Contratempo de amar – Capítulo IV
– Mas como isso é possível, Bel? – o rosto em miniatura de Catarina revela seu espanto através tela do laptop.
– Eu não sei… – suspiro – Mas não importa também… Ele já deixou muito claro que não significo nada pra ele, então… – Catarina me interrompe.
– Ah Bel, para vai! Pra começar, foi você que fez ele pensar isso quando se mandou pra outro continente sem nem olhar pra trás. – Catarina sabia ser direta quando necessário.
– Eu tinha motivos pra isso. – me defendo.
– Eu acredito em você, mas você magoou o garoto. – ela diz, suavemente – E outra, eu duvido muito que ele tenha superado tudo isso tão fácil quanto disse. Ele é mais velho, não era mais tão criança quando tudo aconteceu.
– 12 anos, Cati… Muita coisa muda nesse tempo. – Isabel suspira.
– Mudou pra você, gatita? – pergunta, e no fundo sei que é retórico.
– Claro que sim! Eu não tenho mais 15 anos de idade. – digo com toda a convicção que posso transmitir nesse momento. Que é quase nenhuma.
– Sim, sim… Mas mesmo assim estamos conversando há três dias sobre um garoto pelo qual você era apaixonadinha. Bem parecido com minha adolescência. – desdenha da situação.
– Ai, eu não era apaixonada por ele Catarina! – reviro os olhos – Olha, quer saber, tchau! Amanhã tenho que levantar cedo pra trabalhar!
– Claro, não pode deixar o chefinho esperando não é mes… – fecho o laptop antes de ouvir o restante da frase. Catarina sabe ser inconveniente quando quer, e eu não preciso de piadas agora. Preciso de coragem. Trabalhar na R.B. Enterprise não será tão simples como eu esperava, mas eu não vou desistir.
Alguns dias se passaram, mas o clima estranho não mudou. Diego se mantém distante e age como se não me conhecesse, e eu, em contrapartida, tento reagir da mesma forma. Mas todo esse esforço é extremamente cansativo.
– Esse tipo de conduta não pode ser tolerada. – um dos advogados argumenta em nossa reunião semanal.
– É evidente que não! – outro concorda.
– Se deixarmos isso assim, logo todos os entregadores irão achar respaldo pra fazer o mesmo. – continuam debatendo sobre a infração no setor de produção.
– O que vocês sugerem então? – Diego questiona ao grupo.
– Uma suspensão? – um rapaz, aparentando pouco mais de 30 anos, sugere.
– Acho que uma suspensão seria uma atitude muito branda. – Maciel, coordenador do setor, responde – Creio que precisamos tomar uma atitude mais drástica.
– Uma atitude mais drástica poderia acarretar em um processo. – falo em tom tranquilo, porém sério, e posso sentir o desdém no olhar de Maciel. Já havia lidado com esse tipo de preconceito em outros empregos, sabia reconhecer de longe quando alguém não acreditava no meu potencial.
– Prossiga. – Diego faz um sinal com a cabeça, me dando permissão pra continuar.
– Não havia nenhum aviso que informasse ao funcionário que ele ou outro colega não poderia agir dessa forma. – lembro a Diego e ele passa a mão pelo rosto em sinal de cansaço.
– Um aviso? Isso é ridículo! Não precisamos pôr um aviso pra algo que é conhecimento geral. – Maciel continua.
– É ridículo, mas é o argumento que será utilizado caso ele nos processe. – continuo argumentando.
– Ok… – Diego levanta o olhar – Vamos suspendê-lo por uma semana e ficar de olho caso haja reincidência. E colocaremos um aviso no setor de produção. Isso resolveria nosso problema, correto, doutora Ávila? – pergunta, indiferente.
– Creio que sim. – respondo, tentando passar indiferença também.
– Então estão dispensados por hoje. – todos se levantam e vão saindo, ele olha para mim – Gostaria de falar um momento com você.
– Tudo bem… – respondo, me aproximando – Algum problema?
– Não, nenhum. – responde – Gustavo me encarregou de terminar alguns contratos que precisam ser entregues amanhã pela manhã, e me orientou pra que eu recrutasse você pra me auxiliar, já que ainda não lidou com essa parte dos negócios.
– Oh, hoje? – pergunto, olhando para o relógio, percebendo que já passava das seis horas.
– Agora, pra ser mais específico. – responde, percebendo que eu notei o horário – Provavelmente passaremos um bom tempo aqui. – se levanta – Bem-vinda à R.B. Enterprise. – murmura, ironicamente.
As horas se passam e eu e Diego trocamos apenas palavras necessárias para continuar nosso trabalho. Apenas olhares rápidos e involuntários poderiam sugerir que algo um dia se passou entre nós. Em meio a leitura dos mil e um contratos, Diego me surpreende com uma afirmação totalmente aleatória.
