Contratempo de amar – Capítulo III
– Eu vou ligar todos os dias! Vou mandar mensagens, cartas, tudo! – soluço em meio às lágrimas enquanto abraço Catarina.
– Eu quero saber de tudo, ok? – Catarina também chora – Não aceito ser substituída por nenhuma brasileira!
– Nunca. – me afasto – Obrigada por tudo, Catita. Te amo muito.
– Também te amo, ruivinha. Agora vai antes que eu te amarre e te leve de volta pro apartamento.
– Adeus. – aceno, triste.
– Até logo, ruivinha. – Catarina acena de volta e eu vou em direção ao portão de embarque. Seria uma longa viagem de volta pra o lugar que um dia foi minha casa.
São Paulo, Brasil – 2000.
– E a Cecília? – pergunto, escrevendo o nome em uma folha de papel.
– Muito encrenqueira. – Diego responde, direto.
– Hum… Manuela? – risco o nome anterior e escrevo em seguida.
– Argh! Muito nojenta! – faz careta – Você já viu os dentes dela?
– Ah, Diego! Dá uma forcinha, né! – rasgo a folha de papel – Eu já falei o nome de metade das garotas do colégio e você consegue achar um problema em todas! Assim, você vai morrer seco e só. – brinco.
– Nossa, que exagero. – Diego revira os olhos – As garotas do colégio são muito sem graça… – lhe dou um tapa nas costas – AU!
– Eu sou uma garota do colégio, idiota! – falo, me fazendo de ofendida e dou risada em seguida.
– Você não é só uma garota do colégio, Bel… Você é minha garota. E você está muito longe de ser sem graça.
– Senhorita Ávila? Seja bem-vinda! – um senhor me cumprimenta no portão de desembarque do aeroporto – Meu nome é Antônio, serei seu motorista hoje.
– Ah… Nossa, muito obrigada. – estendo a mão para cumprimentar o senhor que aparenta uns cinquenta e poucos anos – Eu não sabia que iriam enviar alguém. Eu poderia encontrar o edifício sozinha, não precisavam se incomodar.
– É uma cortesia pelo seu primeiro dia na cidade. – sorri – Podemos ir?
No caminho para o edifício, vagueio admirando como os lugares que vi quando mais nova continuavam do mesmo jeito. Tudo parece igual, mas ao mesmo tempo tão diferente. Da última vez que vi esta cidade, estava sofrendo como nunca imaginei que fosse possível sofrer, queria apenas ir embora sem olhar para trás. E agora, estava de volta, totalmente diferente do que fui um dia.
– Seja bem-vinda, senhorita Ávila. – diz uma mulher alta e loira ao me avistar na entrada do escritório – Sou Madalena, entrei em contato com a senhorita por telefone.
– Ah, claro! Muito prazer! – a cumprimento – Acredito que você irá me situar um pouco nos meus afazeres hoje?
– Hoje a senhorita não tem nenhum a fazer. – responde – Irei apresentá-la ao grupo de advogados da empresa e ao chefe do setor jurídico, após as apresentações, a senhorita poderá ir para casa organizar o que precisa e começaremos na segunda-feira.
– Oh, isso não é necessário! – justifico – Eu posso organizar minhas coisas aos poucos e começar logo hoje.
– Vejo que a senhorita tem muita pressa para começar o trabalho, isso é muito bom. – uma voz forte ecoa do fundo da sala e me viro para verificar de onde ela vem. Então avisto um homem muito bonito e bem vestido se aproximando – Prazer, senhorita Ávila, sou Gustavo Bertoli.
– Bertoli? – engulo seco – Bertoli como Ruan Bertoli? R.B. Enterprise?
– Sim. – sorri de canto – Sou filho do Ruan Bertoli, e responsável por esta filial.
– Muito prazer. – digo, disfarçando o nervoso – E muito obrigada pela oportunidade, senhor.
– A senhorita não precisa me agradecer. O seu currículo é impressionante. – olha para o lado – Pode nos deixar a sós, Madalena. Eu mesmo a apresentarei para o grupo. – a senhora acena com a cabeça e se afasta.
– Eu estava explicando que posso começar a trabalhar hoje. Organizei a maior parte das minhas coisas antes de vir para cá, então não quero protelar mais…
– Não há motivo para pressa, senhorita Ávila.
– Isabel. Só Isabel, por favor.
– Irá me chamar de Gustavo também? – ele sorri e aceno com a cabeça, percebendo como ele é atraente – Bem, precisamos de alguns dias para regularizar os termos da sua contratação. Encare isso como uma oportunidade de conhecer a cidade.
– Na verdade, eu já conheço. Cresci aqui. Mas creio que sendo responsável por uma empresa tão renomada e tomando tantas precauções na contratação de uma simples advogada, o senhor… digo, você já saiba disso.
– Touché. – ele sorri – Mas algumas coisas podem ter mudado desde quando a senhorita se mudou. – ele abre a porta de uma sala permitindo a passagem.
– Assim eu espero. – suspiro, e entro.
A sala era ampla, provavelmente o local onde as reuniões eram feitas. Os olhares curiosos caem sobre mim no momento em que entro no recinto.
– Senhores, esta é a senhorita Isabel Ávila, nova colega de vocês. – Gustavo fala em alta voz – Assumirá o cargo na segunda-feira. – um murmúrio de vários “olás” e “seja bem-vinda” toma conta do ambiente com pouco mais de seis pessoas.
