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Depois de tudo

Depois de tudo – capítulo 08 : … E a noite só está começando

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… E a noite só está começando

 

– Eu não sabia que aqui fora também estava tendo uma festa.

Rômulo se pronuncia, correndo os olhos sobre o pequeno grupo à sua frente com um tom de voz próximo de algo como educação enquanto os três amigos que o acompanham se dispersam, assim como peças em um tabuleiro de xadrez, tomando posições aparentemente estratégicas sobre o patamar no alto da escada de granito rústico.

Uma sensação de alívio percorre cada fibra do meu corpo e então deixo o ar fugir dos meus pulmões de uma só vez, seguido de um assobio displicente pelo canto dos lábios ao mesmo tempo em que me deixo encostar, dessa vez com cautela, sobre os dormentes de madeira, olhando para trás rapidamente a fim de poupar o que resta das azaleias e vasos de suculentas.  

Nessa sequência de movimentos rápidos inevitavelmente acabo por me deparar com David, ofegante, estacionado um degrau abaixo de onde estou. Seu rosto está corado e suado; o cenho franzido promove rugas demasiadamente precoces para alguém com 21 anos de idade e seus olhos, completamente concentrados em mim, brilham carregados de pesar, debilidade e raiva, misturadas em uma forma de fúria potente e letal, transformando seu rosto em uma máscara grotesca.

Um medo irracional ousa atravessar o meu cérebro.

É claro que a chegada de Rômulo e seus três mosqueteiros, sem sombra de dúvidas, deve abrandar os ânimos de David, ou pelo menos fazê-lo recuar…

Num único gesto, praticamente girando nos calcanhares, dou as costas para ele e avanço um degrau acima, me afastando dos dormentes de madeira e companhia, recusando-me a continuar encarando-o: há batalhas que não devem, ou não precisam ser travadas, principalmente depois que nos certificamos que não há mais objetivos a serem conquistados ou inimigos a serem combatidos.

Como o amor ou que quer que fosse que eu sentia por David pôde se transformar em apatia em um minuto?

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Questiono-me, endireitando os ombros e um tanto lastimoso, ainda incrédulo diante da epifania que me acometeu ao revê-lo após essas três semanas que se passaram depois do fora que me deu.

Mas pode. E se transformou.

Diante dessa irrevogável constatação, olho para trás, de soslaio, por cima do ombro esquerdo e percebo que parte desse medo irracional se afastou, restando tão somente uma sensação cristalizada em meu peito…

– Isso é muito feio, sabia? – Rômulo dispara veemente depois de cruzar os braços e despejar sobre mim um olhar carregado de indignação enquanto meneia a cabeça, assumindo ares de um professor que reprova a conduta de um aluno após flagrá-lo colando na prova.

Em seguida esse mesmo olhar, aguçado, passa por cima dos meus ombros, certamente para alcançar e também repreender David, cuja respiração pesada posso sentir, como se os centímetros que nos separassem não fossem nada mais que meras polegadas.

Um silêncio involuntário recai sobre cada um dos doze degraus da escadaria enquanto Rômulo volta a perscrutar, com o cenho cerrado, as fisionomias dispostas sobre ele, cobrando por trás desse mutismo absoluto uma satisfação para o circo montado defronte à sua casa.

Não bastasse esse direito adquirido, deve-se levar também em consideração que Rômulo, no alto dos seus 17 anos, é uma das raras pessoas que tem o dom de influenciar as outras, infundindo ordem, dignidade, amainando situações, discrepâncias…

Uma das diversas vertentes sobre a arte da Liderança defende que muitas vezes ela é uma aura que acompanha algumas poucas pessoas escolhidas, uma qualidade inata, e, portanto, uma característica quase genética.

