tem muitos amigos.
–P-Por nada! Eu também… Também gosto dele.
–Isso é ótimo! Bem, acho melhor você ir atrás dele. Tchau, tchau, flor!
Engoli a seco quando ouvi Tamaris caguetando… Será que ela está certa? Ele disse isso mesmo pra ela?… Acho tão difícil de acreditar… Eu tenho uma quedinha por ele, mas não acho que vá dar certo, já que ele é crente e eu nem sei o que sou. Quando é assim, na maioria das vezes, dá uma treta maligna… Talvez ele não seja pra mim. Eu sou qualquer uma.