– Muito obrigada. – agradeço, sinceramente.
– O que perdi aqui? – alguém pergunta, e ao ouvir tal voz, congelo instantaneamente. Não pode ser.
– Ah! – Gustavo se vira – Este é Diego Fernandes, Isabel. O diretor do setor júridico.
Não é possível acreditar. Era ele. Diego. Mais alto e mais forte do que me lembrava, talvez um pouco mais sério também, mas era ele. O garoto que havia deixado para trás há mais de uma década. A expressão fria que tomou o seu rosto me fez perceber que ele lembrava de tudo tão bem quanto eu.
– Olá, Isabel. – ele estende a mão, inexpressivo.
– O-olá, Diego. – retribuo o cumprimento.
– Vocês já se conhecem? – Gustavo pergunta, confuso.
– Faz muito tempo. – tento me situar, sem muito sucesso.
– Sim. De uma outra vida, eu diria. – Diego permanece inexpressivo, mas ainda me encarando.
– Nossa, que mundo pequeno, não? – Gustavo tenta captar algo do ambiente – Bem, Isabel, você pode ir agora. Nos vemos na segunda?
– Sim, é… Até segunda. – me despeço, ainda atordoada, saindo da sala como um jato.
De todas as coincidências loucas que já aconteceram na minha vida, aquela seria de longe a pior e mais dolorida. Como o garoto que eu simplesmente risquei de minha vida agora seria o meu chefe? Que tipo de brincadeira cruel do destino é essa?
– Isabel! – a voz me chama no meio do corredor.
– O que? – me viro, despertando da onda de pensamentos e vejo Diego – Oh, você.
– Sim, eu. – ele passa as mãos ele cabelo – Por essa eu acho que você não esperava, não é?
– É, de fato. – respondo, encarando o chão, sem coragem de olhar em seus olhos. Sabe Deus o que eu encontraria ali.
– Isabel, olha… – ele suspira – Eu não sabia que era você.
– Que? – pergunto, confusa.
– Para o emprego. – esclarece – Eu analisei o currículo, mas só havia as iniciais. Sem foto ou nome. Pra imparcialidade da seleção.
– Oh, eu entendo… – o encaro – Talvez se você soubesse, evitaria isso, não é mesmo?
– O que você quer dizer com isso? – Diego pergunta, aparentemente sem entender.
– Você me colocaria nessa vaga se soubesse que era eu? Para trabalhar diretamente com você? Você iria querer a garota que pisou em você aqui?
– Eu… – respira fundo e retoma, sério – Isabel, o que aconteceu faz muito tempo. O fato de você trabalhar comigo não significa absolutamente nada.
– Ah… – um incômodo inesperado atravessa meu peito – Eu pensei que por tudo o que aconteceu, talvez você…
– Não. – ele me interrompe – O que aconteceu ficou para trás há anos. Éramos crianças, não sabíamos de nada da vida. Aquilo não significou nada.
– Não significou nada? – pergunto, rogando aos céus que minha mágoa não transparecesse.
– Não. – Diego aparenta indiferença – Foi apenas um drama de adolescentes, não é mesmo?
– Nós éramos amigos. – engasgo.
– Nós acreditávamos nisso. – ele soa calmo – Não vamos fingir que conhecemos um ao outro profundamente, porque isso não é verdade. Quando você foi embora eu percebi que não nos conhecíamos nem um pouco.
– Eu sinto muito… – é a única coisa que consigo dizer, como um sussurro.
– Não sinta. – ele sacode a cabeça como se espantasse algo – Não foi nada. Aquilo me despertou, na realidade.
– Te despertou? – pergunto, sem entender.
– Pra vida. Eu saí da ilusão pra vida real, e eu devo isso àquela despedida. – a frieza de sua voz me faz estremecer.
– Eu preciso ir. – respiro e parece que é a primeira vez desde o início desta conversa – Organizar algumas coisas.
– Sim, claro. – ele assente – Bem-vinda então.
– Obrigada. – falo rápido, indo em direção à saída.
Ao me afastar, não consigo conter as lágrimas. Nunca imaginei que seria tão doloroso ouvir tudo aquilo. Ouvir coisas que eu mesma repetia durante os anos em que passei afastada. Mas ouví-las da boca de Diego foi uma tortura. Como assim não signifiquei nada? Uma amizade de metade de uma vida?
São Paulo, Brasil – 1998.
– Você não pode trazer ninguém aqui!
– Eu não vou trazer ninguém! – ele revira os olhos.
– Promete, Diego! Esse lugar é só nosso!
– Isabel, que drama. O que tem esse parque velho de tão especial?
– Não é o que ele tem, é o que significa… – deito embaixo da velha árvore que ficava no meio do parque.
– E o que ele significa? – ele deita ao meu lado.
– Um esconderijo.
– Esconderijo? – ele sorri olhando pro céu.
– Sim. A gente pode se sentir perdido nesse mundo, mas aqui é o lugar de nós nos encontrarmos.
– Bel, é um parque velho em uma colina. – ele desdenha.
– É o nosso parque velho em uma colina. Não faça pouco caso.
– Maluca. – ele sorri.
– Sem coração. – também sorrio.