Seguindo a linha de raciocínio dessa tal vertente, provavelmente Rômulo tenha herdado essa habilidade de seus pais, e a desenvolveu sob o olhar enérgico de sua mãe, dona Elizabeth, a empreendedora de sólida e incontestável reputação, fundadora de uma rede de hotéis, uma mulher sem acanhamento, pragmática, cuja atenção alheia é o melhor dos mundos.

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Não é a toa que no colégio Rômulo sempre está à frente dos eventos, interessado e aberto para o que é novo, convencendo os mais arredios dos colegas a fazer alguma coisa, discutindo temas para trabalhos, dando suporte até mesmo para os grupos os quais não faz parte, ouvindo sempre, com uma esmerada atenção, o que os outros têm a dizer e expressando sua opinião, sempre que solicitada, dentro de uma eloquência e capacidade de síntese impressionante para um jovem que ainda não alcançou os seus vinte anos.

Além da bagagem intelectual, da expressão corporal que lhe denota ares principescos, Rômulo também é detentor de uma beleza que é impossível não reconhecer, enlevando até mesmo aqueles que se sentem inferior, despeitados diante dos atributos físicos de uma pessoa formosa.

Um rosto clássico, com traços fortes, destacando a qualidade de uma beleza tipicamente masculina, queixo quadradinho, transmitindo força e equilíbrio numa face bem simétrica, um sorriso mega espontâneo que casa com os seus olhos expressivos aliados a uma barbinha cerrada, fazem dele o cara perfeito, capaz de arrancar suspiros de onze entre dez garotas fazendo-as se esbofetear, se essa fosse uma condição para tê-lo como namorado, mesmo sabendo de sua orientação sexual.

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Um desperdício! Gabriela sempre faz questão de ressaltar, engrossando, em tom de galhofa, o inconformado coro feminino.

Por um bom tempo surgiu rumores, até mesmo questionamentos intransigentes pelo fato de eu e Rômulo nunca termos ficado juntos em face da proximidade que sempre tivemos desde que começamos nossa amizade, há seis anos, quando nos conhecemos no 6º ano do ensino fundamental.

Assim como Gabriela, Rômulo também é uma alma irmã, e pelo fato de ambos sermos homossexuais, uma boa parte das pessoas não conseguem compreender a possibilidade de uma amizade livre do desejo carnal, já, que a priori, os gays que andam sempre juntos têm que transar entre si.

 

– Admiro você permitir isso, Lucas… – Rômulo se volta por completo na minha direção; o semblante impassível – Estamos comemorando a sua despedida, mas da porta da minha casa para dentro, ok?

A reprimenda é mais que válida, afinal, sou o responsável por David estar aqui, criando esse tumulto. Não posso e não tenho o direito de contestar, tão somente acatar, mas me surpreendo ao ver Rômulo substituir sua imperturbável fisionomia por um riso à socapa enquanto descruza os braços e usa uma das mãos livres para coçar o queixo.

Baixo o rosto rapidamente a fim de conter o riso que me vem aos lábios.

Ainda bem que meu amigo está com esse espírito leve; talvez assim consiga dizimar esse climão que se instaurou aqui, em frente à sua casa, sem grandes desgastes e principalmente convencendo David de que ele está fazendo uma tempestade num copo d’água.

 

– Só porque está no seu território acha que pode ficar dando uma de reizinho?

Pronto. Ouço a voz de David incendiando atrás de mim e então ergo a cabeça, buscando o semblante de Rômulo, certo de que vou encontrá-lo exprimindo seu peculiar senso de prudência, entretanto, por incrível que possa parecer, o riso largo que rasga o seus lábios confirma o que ele já havia me permitido perceber a segundos atrás: está se divertindo.

– Você tá achando que eu sou idiota?

A voz de David se eleva e cada vez mais embriagada de raiva, indignação.

Num moto contínuo me viro para olhá-lo, mas sequer tenho tempo de encará-lo, já que ele se volta para Gabriela, que surge ao seu lado, com as mãos na cintura e gritando tão alto quanto ele mesmo.

– Você me machucou sabia?