– Você está com fome. – ele diz, sem tirar os olhos do contrato à sua frente.
– Hein? – acordo de meus pensamentos – Não, eu estou bem.
– Seu lábio. Você está mordendo. – ele me olha por um momento.
– E…? – arqueio a sobrancelha.
– Você fazia isso quando éramos mais novos. – ele suspira – Sempre que estava com fome você começava a morder os lábios.
– Oh… – sou pega de surpresa com essa conversa tão intimista – E você está com sono. – retruco, dando de ombros e entrando no joguinho dele.
– O que? Por que diz isso? – pergunta, curioso.
– Porque você já estralou o pescoço umas três vezes. Você fazia isso quando queria dormir e eu continuava conversando… – um sorriso escapa dos meus lábios, mas logo meu semblante cai lembrando da nossa situação atual – Eu vou pegar um café. – levanto e saio da sala, ouvindo de longe um murmúrio indecifrável de Diego.
O que eu estou fazendo? Ou melhor, o que ele está fazendo? Não me dirige a palavra durante dias, mas de repente começa a citar nossa infância? Argh! Eu não preciso disso agora. Não preciso de mais confusão na minha vida.
– Gustavo? O que você faz aqui? – pergunto ao vê-lo na cantina.
– Eu esqueci alguns papéis na minha sala… – ele me encara – E você? Ainda por aqui? – ele olha para o relógio.
– Bem, Diego me disse que você havia sugerido que eu o ajudasse na formulação de alguns contratos, então estamos terminando isso. – respondo.
– Ah sim, verdade. – ele parece se lembrar – Mas já está tão tarde. Como você irá pra casa?
Gustavo era atraente e simpático, e eu notava isso. Assim como notava que, apesar de discreto, ele tentava lançar seu charme sobre mim. Mas eu não posso ceder aos seus encantos. Se trata do meu chefe. Pior! Do chefe do meu chefe. E faz tão pouco tempo que terminei com Frederico… Tudo ainda está muito recente e eu não posso me envolver com mais ninguém à esta altura. Tantos tropeços ao decorrer do caminho foram o suficiente para que eu entendesse que uma vida à dois não se encaixa naquilo com que eu posso lidar.
– Não se preocupe, eu vou de táxi. – respondo – E nós já estamos acabando aqui também, então…
– Nem pensar! Eu te levo pra casa! – afirma, categórico.
– Não é necessário, de verdade… – eu insisto, tentando evitar tal aproximação.
– Eu não posso permitir que você pegue um táxi sozinha a essa hora. Você pode ter crescido aqui, mas a cidade está mudada, eu não ficaria tranquilo. – ele insiste.
– Não se preocupe, Gustavo, eu não iria deixar que ela fosse pra casa sozinha. – Diego chega atrás de mim, interrompendo a conversa – Eu vou levar a Isabel, não se incomode.
– Não seria nenhum incômodo. – ele sorri em minha direção – A presença da senhorita Ávila é muito agradável.
– Eu agradeço a gentileza dos dois, mas eu realmente posso ir sozinha. – continuo afirmando, me sentindo no meio de uma partida de ping-pong, onde eu era a bolinha.
– De jeito nenhum. – Diego encerra, firme – Eu já havia me programado pra levar você.
– Tem certeza, amigo? – Gustavo pergunta, em um tom divertido.
– Absoluta. – Diego responde, sério – Vamos, Isabel?
– Er… Vamos. – respondo, zonza pela disputa de testosterona que havia acabado de presenciar. Homens.
Durante o percurso até meu apartamento, Diego permaneceu em silêncio, o que tornou o clima ainda mais desagradável do que no escritório. Lá ao menos os metros quadrados me protegiam. Não consegui evitar alguns olhares de canto de olho para ele, mas sua expressão continuava impassível. Estudando aquela carranca de poderoso chefão, eu tentava buscar alguns traços do amigo que deixei pra trás há tanto tempo. Seu maxilar rígido, sua postura impecável… Nada denunciaria que um dia aquele homem um dia fora tão engraçado e espontâneo. Apenas em alguns instantes, quando muito exausto, eu podia ver uma sombra em seu olhar do garoto que jurou me proteger pro resto da vida. Mas apenas uma sombra. Acredito que o meu caso não seja diferente. Talvez em mim não reste nem uma sombra do que fui um dia. O caminho até meu apartamento nunca pareceu tão longe assim.
Tomara que eles fiquem juntos. Eu estou amando a web, a forma como foi escrita, o desenrolar da história, todo o cuidado na elaboração, o ambiente retratado. Muito bom! Amei. Vou continuar acompanhando.