– Eu avisei que o meu problema era com o seu amiguinho… – ele responde com um tom de desprezo pontuando cada uma de suas palavras.

– Seu cretino…

– David, por favor, vamos embora.

Todos se voltam na direção da voz que emerge dos degraus abaixo de onde estão Gabriela e também David. É o tal homem, que surgira do nada há alguns minutos tentando persuadi-lo a deixar para trás a balbúrdia que está fazendo.

Dessa vez o tom firme que sai de sua garganta, rematado por um olhar carregado de resolução e uma postura ereta, distinta, dá lugar ao clamor tímido, à súplica de instantes atrás.

Eu e Gabriela nos entreolhamos, cúmplices.

Não há dúvidas que esse deve ser o NOVO NAMORADO… Augusto? Foi esse o nome pelo qual David o chamou?

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Meço Augusto de cima a baixo incentivado por uma estranha sensação de despeito, refreada, mas presente, porém nada que diga respeito ao David, tão somente pela constatação sopesada, quase como que saciando um instinto básico de me deparar com o meu sucessor…

Augusto…

Realmente ele parece um legítimo balzaquiano. Não deve ter menos do que uns 35 anos… E é bonito, preciso reconhecer. Um nariz aquilino sobre os lábios vermelhos, uma testa alta, olhos bem separados, além de alto, ombros largos, musculoso… Uma constituição poderosa e gritante se comparada ao meu biótipo magro, à minha silhueta timidamente definida…

– David, por favor, nos poupe dessa situação vexatória… – Augusto continua…

“Nos poupe?”

Eu e Gabriela voltamos a trocar olhares de conveniência.

Não resta dúvida. Ele é o NOVO NAMORADO!

– Eu não estou pedindo sua opinião – David se vira para trás, cuspindo maribondos – Eu te disse para não vir até aqui. Esse assunto é meu.

Ele finaliza sua repreensão elevando o punho esquerdo ao próprio peito e batendo contra ele, uma, duas vezes até retornar para frente, alternando o olhar perscrutador entre mim e Rômulo.

– Já que você faz tanta questão dessa sua festinha de merda – David aponta para o portão de aço com um gesto  exagerado de uma das mãos, sem deixar de fixar Rômulo em seu raio de visão, como se estivesse espalmando para longe algo que lhe causasse repugnância – Volta lá pra dentro e nos deixe aqui fora.

Rômulo permanece emudecido. Cada vez mais seu sorriso vai se tornando desdenhoso, meio insinuante.

Aonde ele pretende chegar agindo dessa maneira, cutucando uma onça com vara curta?

Os três amigos, estacionados no seu entorno, estão alertas, parecendo aguardar somente um gesto indevido de David para agir.

Preciso acabar com isso antes que essa confusão tome proporções absurdas e alguém se machuque seriamente.

– Quer saber de uma coisa David? Em minha opinião você deveria aceitar a sugestão do seu amigo – Rômulo, por fim se manifesta, movendo levemente o queixo para frente.

– Ou então o quê? – David ameaça dar um passo para alcançar o próximo degrau, anterior ao que estou, mas se retém diante da movimentação nada sutil acompanhada da cara de poucos amigos que fazem, em uníssono, os três mosqueteiros.

– Cara, na boa – Rômulo continua, mas dessa vez recolhendo o riso solto – Eu te respeitava enquanto você namorava o meu amigo, e você sabe disso – ele meneia a cabeça, parecendo tentar encontrar as palavras certas antes de prosseguir – E quem sabe até continuaria te respeitando, apesar de priorizar a minha amizade com Lucas, claro, mas essa sua reação primitiva, tentando arranjar a todo custo uma briga com alguém, além de se achar no direito de fazer isso, aqui, na frente da minha casa, e me criticar por estar tentando preservar o ambiente onde moro com meus pais, jogou por terra toda e qualquer chance de continuar a considerá-lo…

– Como se eu fizesse questão – David replica, aos berros, parecendo um animal encarcerado – Enfia essa sua pose de mauricinho de merda no meio do seu cu…

– David – Augusto grita o seu nome na tentativa de repreendê-lo, já subindo os degraus que os separam para ir ao seu encontro – Definitivamente já chega…

– Vá se fuder você também, Augusto.

Ele dispara sem sequer olhar para trás, desprezando completamente a opinião do namorado.

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– Você devia perguntar o que seu amiguinho fez – David aponta o indicativo na minha direção e o mantém em riste, lançando-me um rápido olhar carregado de cólera para logo em seguida se voltar para Rômulo, recolhendo o dedo acusador – Esse viadinho postou um monte de merda a meu respeito na internet e nada mais justo que eu venha tirar satisfação…

Não consigo me mexer. Minha cabeça volta a latejar. Fecho os olhos por alguns rápidos instantes rogando ao Criador que tudo isso termine logo… Nesse momento sinto alguém tocando o meu braço e abro os olhos num sobressalto. É Gabriela se postando ao meu lado.

Retorno meu olhar para Rômulo, temeroso na expectativa de sua reação diante das ofensas de David, suplicando para que ele as ignore.

Rômulo permanece em silêncio por alguns instantes. É notório que ele quer se mover e deixar todo esse pandemônio para trás, mas faz um esforço para não sair do lugar, assumindo uma postura extremamente rígida ao mesmo tempo em que deixa uma grande quantidade de ar fugir de seu peito para logo depois inalá-lo, sôfrego.

– Seja lá o que o Lucas tenha feito, cabe a vocês dois resolverem isso da forma mais adequada, lavando a roupa suja em casa. Ninguém é obrigado a ficar assistindo esse festival de palavrões e insultos. E além do mais, aprenda a respeitar o próximo. Ofender alguém é baixar sua própria dignidade.

Rômulo inala mais um grande hausto de ar após deixar as palavras escaparem de seus lábios em um só fôlego.

Uma onda de náusea me sobe pela garganta em golpes atordoantes e então aperto com força o braço de Gabriela.

– É isso – a voz de David quebra o instante de silêncio que se instaurara – Agora você deve estar feliz por ter o caminho livre né? – ele inclina um pouco a cabeça na minha direção, mas sem deixar de continuar afrontando Rômulo enquanto escancara sua boca num sorriso bastante afetado – Quem sabe já não tenha se tornado o macho dele…

David se apruma como se quisesse parecer ainda mais alto após destilar seu veneno.

Rômulo não reage. Nenhuma palavra. Apenas o encara de volta com um olhar resoluto.

A indiferença é a maneira mais polida de desprezar alguém e com toda certeza que possa existir entre o céu e a terra, ele não agiria de outra maneira.

Rômulo meneia a cabeça e então se vira, fazendo menção em atravessar o portão de aço, a fim de retornar para dentro dos limites de sua casa, mas é impedido por David, que praticamente atropelando a mim e Gabriela, parte para cima dele, atirando-o no chão, surpreendendo a todos e até mesmo aos três mosqueteiros, por sua celeridade ímpar ao chegar as vias de fato.

Uma confusão de gritos e empurrões tem início.

Augusto passa por mim e por Gabriela no afã de alcançar o patamar do alto da escada.

Minha amiga me abraça e me força, junto com ela, a recostarmos o máximo que pudermos sobre os dormentes de madeira, porém, imbuído por um principio de dívida e solidariedade em relação a Rômulo, me desvencilho sem grandes esforços e tento chegar até o “olho do furacão”, mas acabo levando uma cotovelada no lado esquerdo do rosto ao tentar me aproximar.

Uma dor aguda, instantânea, toma conta da minha bochecha e do meu ouvido enquanto sinto o mundo virar de cabeça para baixo, aterrissando com violência, por fim, nos degraus próximos a Gabriela, num baque suficiente para me deixar atordoado.

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